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quinta-feira, 30 de maio de 2024

MBL, Brasil Paralelo e Fundação Lemann juntos na formação do trabalhador sem emprego

 

Foto: José Fernando Ogura/AEN

* Leonardo Sacramento


Por que a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo está usando vídeos do Brasil Paralelo e MBL?[i] Por que fundações de bancos e bilionários, como Fundação Lemann, Instituto Itaú Social e Instituto Ayrton Sena, se instalaram no Ministério da Educação? Qual é a relação do Brasil Paralelo e MBL com a Fundação Lemann, Instituto Itaú Social e Instituto Ayrton Sena? Qual é a relação entre revisionismo reacionário e neoliberalismo? Qual é a articulação de institutos da burguesia e “movimentos” da extrema-direita com as propostas de Educação Integral, Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e Novo Ensino Médio?

A esquerda defende uma formação ampla e humanista vinculada ontologicamente ao trabalho, às artes, à filosofia e à compreensão da realidade, ou seja, uma educação cujo princípio esteja no trabalho enquanto elemento que nos faz humanos. A classe dominante, em contrapartida, sempre impôs uma educação para o emprego, ou melhor, à adaptação ao emprego. Formar, à luz do taylorismo, do fordismo e do toytismo, o trabalhador produtivo. Contudo, estamos sob o neoliberalismo. A nova proposta educacional do capital é formar para o “não emprego”, pois não existem mais. Dessa forma, o neoliberalismo transforma educação integral em educação de tempo integral procurando preencher o tempo do jovem sem emprego com uma matriz distinta da formação parcializada sob a acumulação fordista/taylorista e/ou toyotista. A parcialidade não é mais suficiente.


A conjuntura neoliberal é complexa. A expectativa da geração mais nova de ultrapassar a renda dos pais, reproduzindo ao menos os seus empregos, em conformidade com o sonho da classe média dos Estados de Bem-Estar Social nos países centrais no pós-guerra, não existe mais. Há duas gerações, no mínimo, a renda cai em relação aos pais. Se antes setores específicos da classe trabalhadora tinham acesso à casa própria, emprego razoavelmente estável e um salário com bom poder aquisitivo, hoje se amontoam gerações de jovens sem qualquer expectativa de reprodução positiva de classe, resultando na ascensão de ideologias fascistas da extrema-direita sobre jovens homens e brancos, como o neonazismo.


Explicações simplistas trabalhadas nas redes sociais e deep web, como as que responsabilizam a imigração nos países centrais e as políticas afirmativas no Brasil, são propagadas abertamente como um falso paradoxo à esfinge do bom liberal que se utiliza do fascismo para aprovar reformas ultraneoliberais. Os banqueiros também disputam os jovens e, não paradoxalmente, na prática se aliam a movimentos de extrema-direita vinculados à essência de qualquer grupo neonazista, como o MBL e o Brasil Paralelo. O negacionismo é um método político. Somente é possível negar a exploração capitalista sob a hegemonia da acumulação rentista por meio da negação da História (materialismo histórico), transformando o indivíduo em senhor de si, ou como dizia Hayek, no indivíduo soberano, inclusive (por que não?) em oposição à soberania do Estado-Nação.


Para as fundações de banqueiros e bilionários, faltariam aos “pobres” estudo e educação para gerarem renda, ressuscitando preceitos apologéticos da Teoria do Capital Humano, agora insuflados pela Teologia da Prosperidade. Essa nova proposta dialoga com a defesa de uma escola bifurcada, uma para a classe trabalhadora e outra para a classe média tradicional e a burguesia, ao mesmo tempo que se aproxima de problemas urgentes da classe trabalhadora, como o afastamento do filho da violência. Logo, é eficiente politicamente.


A educação em tempo integral, a BNCC e o Novo Ensino Médio se fundamentam em teorias e propostas utilitaristas, solipsistas e fragmentadas, com a apresentação de proposituras anticientíficas que mitificam a realidade, como o empreendedorismo. Para tanto, fundamentam-se em uma lógica oficineira, na qual tudo pode ser conhecimento escolar por meio de uma transposição mecânica da ideologia empresarial para a classe trabalhadora (“pequeno patrão”).


Os professores não devem mais ter formação, pois devem ser polivalentes, práticos e com formação “fluída”, derivando uma enorme fragmentação da realidade que aliena ainda mais o aluno por tornar a miséria produto de suas escolhas.  


