O amor na alta
modernidade *
George
Gomes Coutinho **
Peço licença ao editor para sair
da seara dos processos de tomada de decisão sem abandonar a reflexão sobre as
mudanças que ocorrem em nossos tempos. A política é das manifestações mais
evidentes, tal como a economia, de que o mundo que conhecemos no século XX
desmoronou. Mas, há outras formas mais sutis para pensarmos essas mesmas
mudanças. Uma delas é justamente a esfera das relações íntimas.
O leitor menos próximo das
trincheiras onde decidi fincar bandeira pode perguntar com ares de
perplexidade: o que sociólogos em particular ou cientistas sociais em geral
podem dizer sobre o amor? A resposta soa desconcertante. As relações afetivas
são objeto de pesquisa, ensaios e produções diversas há muito na sociologia.
São espaços onde se estruturam, de forma prática e em narrativas, formas de
convivência que redundam tanto na reprodução humana quanto em maneiras de
conviver. Flertes, namoros, casamentos,
amantes, dizem muito sobre o nosso processo civilizatório. Cada período
apresenta os seus próprios critérios de legitimidade tal como ocultam e
reprimem outros formatos. Afinal, desde
sempre há o “amor que ousa dizer seu nome” e circula nas catacumbas da esfera
pública.
O sociólogo polonês Zygmunt
Bauman em sua série liquida sobre a sociedade observa com certo ceticismo
saudoso o status adquirido pelas relações afetivas no atual momento. Bauman
argumenta que o caráter demasiado efêmero adotado pelo amor hoje mantém
afinidades com as práticas de consumo. Tudo é descartável, o que inclui os
seres humanos. Desta maneira, os nossos amantes não duram mais que uma estação.
As raízes não se estabelecem e o vazio afetivo viceja.
Eu sou menos nostálgico que
Bauman. Talvez na faceta contemporânea do amor onde “tudo que é sólido se
desmancha no ar” esteja a possibilidade de sairmos dos últimos resquícios ossificados
da tradição e do imaginário trágico shakespeareano. Um cenário onde indivíduos
independentes e livres se relacionam pelos sentimentos em si e por nenhuma
outra razão. Que valha a adaptação que fiz de Étienne de La Boétie: “Porque era
eu, porque eras tu” e nada mais.
* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 22 de outubro de 2016
**Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes
**Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes