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segunda-feira, 5 de julho de 2021
quarta-feira, 27 de maio de 2020
Do reacionarismo para a imaginação política interditada
Do reacionarismo para a imaginação política interditada
George Gomes Coutinho
Carreatas da
morte. Pessoas de verde e amarelo nas ruas e praças bradando contra medidas de
distanciamento social. Berram contra governadores e prefeitos que consideram corruptos,
isso a despeito de ostentarem a insígnia da invariavelmente suspeita CBF no
peito. Consideram que a economia deve ser protegida übber alles como diria aquele slogan famoso. As mortes e o
sofrimento são fatalidades incontornáveis do destino. “E daí?” não é mesmo?
Buscam um remédio a todo custo. Pode ser chá
de boldo ou cloroquina. Afinal, se há remédio não há razão para que as pessoas
fiquem em casa. Em meio a tudo isso discursos de ódio xenofóbicos. Há um “vírus
chinês” e tudo o mais que lhe seja correlato, seja o próprio povo ou o Partido
Comunista, deve ser encarado com nojo, desprezo ou violência.
Sem dúvida temos acima fragmentos da atuação
da extrema-direita que grassa no Brasil da Pandemia de Covid-19. Concordando
com Ribeiro da Silva Jr (aqui) há a indiscutível presença do reacionarismo ou
aquilo que Lynch já chamou de “conservadorismo culturalista” com fortes tintas
autoritárias e anti-liberais. Há o que podemos definir como uma extrema-direita
militante, organizada e dotada de alguma clareza ideológica sobre os seus
valores, ideais, elementos simbólicos e normativos que devem constituir um
projeto de Brasil para este século XXI.
Mas, vamos tentar supor que
nem todos e todas que tenham ido para as ruas protestar nestes tempos de distanciamento
social estejam organicamente vinculados a um projeto autoritário e reacionário
de poder. Nas eleições de 2018 conhecemos o desconcertante voto “BolsoLula” ou
“LulaNaro”[1]
onde a genuína busca por “melhorar a vida” fez com que parte do eleitorado fosse
capaz de votar no 13 e no 17 a despeito dos debates inerentes ao cipoal
ideológico. O que mobiliza este eleitorado é a aposta em obter incrementos
positivos, mesmo que conjunturais, apostando no rito e consequente sucessão
eleitoral como uma via para obtenção destes objetivos.
E se parte do
grupo raivoso presente nas ruas simplesmente sofrer do déficit de imaginação
política ante o enfrentamento, por um caminho humanista, totalizante e empático,
da pandemia? E se uma imaginação política pautada pela solidariedade for
interditada, combatida e até mesmo ridicularizada por determinados grupos e
setores que compõe a polifonia de nossa opinião pública?
O termo
imaginação política foi apresentado por Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019)
ainda na década de 1960[2].
Em última instância ele localizava, desde 1822, um conjunto de autores,
temáticas e obras onde o Brasil era imaginado em suas instituições, políticas,
modelos de governo, processos de auto-compreensão, etc.. Enfim, produção
espiritual que não se pode enquadrar propriamente como articulação teórica
sistemática, mas, animava e anima os debates e ações políticas concretas. São as
articulações de nossa cultura política que segue dos panfletos ao que podemos chamar
de “obras fundadoras”[3]
do nosso processo de nation state
building. Produtos culturais de origem diversa que alimentam nossa opinião
pública.
Também é dado no campo da imaginação
política o repertório do debate onde o possível
se apresenta. E o impossível também.
É importante
notar que parte dos grupos que vão para as ruas em plena pandemia protestar
contra as medidas de distanciamento recomendadas pela Organização Mundial de
Saúde talvez façam desta forma por simplesmente não vislumbrarem outra
alternativa. Para ser mais preciso, não lhes foi dada uma alternativa concreta
e segura para a manutenção de sua própria sobrevivência. Seja enquanto política
pública ou por conta de um debate político interditado.
A imaginação política acerca das políticas
sociais e assistenciais por parte dos setores dos dois lados do espectro
político sempre foi crítica. Não seria diferente em nossa conjuntura, por mais
chocante que possa soar. Estes do lado destro[4]
da política brasileira são os grupos que se encontram atuando no Governo
Federal e em outros níveis de governo, em parte do mainstream da imprensa em jornais, revistas e TV. Também encontram
representantes em associações empresariais, no setor financeiro, dentre
economistas profissionais, etc.. Para estes qualquer ação remotamente dotada de
natureza redistributivista é vista em perspectivas diferenciadas que se
complementam em termos práticos: desde reduzidas a um mínimo constrangedor sob
o argumento da racionalização fiscalista, o tal cobertor curto, até serem
combatidas por gerarem um suposto desincentivo ao trabalho. Por vezes políticas
sociais e assistenciais são até mesmo satanizadas e seus usuários
estigmatizados.
Estas
disposições que explicam parte da constelação que forma a nossa opinião pública
ajudam a entender o caminho acidentado de nossa Renda Básica Emergencial.
Primeiramente sequer era algo concebível. Depois se apresentou em sua faceta
esquálida, os famosos R$ 200,00 da
equipe de Paulo Guedes. Por fim, após os já tradicionais e persistentes embates
entre legislativo e executivo no Governo Bolsonaro, chegamos aos R$ 600,00 em 3
parcelas mensais, algo que ainda não
soluciona a questão.
O design da política pública foi feito para repelir os setores mais vulnerabilizados da sociedade: 1) aqueles que não detém cidadania formal no mercado (não são portadores de cidadania bancária digamos assim); 2) não detém a documentação necessária (não são reconhecidos formalmente pelo Estado); 3) não são “nativos digitais” (apresentam todas as dificuldades formais e concretas para que obtenham uma cidadania digital plena). Por conta dos motivos elencados há o risco de termos 7,4 milhões brasileiros elegíveis para este política pública sem qualquer cobertura[5]. Uma tragédia.
Dificuldades
não menos relevantes podem ser indicadas quando falamos de micro e pequenos
empresários que não raro constituem a fauna das tais carreatas da morte.
Grupos que não tem caixa para aguentarem os meses de distanciamento social sem
o auxílio de algum tipo de linha de crédito que lhes permita, sob 0% de juros
ou taxas similares, manterem seus negócios e os empregos agregados. Na ausência
de uma efetiva política de crédito temos as alternativas que envolvem
dilapidar patrimônio, demissões, falências, etc. justamente de fatia do empresariado que
emprega trabalhadores formais e informais em grande monta. Mas, Guedes foi
enfático na reunião de abril, a tal reunião de horrores, onde afirmou: “Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar
grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas
pequenininhas”[6].
Neste caso temos a demonstração de como funciona a imaginação política de
indivíduos e grupos mais próximos ao “andar de cima” da sociedade brasileira.
Em ambos os casos, seja nas expressões de nossa
imaginação política que criminalizam políticas sociais ou assistenciais ou na
preferência claramente expressa em prol do grande empresariado em detrimento de
micros e pequenos, temos a interdição da solidariedade. É uma imaginação
política que inviabiliza, até repele, qualquer tipo de medida de Welfare, de Bem-Estar Social. Seja por
conta de um repertório supostamente racionalizante ou no campo semântico que
considera políticas sociais, assistenciais ou até mesmo políticas econômicas
para pequenos empresários simplesmente uma baboseira.
Não é simples. Mas, inserir mecanismos de
solidariedade que envolvam práticas concretizadas em politicas públicas é parte do exercício de imaginação política que
diga que tipo de Estado-Nação queremos durante e após pandemia. É tarefa
urgente e civilizatória para o Brasil. Talvez seja um dos caminhos possíveis para
honrarmos o sofrimento coletivo que estamos vivenciando, incluso milhares de
mortes desnecessárias, onde a imaginação política interditada simplesmente se
demonstrou insuficiente para lidar com esta conjuntura.
[1] Mais
detalhes podem ser obtidos na seguinte matéria da BBC Brasil: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45323102
[2] “A imaginação político-social brasileira” de 1967 publicado na revista Dados. O texto encontra-se disponível aqui: https://drive.google.com/file/d/1JZ11NqfUItw-VXAxI_McsROG734QxPcM/edit
[3] Sobre estas oportunamente Lynch nos questiona se não cabe considerarmos as mesmas como produção teórica: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582013000400001
[4] As criticas de parte do campo da extrema esquerda e da esquerda propriamente são de outro teor, o que envolve, dentre outros apontamentos, o esmaecimento da luta de classes. Não irei entrar nos meandros desta crítica neste momento pelo simples fato de que estes grupos não se encontram com instrumentos de tomada de decisão na conjuntura ao ponto de serem óbices ao enfrentamento adequado da pandemia em suas consequências sociais e econômicas.
[5] Dados do Centro de Estudos da Metrópole. É possível acessar as análises visitando o seguinte link: http://agencia.fapesp.br/pesquisa-apresenta-o-perfil-dos-elegiveis-para-receber-a-renda-basica-emergencial/33220/
[6] A transcrição da reunião ministerial de 22/04/2020 pode ser acessada aqui: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/leia-integra-da-transcricao-do-video-da-reuniao-ministerial-de-22-de-abril-entre-bolsonaro-e-ministros.ghtml
segunda-feira, 18 de maio de 2020
É possível conversar com um reacionário?
É possível conversar com um reacionário?
Paulo
Sérgio Ribeiro
A indagação inspira-se, por óbvio, no livro da
filósofa Márcia Tiburi: Como conversar
com um fascista?[1]
Tal como Tiburi, bebemos uma certa dose de ironia na resolução deste
enigma sob o risco iminente de sermos por ele engolidos em caso de insucesso.
Sendo assim, uma maneira de não nos perdermos em meio às sombras do Brasil
pós-golpe é selecionar bem as categorias de análise. Opto, pois, pelo termo
“reacionário” ao invés dos já consabidos e populares “bolsonarista”,
“bolsominion” ou, simplesmente, “minion”, todos estes vocalizados como sinônimos
de “fascista”. Não que tais expressões não tenham lá sua serventia em momentos
de posicionamento na luta política, mas, para fins de pensar a comunicação
entre divergentes, é oportuno ceder a vez a um exercício de escuta do “outro”
enquanto depositário de uma subjetividade que ele próprio não consegue dar
conta e que, por sua vez, indispõe-no a qualquer forma de vida que ponha em
xeque sua miséria humana: a instrumentalização política de afetos primários como
o ódio.
Firula conceitual? Não, pois o comportamento
político não espelha necessariamente uma dicotomia entre progressistas e
conservadores descrita em um manual de ouro, mas gradações sutis entre tais pólos. Sendo isto plausível, nós,
progressistas, a despeito de tudo o que nos singulariza e antagoniza, temos
de tomar para si a tarefa (inglória para alguns, impossível para outros tantos...)
de estabelecer alguma maneira de repactuar limites com indivíduos e grupos cujo
“estar no mundo”, por assim dizer, revela concretamente o que se convenciona
por reação: anular os efeitos de uma
mudança qualquer. Trata-se de uma tarefa sensível tanto na esfera pública
quanto na esfera das relações íntimas de afeto. Talvez, mais gravemente na
última, dado o sofrimento moral acumulado após tantas decepções com quem, um
dia, já fora destinatário(a) de nossos sentimentos mais gregários.
Esta nossa tão universal necessidade de afiliação
nunca se viu tão desmentida por escrúpulos atribuíveis, quiçá, a uma
necessidade subjetiva de identificar-se (e comprometer-se) com a sorte do
gênero humano em sua inteireza. Afiliação não se realiza sem pagar tributos à
necessidade de poder e, cedo ou tarde, teremos de lidar com o ônus de navegar o
mesmo mar dos que militam pela reação sem, todavia, abrirmos mão da bússola
histórica que nos mostre uma rota consciente no entrechoque das correntezas que
arrastam a todos.
Tomemos um exemplo: a reação ao lockdown decretado pela prefeitura
municipal de Campos dos Goytacazes-RJ, minha cidade natal, com início para segunda-feira
(18/05/2020)[2]. O
reacionarismo manifestou-se na convocação, por parte de grupos de extrema-direita
organizados localmente, de um protesto contra o lockdown no espaço que condensa toda a potência do que seja um ato
público em solo campista - a Praça São Salvador – e no lugar que, por definição,
corporifica a instituição do direito – a Câmara de Vereadores ou, precisamente
falando, suas escadarias.
Qual é a “pauta” desses grupos? Basicamente, o
retorno a uma vida civil cujo verniz liberal são incapazes de simular com
suas patriotadas vazias. Ora, na tradição liberal bem compreendida, a
autolimitação do Estado é um ato de vontade do soberano que busca assegurar, através
da não interferência na esfera da consciência e da iniciativa econômica, a
autonomia civil de cada um(a). Contudo, na crise de saúde pública de alcance
global ocasionada pelo Covid-19, o ajustamento íntimo de cada um(a) a novas
rotinas torna imperativo que o Estado lembre aos seus cidadãos (com uso do
poder de polícia, se necessário) que eles também têm de observar a
autolimitação em nome de um bem primário – a vida.
A violação da ordem pública pelos meus conterrâneos
reacionários é sintoma de uma irracionalidade que tanto reflete a negação da
ciência quanto dela se retroalimenta. Ora, a ciência é uma prática social que
tem em seu horizonte o exercício da dúvida sistemática na comprovação de relações
de causa e efeito sobre os fenômenos. Admitir-se em erro não é, para um(a) cientista profissional, propriamente um motivo
de aflição, mas uma exigência ética ao demonstrar um fato passível de exame
geral. Ora, se é factível que o contágio ocorre em velocidade exponencial e que
não há outra medida ao nosso dispor, exceto o isolamento e distanciamento
sociais como meios de abreviar o período de quarentena e mitigar os custos da
recuperação econômica pós-pandemia é, no mínimo, inconsequente o lobby da Câmara dos Diretores Lojistas
(CDL) na agitação suicida dos verde-amarelos de plantão.
Por que é tão improvável um(a) reacionário(a)
admitir que possa estar errado(a) sobre suas próprias motivações? O rechaço ao
sistema político como prova de “isenção” ante os jogos políticos tradicionais é
produto de afeições que, para um certo segmento da população que transcende divisões
de classe, caracterizam um estado de desamparo diante das mudanças de posição e
de status advindas com a incipiente mobilidade
social verificada nos governos de centro-esquerda – gestão federal do Partido
dos Trabalhadores (PT) – sem, todavia, terem sido revertidos os condicionantes
estruturais da desigualdade socioeconômica reproduzida pelo racismo de classe e
de cor e, não menos, pela misoginia.
O código de virilidade exibido em protestos de rua
contra as instituições de direito e de justiça, sob o pretexto de questionar as medidas de restrição às liberdades públicas em um cenário de
pandemia, apenas evidencia o desejo um tanto caricatural de volta a uma “normalidade”
que, nada mais é, do que o estado de sítio mal disfarçado de pessoas – em sua
maioria, homens e pequeno-burgueses – que veem o seu lugar no mundo ameaçado por mudanças
que não compreendem.
O ressentimento decorrente desta invalidação
da existência social da fração proto-fascista da classe média – o “tio do
churrasco” que perdeu a graça; a vivandeira de quartel saudosa do “milagre
econômico” para o 1/4 de sempre; o(a) concurseiro(a) que clama por Estado
mínimo – serve de referencial ao conservadorismo moral das camadas populares
que não têm outro recurso senão a severidade nos costumes como forma de
distinção social que, por convicção sincera e deveras inútil, mimetiza o
moralismo hipócrita das classes que, por arrivismo ou simples desprezo ao lumpenproletariado
que explora, dita quem vive e quem morre com o falso dilema traduzido em “salvar
a economia ou preservar vidas”.
Daí, não é surpreendente que a tempestade perfeita esteja longe do fim e que sua nuvem mais pesada
paire sobre a planície fluminense confirmando o quão lenta pode ser a história
entre nós campistas.
quinta-feira, 19 de abril de 2018
Tempos sombrios

Por Paulo Sérgio Ribeiro
Há momentos em que se faz necessário não subestimar o quão
deprimente pode ser o cenário de uma época.
Comecemos por um dado anedótico: a senadora Ana Amélia (PP-RS) se contrapôs à recente entrevista da também senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) à TV Al Jazeera[1] - na qual denunciava a ilegalidade da prisão do ex-Presidente Lula e o alinhamento do golpe de Estado em curso no Brasil com o interesse nacional estadunidense - e, pasme, confessou-se preocupada com a possibilidade de sua colega parlamentar ter feito uma “exortação” ao Estado Islâmico para “vir ao Brasil proteger o PT”.
Comecemos por um dado anedótico: a senadora Ana Amélia (PP-RS) se contrapôs à recente entrevista da também senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) à TV Al Jazeera[1] - na qual denunciava a ilegalidade da prisão do ex-Presidente Lula e o alinhamento do golpe de Estado em curso no Brasil com o interesse nacional estadunidense - e, pasme, confessou-se preocupada com a possibilidade de sua colega parlamentar ter feito uma “exortação” ao Estado Islâmico para “vir ao Brasil proteger o PT”.
Pouparei o leitor de objeções factuais à capacidade de uma
parlamentar brasileira influenciar uma organização terrorista no Oriente Médio.
Supô-lo seria um exercício de credulidade que beira ao ridículo. Todavia, não
entendo que a senadora Ana Amélia seja uma estúpida, ainda que xenófoba.
Capitalizar politicamente a ignorância tornou-se um recurso de poder de
primeira grandeza, na medida em que nunca gerou tantos dividendos eleitorais
estimular a regressão dos costumes daqueles que, ironicamente, rechaçam a
política profissional. Um verdadeiro círculo vicioso.
Romper com tais vicissitudes nos leva a indagar por que a luta
política parece ter perdido o seu potencial pedagógico se nunca tivemos à mão
tantos meios favoráveis ao monitoramento reflexivo da vida social. Ora, alguém
indagaria, por que ser demasiado pessimista se a Internet nos faculta tais
“meios” diante dos falsos consensos fabricados na imprensa tradicional? Hoje,
somos capazes de acessar um sem número de informações minimamente confiáveis e
compará-las para obter, por exemplo, um olhar mais arejado sobre o mundo árabe
do que a Ana Amélia.
Em tese, essa ponderação estaria correta; porém, a vida em rede
difundida globalmente em nada assegura o reconhecimento da alteridade de um
indivíduo, grupo ou nação como elemento constitutivo de uma experiência em
comum. Este não reconhecimento assume a forma de uma comunicação hiperativa no
tempo intemporal da Internet que, paradoxalmente, amplia a distância entre o eu
a sua própria subjetividade. Construí-la requer tempo e este não se confunde
com o frenesi dos cliques em busca da validação de um discurso autorreferente.
Tanto na Internet quanto no bar da esquina, o galope acelerado da
barbárie é protagonizado pelo "cidadão de bem" cuja segurança
emocional é tributária da mediana mediocridade da “nobreza togada”. Este estamento – desembargadores, juízes, mas também procuradores e delegados federais – serve de suporte a idealização
de uma ordem política em que conflitos distributivos sejam suprimidos ao invés de administrados articulando-se interesse público com o pensamento estratégico sobre o desenvolvimento, isto é, sobre a ampliação possível de nossa capacidade de iniciativa na história mundial.
Longe estamos da autodeterminação enquanto povo-nação. No lugar dela, temos as cruzadas moralistas contra a corrupção assumidas pelo Poder Judiciário que configuram não apenas o expediente usual das corporações em disputa pela apropriação do excedente no Estado – a corrupção sistêmica que ninguém vê –, mas uma censura a toda e qualquer perspectiva que evidencie uma conexão de sentido entre a adesão aos valores tradicionais da classe média e a tentação das soluções autoritárias. Intelligentsia para quê, não é mesmo?
Longe estamos da autodeterminação enquanto povo-nação. No lugar dela, temos as cruzadas moralistas contra a corrupção assumidas pelo Poder Judiciário que configuram não apenas o expediente usual das corporações em disputa pela apropriação do excedente no Estado – a corrupção sistêmica que ninguém vê –, mas uma censura a toda e qualquer perspectiva que evidencie uma conexão de sentido entre a adesão aos valores tradicionais da classe média e a tentação das soluções autoritárias. Intelligentsia para quê, não é mesmo?
O apelo a uma autoridade forte que nos redima do caos republicano jaz um afeto primário – o ódio – socialmente
referenciado – ódio contra os pobres – que, para ser saciado, demanda a
inversão simbólica da relação de dominação: em um país no qual seis pessoas
detêm a riqueza equivalente a das 100 milhões mais pobres[2], quem, sob o pavor-pânico de ser confundido com um daqueles milhões subalternizados, é adestrado para subir com êxito os degraus da hierarquia social converte-se facilmente em
opressor, e o ressentimento quanto à altura (e agruras) daqueles degraus transmuta-se em agressividade autoritária contra
qualquer um que – através da ciência, das artes ou do ativismo identitário – revele os limites de classe da sua vida pusilânime.
Diante deste cenário, há de se perguntar se a ideia de nação ainda
terá um lugar de pertinência entre nós ou se o Brasil se reduzirá a campo de pastagem
para um povo-massa destituído de uma agenda que lhe renove a
ideia de igualdade.
domingo, 21 de agosto de 2016
Reacionários aqui e alhures
Reacionários
aqui e alhures *
George
Gomes Coutinho **
O diagnóstico contemporâneo de
que vivemos em uma sociedade que atravessa uma profunda transição já foi
apresentado alhures, em diversas línguas e tradições das humanidades. Porém, em
outra e longínqua conjuntura, talvez ninguém como o comunista sardo Antonio
Gramsci (1891-1937) tenha obtido uma das formulações mais precisas e dramáticas
sobre as épocas de interregno: momentos onde o novo ainda não nasceu e o velho se
recusa a morrer.
As sociedades, no Brasil e no
mundo, nestes primeiros 16 anos de século XXI lidam com um fluxo de circulação
de informações que não encontra paralelo na trajetória humana. Neste âmbito, a
circulação livre de capitais, sonho dourado de rentistas e especuladores em
geral, convive com a circulação de pessoas, algo menos desejado pelos setores
mais conservadores e recalcitrantes. Modos de viver surgem, alguns realmente
novos e outros que já não são mais asfixiados nos calabouços dos espaços
públicos, o que implica novas formas de
amar, sentir e experimentar a produção cultural e as relações afetivas. A
sociedade deste início de século XXI é plural, complexa e necessita da busca
por formas de convivência que consigam dar conta, de forma pacífica e
democrática, desta rica diversidade humana.
Contudo, o que há de novidade em
nossos tempos convive com o que se recusa a morrer.
Os agrupamentos que se “recusam a
morrer” simbolicamente neste momento buscam na nostalgia, ou na invenção de um
passado mítico pouco crível, forças para a reação. Por isso o termo
“reacionário” nos auxilia a compreender as tentativas desesperadas e artificiais
da aniquilação da diversidade nascente e da plêiade de direitos conquistados
por diversos agrupamentos sociais. Sejam os eleitores brancos, cristãos e
redneck de Trump, os simpatizantes da extrema-direita européia e as viúvas da
ditadura civil-militar brasileira. Todos estes agrupamentos reacionários
apresentam em sua pauta a interpretação passadista, vide o “fazer a América
grande de novo”, como mote para flertar com soluções totalitárias e autoritárias
de maneira geral. O grande problema é que a História, aquela senhora invisível
a nos assombrar, sempre lembra que o reacionarismo convive de braços dados com
seu co-irmão: o fascismo.
* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 20 de agosto de 2016
** Professor
de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes
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