Ciência não existe mais. É um ensino negacionista. É o que explica a utilização de vídeos do Brasil Paralelo e MBL, uma vez que agora os conhecimentos não científicos são o parâmetro pedagógico ideal para a adaptação da classe à exploração neoliberal (precarização, somatização de doenças e ausência de perspectiva). Ocorre que não são apenas os vídeos. O golpe já foi dado.


A implosão das bases cientificas do trabalho pedagógico é legalizada e legitimada na BNCC e no Novo Ensino Médio. Essas duas medidas relativizam o conhecimento científico, tornando-o em saberes e competências a serem apreendidos pelo jovem em um mundo que seria informatizado e tecnológico. Se o Brasil passa por um processo de desindustrialização e desnacionalização de sua economia pouco importa, pois a tecnologia pensada e trabalhada é a do senso comum, é a das plataformas precarizantes como Uber e Ifood e de aplicativos de celular. Em outras palavras, é a radicalização de uma abordagem fetichista da tecnologia submetida à perspectiva do consumidor e do trabalhador precarizado formados pela ideologia do pequeno patrão.


O negacionismo historiográfico, histórico e sociológico é fundamental para os segmentos sociais dominantes porque naturaliza a posição que possuem, transmitindo a ideia liberal-escolanovista de que conseguiram o status em uma disputa aberta e justa sobre um sistema meritocrático que formou uma sociedade alicerçada na “hierarquia das capacidades”.[ii] O autoritarismo da escolha da profissão, por exemplo, se daria apenas se o Estado interviesse, jamais como produto das relações econômicas, sociais e políticas.


Assim, assiste-se à glorificação pelo ideário liberal das figuras do herdeiro escravista oitocentista e do bilionário salvador enquanto o mesmo ideário justifica a oposição à legislação trabalhista, às cotas e ao Bolsa-Família, refutando qualquer intervenção do Estado (autoritarismo), inclusive para salvamento de vidas em eventos ambientais e climáticos, como ocorre no Rio Grande do Sul.  


É aqui que entram o MBL e o Brasil Paralelo na jogada. Negação do papel do escravismo, do embranquecimento, da segregação e da desigualdade para a concentração de capitais e da propriedade privada reforça a ideologia da classe dominante que não pode mais disfarçar as mazelas do neoliberalismo, ao mesmo tempo que precisa naturalizar ideologicamente os seus capitais ocultando as suas origens e seus “pecados”. No limite, há a defesa da negação da exploração do capital sobre o trabalho, cuja defesa das mazelas do capitalismo em sua fase rentista fetichiza o indivíduo “selecionado e forte” (darwinismo social), transformando-as em currículo positivo ao jovem com uma educação adaptativa para o não emprego. Chamemos de fetichismo da meritocracia.


Antes do negacionismo biológico e físico, que negam a vacina e o formato do planeta, o negacionismo histórico, historiográfico e sociológico foi, por anos, arma de luta da classe dominante usada por grupos que se popularizaram com forte financiamento do capital e auxílio dos algoritmos das plataformas privadas de bilionários estrangeiros. Legitimado, o negacionismo entrou no currículo articulado no Ministério da Educação por fundações de direito privado ligados a bilionários objetivando naturalizar a acumulação rentista.


A atuação desses grandes bancos não pode ser entendida como normalmente se apresenta, na qual estaria circunscrita em ganhar recursos de secretarias e ministério e isentá-los no imposto de renda. São aspectos absolutamente marginais do trabalho das fundações de bilionários. Muitas vezes, a atuação desses institutos não possui qualquer transferência de recursos públicos.[iii] Não faz sentido pensar com essa variável mecanicista, pois nenhum setor acumula mais do que bancos e rentistas por meio da isenção de lucros e dividendos e das exorbitantes taxas bancárias e de juros. O interesse está na formação do trabalhador neoliberal.


É que se percebe nas propostas do governo do Estado de São Paulo, possuidor da rede que mais avançou em tais políticas em virtude de sua aplicação ininterrupta por 30 anos. Reproduzimos no presente texto uma proposta da aula de “liderança” da rede estadual para alunos do ensino médio. As três primeiras fotos são da aula de “liderança”, tratando um conceito não científico, a resiliência. Aqui o aluno é preparado para suportar o não emprego e convencido a entender a realidade a partir de sua vida e “escolhas”.

