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quarta-feira, 29 de março de 2023

De que comunismo estamos falando? – Sobre a pesquisa IPEC de março.

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De que comunismo estamos falando? – Sobre a pesquisa IPEC de março.

 

George Gomes Coutinho **

O IPEC, antigo IBOPE, realizou pesquisa nacional entre 02 e 06 de março. A síntese da pesquisa[1], divulgada primeiramente pelo grupo Globo[2], visava verificar a temperatura da conjuntura política no que tange a recepção do governo Lula 3 e, para além disso, aproveitou para tratar de outras temáticas de interesse político mais amplo. Dentre as questões apresentadas aos indivíduos da amostra, um total de 2 mil brasileir@s, algo assombrou formadores de opinião e demais atuantes no atual mercado descentralizado de produção de informações: 44% dos participantes concorda total ou parcialmente com a afirmação de que o Brasil corre o risco de se tornar um país comunista.



Vale dizer que se adotarmos a perspectiva do “copo meio vazio”, e acrescentarmos os que “discordam em parte” da afirmação, o percentual chega a 55%. Afinal, “discordar em parte” quer dizer que não se discorda totalmente da possibilidade de nos tornarmos um país comunista na atual quadra histórica. Ou interpretei errado?

A reação de maneira geral foi de estupefação e em alguns casos resignação. Afinal, estamos no país do patriota do caminhão, dos aliens golpistas, dos Messias em goiabeiras, etc.. Por outra via há os que se lançaram no esforço (ou fé) iluminista e se puseram a explicar, afinal, o que é o comunismo, seja por um resumo conceitual formal ou revisitando experiências factuais.

Os 44%, ou os 55% em minha perspectiva mais pessimista, que acreditam para mais ou para menos na hipótese do país se tornar comunista, certamente apresentam baixíssimo letramento político-ideológico em termos canônicos. Vale dizer que, destes que temem uma ameaça comunista no horizonte, há grande percentual que se declara portador de diploma universitário (43% do total da amostra com ensino superior aposta na hipótese comunista – 55% se somarmos também os que discordam só parcialmente do suposto risco vermelho neste estrato). A maior qualificação formal não conferiu imunidade cultural ou cognitiva pelo visto.

Não se trata de exigir que a população da amostra da pesquisa IPEC ande com o Dicionário do Pensamento Marxista de Bottomore debaixo do braço. Mas, a perplexidade generalizada se dá é pela ausência de rudimentos de conhecimento sobre o que seria o comunismo ou a experiência do socialismo real. De alguma maneira seria como se 44% da população da pesquisa (ou os 55% em minha ótica mais sombria) se declarasse inepta para operar somas ou subtrações simples. O levantamento do IPEC também indica lamentavelmente, dentre outras coisas, uma lacuna de conhecimento básico.

Eu reconheço a gravidade do problema e considero louváveis as intervenções abnegadas dos que se esforçaram no esclarecimento sobre o que seria o comunismo em termos factuais ou conceituais. Contudo, eu gostaria de apontar para outra coisa, para algo mais pragmático que importa na atual luta política brasileira para restituir alguma saúde à democracia nativa. Considero que o comunismo que está no horizonte de forma mais ou menos palpável para estes cidadãos, e o que eles temem, é outra coisa, algo para além do cânone ou das experiências do socialismo em Cuba, Coréia do Norte ou no Leste Europeu. O que estamos lidando é com a atualização rarefeita, quase etérea, do anticomunismo.

Heloisa Starling data o nascimento do anticomunismo nacional em 1935[3] por ocasião dos levantes comunistas do período. Desta malfadada experiência, voluntarista para dizer o mínimo, decorreu trabalho sistemático da máquina varguista de perseguição implacável aos membros do partido e simpatizantes, satanização ideológica e deflagração de pânico moral. Todo este trabalho foi muito bem sucedido. Gildo Marçal Brandão costumava lembrar que entre 1922, data de fundação do Partido Comunista Brasileiro, e 1985, período da abertura da ditadura civil-militar em que houve a reconfiguração do sistema político tal como o conhecemos, o PCB gozou de apenas três anos e meio de legalidade plena. Este apagamento, esta vida nas catacumbas do sistema político, jamais seria possível sem ampla legitimidade. E aqui pouco importa, em temos das consequências práticas, se é legitimidade alcançada às custas de iletrados ideológicos.