 

Foto 1

 

Foto 2

 

Foto 3


A autora utilizada (foto 2), Diane L. Couti, é uma coaching (jornalista) que escreveu um artigo denominado How Resilience Works na Havard Business Review. Não há qualquer citação de dado científico no pequeno artigo, o qual é jornalístico e panfletário. As referências da jornalista são frases de CEOs de grandes empresas em que é destacado um pensamento do CEO Dean Becker: “Mais do que educação, mais do que experiência, mais do que formação, o nível de resiliência de uma pessoa determinará quem terá sucesso e quem fracassará. Isso é verdade no adoecimento de câncer, é verdade nas Olimpíadas e é verdade na sala de reuniões”. Qual é o parâmetro científico dessa besteira normalmente proferida por coachings?


A conclusão da aula (foto 3) exige que os alunos passem a aplicar o que aprenderam, a “resiliência”, encarando “a realidade” e buscando “sentido” para “improvisar”. A realidade, produto das relações de produção, da exploração e da desigualdade, é mistificada porque deve ser apreendida para ser encarada, ou melhor, aceita como ela é para ser suportada. Não existe mais a aprendizagem, a compreensão e a análise. A improvisação, por sua vez, é uma figura de linguagem malfeita para que o aluno “se vire”.


As três fotos seguintes mostram o que seria a aula de sociologia.

 

Foto 4


Foto 5


Foto 6


 

Concatenada com a aula de “liderança”, os alunos são convencidos na aula de sociologia a acreditar que “ansiedade” e “depressão” são frutos do “consumismo” porque viveriam em uma “sociedade de consumidores”. Aqui se tem literalmente a ideia apregoada por qualquer think tank neoliberal que não existiriam classes sociais, mas apenas indivíduos consumidores, na qual a sociedade não possuiria qualquer dimensão coletiva por estar submetida aos gostos dos consumidores e à precificação das mercadorias em relação de oferta e demanda cuja variável determinante seria o consumo. Logo, quem tem poder é o consumidor em detrimento da cidadania emanada da Constituição de 1988 (políticas sociais), do trabalhador e do movimento político.


Nega-se a existência de classes, racismo, especulação imobiliária, concentração de terra, acumulação de capitais, exploração etc. Mesmo conceitos mais amenos, como gentrificação, são expelidos do material didático. A aula de sociologia dialoga com a aula de “liderança” na medida que exige ao aluno praticar um novo comportamento adaptativo e adaptável à “realidade”, com “condutas éticas frente aos desafios da sociedade de consumidores”. Se há alguma luta, é como consumidor, escolhendo não consumir produtos de empresas “que prejudicam seus empregados, a sociedade ou o meio ambiente”. O pronome possessivo “seus” dando direito de propriedade à empresa não foi um erro. 


Se o aluno enquanto indivíduo conseguir superar o “consumismo” por meio do poder da mente (charlatanismo), ou seja, não querer consumir o que é convencido (sugestionado) por meio de propagandas de grandes complexos industriais-financeiros desde que nasceu, não terá “depressão” e “ansiedade”. A lógica implícita é a de uma aula de autoajuda, não ornando com os dados mais básicos: o grupo social que mais comete suicídio é o de trabalhadoras negras, aquelas que, comprovadamente, possuem menor renda, piores trabalhos, menor consumo e, por conseguinte, o que o material chama de “consumismo”. O material irresponsavelmente estabelece uma relação criminosa de causa e efeito entre consumo e depressão, na qual a depressão poderia ser evitada com um consumo “responsável” (sic!).


A entrada do Brasil Paralelo e do MBL é uma consequência coerente do negacionismo neoliberal. Na prática, tais movimentos de extrema-direita já estão na educação brasileira há alguns anos, especialmente no Ministério da Educação, representados oficialmente por Fundação Lemann, Instituto Itaú Social e Instituto Airton Sena. É uma proposta de educação para o não emprego amparada exclusivamente pelo negacionismo científico como método didático-pedagógico e matriz curricular nacional. É a expressão da vitória do neoliberalismo.

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*Leonardo Sacramento 
É professor de educação básica na rede pública de Ribeirão Preto e pedagogo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, atualmente pesquisa a relação entre movimentos conservadores e liberalismo. É autor dos livros Universidade Mercantil: um estudo sobre a relação entre universidade pública e capital privado (Appris, 2019), O Nascimento da nação: como o liberalismo produziu o protofascimo brasileiro (2023, Editora IFSP) e Discurso sobre o branco: notas sobre o racismo e o apocalipse do liberalismo (2023, Alameda). 


[iii]A Fundação Lemann defendeu o acordo de cooperação entre o MEC (Ministério da Educação) e a ONG MegaEdu, financiada pelo grupo ligado a Jorge Paulo Lemann. Em nota publicada na 2ª feira (25. set. 2023), a fundação diz que a parceria ‘não envolve nenhum tipo de transferência de recursos’”. Disponível em https://www.poder360.com.br/educacao/fundacao-lemann-defende-parceria-de-ong-com-o-governo/#:~:text=A%20Funda%C3%A7%C3%A3o%20Lemann%20defendeu%20o,tipo%20de%20transfer%C3%AAncia%20de%20recursos%E2%80%9D.


terça-feira, 28 de setembro de 2021

O que “Camarada”, de Jodi Dean, nos ensina sobre a desorientação da esquerda brasileira?


O que “Camarada”, de Jodi Dean, nos ensina sobre a desorientação da esquerda brasileira?

Paulo Sérgio Ribeiro

O mês de setembro testemunhou uma manifestação da extrema direita que tanto reflete a inviabilidade de Jair Bolsonaro na corrida presidencial como confirma que a base social do bolsonarismo adquiriu moto-próprio para rebaixar o teto da nossa imaginação política em um eventual cenário de vitória da esquerda (ou centro-esquerda) em 2022. Este apontamento aparenta ser consensual dentre analistas mais argutos da conjuntura nacional. Todavia, ao olharmos com maior relevo para o ato realizado em 12 de setembro e, mais recentemente, para a escaramuça envolvendo um ator com posicionamento coerente na construção de nossa democracia – José de Abreu – e a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP)[1], adentramos numa zona nebulosa da disputa de ideias que organiza o campo progressista.

O Movimento Brasil Livre (MBL) e o movimento “Vem pra Rua Brasil” convocaram atos contra Bolsonaro em São Paulo e noutras capitais prometendo reunir sem sectarismo diferentes atores políticos para tal ordem do dia. Porém, no seu principal palco, a Avenida Paulista, não foi surpresa o protesto ter sido uma deixa para o “Nem Bolsonaro, nem Lula”[2], reforçando pois o antipetismo como a corrente de opinião duradoura da fração protofascista dos setores médios, assim como um recurso sempre à mão para uma direita liberal travestida de “terceira via” em sua busca inglória por um presidenciável capaz de vocalizar a falsa simetria entre um democrata autêntico, Lula, e um indigente em todos os sentidos que a ditadura civil-militar nos legou.

Fato é que os atos de 12 de setembro foram um verdadeiro fracasso, servindo tão somente para devolver o MBL e o Vem Pra Rua à sua condição de idiotas inúteis do conservadorismo brasileiro, que, não obstante, continua sendo a esfinge que nos ameaça devorar. Se no dia 07 de setembro, os partidos da centro-esquerda e os movimentos populares puderam – com certas vacilações táticas, é verdade – contrapor-se à malta verde-amarela que se impôs em número expressivo na capital paulista, no dia 12 ocorreriam iniciativas que, no mínimo, demonstram ser distante a tão sonhada unidade de ação no campo progressista: a deputada estadual Isa Penna (PSOL-SP) e o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) emprestarem sua voz em um evento cuja estética e propósitos são inconciliáveis com a própria causa antifascista que seus partidos historicamente encarnam.

Não entro no mérito das motivações – verbalizadas ou não – de tais parlamentares. Afinal de contas, eles respondem a uma disciplina partidária e esta deverá ser aplicada pelas respectivas direções dos partidos. Em bom português: PSOL e PCdoB que assumam os seus “BOs”. Tento avaliar apenas como esse constrangimento evidencia um estado de desorientação (e de omissão?) da esquerda brasileira diante da tensão entre socialismo e liberalismo que perpassa as lutas pelo monopólio do poder social, ganhe tais concepções de mundo as roupagens que houver.

Ora, se a alegação de Isa Penna de que é necessária uma interlocução com pessoas comuns de perfil direitista mesmo em manifestações públicas da extrema direita[3] e de Orlando Silva, que atribuiu aos seus críticos a pecha de “gabinete do ódio” da esquerda[4] pareça, em princípio, razoável por figurar uma tentativa de construir pontes a partir dos valores de uma esquerda que aceita com resignação a centralidade da luta institucional, há em suas posições a premissa equivocada de que a disputa por hegemonia corresponda à busca de uma linha média entre adversários que não são apenas adversários, mas inimigos intransigentes na luta de classes.

Admitir tal intransigência em sua positividade, claro, requer senso de proporção diante do efetivo poderio que seus contendores disponham. Definitivamente, este atributo da vocação política faltou a José de Abreu ao fazer um “retuíte” de uma mensagem violenta endereçada a Tabata Amaral, que também se fez presente na Avenida Paulista em 12 de setembro. Não há como negligenciar as implicações éticas de um homem intimidar uma mulher. José de Abreu fez merda e não tardou a reconhecê-lo ao afirmar, em entrevista concedida à pedagoga e ativista feminista Lola Aronovich, que pedirá desculpas publicamente à Tabata Amaral[5].

Por óbvio, Tabata Amaral não teria por que deixar por menos. Não só notificará o ator na Justiça[6] como maneja desde então o incidente para fazer de um problema concreto – o machismo dentre homens de esquerda – o mote para investir em um discurso vazio: superar a “polarização” entre centro-esquerda e centro-direita que, conjugado ao imperativo moral da denúncia da violência política calcada no sexismo, torna-se um belo estilingue para a direita liberal que se apropria dos clichês das lutas identitárias para dar um verniz civilizatório à sua agenda regressiva.

Doravante, creio ser um desserviço enxergar nesse episódio um tamanho maior do que ele tem por dois motivos autoevidentes:

1.   José de Abreu nunca esteve à venda e não precisa ser pautado moralmente por uma preposta do capital financeiro que comove a esquerda “namastê”;

2.   Em relação a esta circunstancial oposição de direita ao Governo Bolsonaro, a realidade brasileira subverte a máxima de Carl Schmitt: o inimigo do meu inimigo nem sempre é meu amigo.

Dada a impossibilidade de seguir cegamente a máxima schmittiana, podemos lembrar aqui das lições de Jodi Dean[7] sobre uma relação política que tenha por fundamento a camaradagem. Para Dean, qualquer um, mas nem todo mundo, pode ser camarada:

 

A noção de que qualquer um, mas nem todo mundo, pode ser um camarada reforça o modo pelo qual “camarada” dá nome a uma relação que é, ao mesmo tempo, uma divisão. A camaradagem tem como premissa a inclusão e a exclusão: qualquer um, mas nem todo mundo, pode ser um camarada. Não é uma relação infinitamente aberta ou flexível: trata-se de uma relação que pressupõe divisão e luta. Existe um inimigo. Mas, ao contrário da descrição clássica de Carl Schmitt do político em termos da intensidade do antagonismo entre amigo e inimigo, a camaradagem não diz respeito ao inimigo. O fato do inimigo, da luta, é a condição ou o cenário da camaradagem, mas não determina a relação entre os camaradas. Camaradas são aqueles que se encontram do mesmo lado da divisão. Em relação a essa divisão, eles são o mesmo. Sua condição comum é a de se encontrar do mesmo lado. Dizer “camarada” é anunciar um pertencimento, e a condição comum de estar do mesmo lado (DEAN, 2021, p.106).

 

Isa Penna, Orlando Silva e José de Abreu cometeram erros, mas não tenho por que deixar de reconhecê-los como camaradas. Já a misoginia que se volta contra Tabata Amaral  sem dúvidas, execrável  não a torna necessariamente uma “aliada” na longa luta travada contra os donos do poder.



[1] Folha de S. Paulo. “Se encontro na rua, soco até ser preso”, retuitou José de Abreu. Edição de 24/09/2021. Disponível aqui.

[2] El País. O Brasil que não quer Bolsonaro nem Lula consegue um apoio tímido nas ruas. Edição de 12/09/2021. Disponível aqui.

[3] Revista Fórum. Isa Penna: Não tenho nenhuma ilusão de construir uma nova sociedade com o MBL. Edição de 11/09/2021. Disponível aqui.

[4] Diário do Centro do Mundo. Orlando Silva defende Tico Santa Cruz e reclama de “dois” gabinetes do ódio. Edição de 13/09/2021. Disponível aqui.

[5] Fala Lola Fala. Live com Zé de Abreu sobre seu machismo. Disponível aqui.

[6] Isto é. Tabata Amaral decide notificar José de Abreu na Justiça após publicação. Edição de 22/09/2021. Disponível aqui.

[7] DEAN, Jodi. Camarada. Um ensaio sobre pertencimento político. São Paulo: Boitempo, 2021.