Portanto, desde 1935 o espectro do anticomunismo assombra a imaginação política brasileira, tendo atuação decisiva nos fatos que desencadearam o golpe de março/abril de 1964. O anticomunismo no período ajudou a conferir eficácia simbólica ao discurso de ditadores, torturadores e de seus apoiadores, seja na sociedade civil ou nos quartéis.

A atual reencarnação do anticomunismo nesta década de 20 do século XXI é enquanto recurso retórico eficiente justamente por seu caráter impreciso, lusco-fusco. Aproveita-se da capilaridade adquirida pelo anticomunismo após décadas de inculcação no inconsciente político nacional. Mas, a atual versão, mobilizada por direita e extrema-direita, é dotada de conteúdo vazio[4]. Portanto, os esforços de esclarecimento formal ou factual aí não penetram. Não se trata de uso público da razão ou algo que o valha. O termo é usado como arma política de mobilização contra os adversários, e aqui qualquer adversário. Partido dos Trabalhadores, movimentos LGBTQI+, feministas, ambientalistas, médicos sanitaristas.. fiscais de posturas, multas de trânsito.. libearis! Tudo e todos, rigorosamente tudo pode entrar no comunismo dotado de conteúdo vazio e neste anticomunismo rarefeito, militante e popular contemporâneo. Comunista é o inimigo, aqui no sentido schmittiano, que se opõe ao meu grupo. É antiesquerda e além.

Portanto, pasmem, talvez a eleição de Lula para o grupo que vislumbra o comunismo no horizonte, tenha significado passo firme em direção ao regime que promete a socialização dos meios de produção.

O que fazer? Seguir saneando a opinião pública é trabalho necessário e importante, até para sairmos desse lodaçal discursivo que não interessa ao regime democrático. É fundamental que as coisas e seus devidos nomes se associem, aí pouco importa se para críticos ou simpatizantes ao comunismo. É preciso instituir qualidade na discussão pública. E junto a isso, nos resta é a boa, velha e pouco quista luta política, a ocupação de espaços institucionais, nos veículos de opinião, etc.. Se não o fizermos, os paranoicos que veem fantasmas comunistas até mesmo em borras de café, o farão.

 

* Ilustração de Maurenilso Freire publicada no Correio Braziliense em 21 de março de 2023. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2023/03/5081751-nas-entrelinhas-o-fantasma-do-comunismo-renasceu-com-o-bolsonarismo.html, acesso em 28 de março de 2023.

** Professor da área de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos. É um dos coordenadores do Imagina-Sul (Grupo de Estudos e Pesquisas do Pensamento e da Imaginação Política no Sul do Mundo).

 


[1] O relatório completo da pesquisa IPEC pode ser consultado aqui: https://www.ipec-inteligencia.com.br/Repository/Files/2218/Job_22_1925-3_Avaliacao_Relatorio_de_tabelas_Imprensa.pdf. Acesso em 27 de março de 2023.

[3] STARLING, Heloisa Murgel. O passado que não passou. In: Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. Sâo Paulo: Cia das Letras, 2019.

[4] Starling, Op. Cit., 2019.

sábado, 2 de dezembro de 2017

As muitas mortes dos comunistas

As muitas mortes dos comunistas*

George Gomes Coutinho **

Em maio de 2016 Eduardo Bolsonaro, deputado federal pelo PSC de São Paulo, apresentou o projeto de lei 5358/16. A proposta do ilustre deputado, nascido em 1984 e muito jovem para replicar clichês da Guerra Fria, envolve na melhor das hipóteses a reedição do Macartismo entre nós. Uma outra alternativa seria a confissão da mais profunda e orgulhosa ignorância histórica. Ou no pior, como diria meu avô, a proposição do projeto de lei é como colocar uma melancia no pescoço: uma forma um tanto tola de chamar a atenção.

Talvez na imaginação pouco informada do deputado o Partido Comunista Norte-Coreano e o Partido Comunista Britânico, mormente uma entediante reunião de senhores como disse o historiador Eric Hobsbwam (1917-2012) em sua autobiografia, sejam mesmíssima coisa.

Entre nós, olhando os comunistas brasileiros, não seria novidade este tipo de tentativa de eliminação inquisitorial. Afinal, como sempre frisava o cientista político alagoano Gildo Marçal Brandão (1949-2010), o Partidão entre 1922 e 1985 vivenciou pouco menos de 3 anos e meio na legalidade. Nada original, o projeto do jovem Bolsonaro seria só mais uma dentre as muitas mortes dos comunistas em nossa realidade. A ilegalidade mata como diria Brandão.

Não desconsiderando sua dualidade constitutiva no Brasil, entre a via insurrecional e a “civilista” ou institucional de ação, não custa lembrar que a partir do auto-reconhecimento das atrocidades cometidas nos regimes comunistas realmente existentes desde a década de 1950 do século passado, incontáveis e relevantes comunistas brasileiros firmaram postura intransigente em prol da democracia.

Desde a auto-crítica do Partido, que reconsiderou o papel de Vargas no processo de modernização do país e defendeu a normalidade institucional, até a participação dos comunistas na clandestinidade na Frente pela democratização no esfacelamento da ditadura civil-militar, vimos intervenções, militância e ações que incluem a necessidade da defesa sem tréguas das liberdades fundamentais. Postura diametralmente oposta do deputado e sua platéia. Ah! Cabe dizer que o tal projeto de lei anti-comuna continua parado. Deve ser por sua relevância.

* Texto publicado em 02 de dezembro no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

sábado, 26 de agosto de 2017

“Privatismo”

“Privatismo”*

George Gomes Coutinho **

V. I. U. Lênin (1870-1924) em 1920 publicou o seu “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” onde apresentou um conjunto de críticas aos comunistas e a outros grupos na esquerda do espectro político então atuantes na Europa Ocidental do período. Resumidamente o argumento de Lênin se centrava em demolir a postura de “fuga” da realidade em prol do apego a princípios morais e/ou valorativos abstratos. É um texto pragmático e as afinidades com a tradição do realismo político de Maquiavel (1469-1527) são evidentes.

Retomando o argumento leninista, a vitória do realismo só seria possível mediante o exercício da auto-crítica. Nesta direção, a narrativa se utilizou da história como ferramenta. O olhar em retrospectiva é mobilizado para realizar um balanço, por vezes duríssimo, das opções e ações visando combater um esquerdismo que, aos olhos do líder da revolução soviética, seria uma demonstração de infantilidade. A despeito de termos apreço ou não por Lênin, o pequeno livro guarda uma importante lição: sem rigor e honestidade intelectual não saímos da infância política, não produzimos o salto que leva ao amadurecimento. Esta advertência cabe tanto para a direita quanto para a esquerda evidentemente.

Na atual conjuntura, dentre outros “ismos” reeditados no Brasil contemporâneo, o “privatismo” ressurge como cadáver insepulto. É mais uma das soluções mágicas apresentadas no calor do momento que prometem solucionar problemas estruturais de longa duração com um estalar de dedos. Contudo, as experiências da privatização em larga escala nos governos Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) não foram suficientemente debatidas diante dos benefícios e efeitos negativos causados. Há perguntas que precisam de respostas antes que venha uma segunda onda de privatização em larga escala, tal como o Governo Michel Temer anda propondo: quem realmente ganhou? Os valores de venda do patrimônio da sociedade foram justos? Haverá financiamento público, mais uma vez, com uma taxa de juros “de pai para filho”? Sem responder estas e outras perguntas fundamentais a privatização é “privatismo”, sintoma infantil de um liberalismo igualmente imaturo.


* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 26 de agosto de 2017

 ** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes