segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Eleições norte-americanas 2020 – Parte II – Pós-lançamento da campanha republicana

 Eleições norte-americanas 2020 – Parte II – Pós-lançamento da campanha republicana
 


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Aluysio Abreu Barbosa[1]
 
Acabou nesta madrugada brasileira[2] o longo discurso em que Donald Trump aceitou a indicação do Partido Republicano para tentar a reeleição a presidente dos EUA nas urnas de 3 de novembro. Foi o primeiro em que a Casa Branca foi utilizada como palco de campanha, o que jamais tinha sido feito por nenhum presidente candidato à reeleição, desde que a sede do Poder Executivo estadunidense foi construída em 1800.

Atrás nas pesquisas e nas casas de apostas, Trump, como era esperado, radicalizou seu discurso. Discurso este que foi várias vezes dirigido nominalmente contra o seu adversário Joe Biden a quem chamou de “cavalo de Tróia do socialismo”, mesmo que Biden seja um político moderado que derrotou o socialista Bernie Sanders nas primárias democratas, e de “fraco”.

Trump atacou também governadores democratas por adotarem a quarentena contra a Covid, que já tirou mais de 180 mil vidas humanas nos EUA. Número que o líder do país campeão mundial de mortes pela pandemia não citou. Mas, sem usar máscara, disse que seu governo é “aliado da ciência” diante da aglomeração de 2 mil entusiasmados militantes que gritavam “four more years” (“mais quatro anos”), a grande maioria também sem máscaras.

Além dos governadores democratas, o presidente dos EUA atacou os prefeitos do partido de oposição que, segundo ele, não pedem ajuda federal contra os protestos gerados pelo assassinato de George Floyd, negro sufocado até a morte por um policial branco em 25 de maio. E que foram reacendidos depois que o também negro Jacob Blake levou sete tiros pelas costas no último domingo (23), diante dos seus três filhos pequenos, disparados por outro policial branco.

Trump classificou os manifestantes, jovens em sua maioria, de “anarquistas”, tentando ligá-los a Biden e aos democratas. Mas não citou outro jovem, Kyle Rittenhouse, de 17 anos, que matou dois manifestantes na terça (25) a tiros de fuzil, e tinha postado um vídeo em que aparecia na primeira fila de um comício do presidente. Este reforçou o tempo inteiro o discurso da “lei e da ordem”, que teve êxito em 1972, quando os EUA também estavam tomados por protestos pelos direitos civis, e outro presidente republicano, Richard Nixon, foi reeleito ainda que tenha sido obrigado a renunciar em 1974, para não sofrer o impeachment, pelas complicações do caso Watergate, em que espiões a mando da Casa Branca foram presos enquanto plantavam escutas no comitê democrata. Tanto o vídeo trumpista do jovem assassino de hoje, quanto o Watergate dos anos 1970, foram revelados pelo jornal Washington Post.

Além dos jovens que levaram os protestos do “Black Lives Matter” (“Vidas Negras Importam”) dos EUA ao mundo, outro alvo preferencial de Trump em supostas ligações com Biden foi a China de Xi Jinping com quem prometeu endurecer ainda mais a guerra comercial. Ele voltou a chamar o Sars-Cov-2 de “vírus chinês”, posição xenófoba que adotou antes da pandemia chegar aos EUA. A associação da China com o presidenciável democrata foi feita várias vezes: “A agenda de Joe Biden é ‘made in China’. A minha é ‘made in the USA’”. Já sobre a Rússia de Vladimir Putin, que Biden atacou pela interferência na campanha presidencial de 2016 com produção e difusão de fake news, o republicano favorecido por elas não disse uma palavra.

Trump também fez muitas promessas. Prometeu diminuir os impostos, que Biden prometeu cobrar das grandes fortunas para garantir seguridade social à população, e o preço dos remédios. Prometeu também uma vacina “segura e eficaz” contra a Covid ainda este ano, após sua campanha da cloroquina ter nos EUA o mesmo efeito inócuo que no Brasil de Bolsonaro. Não prometeu o sol, mas prometeu literalmente a Lua, garantindo que colocará a primeira mulher para pisar no satélite terrestre em um eventual próximo mandato. E prometeu até fincar a bandeira do seu país no solo de Marte. Além de prometer concluir na Terra seu controvertido muro na fronteira com o México: “O muro vai logo ser concluído, e está andando acima de nossas expectativas mais selvagens”. Mas não citou que seu estrategista da campanha vitoriosa de 2016, Steve Bannon, mentor internacional do clã Bolsonaro, foi preso no último dia 20 por desvio de recursos para a polêmica obra.

Trump também homenageou duas famílias de negros mortos, presentes no seu discurso. E chegou a afirmar: “Fiz mais pela comunidade negra em três anos do que Joe Biden fez em 47 anos (de carreira política), e, quando eu for reeleito, o melhor ainda estará por vir". Em 2016, o presidente teve apenas 6% dos votos dos negros. E as promessas de conclusão do muro com o México e de endurecer ainda mais as regras de imigração não devem ajudá-lo com outra minoria crescente do eleitorado dos EUA: os hispano-americanos. Em contrapartida, fez várias menções religiosas e pró-Israel, para assegurar o voto dos evangélicos, maioria religiosa de lá. O dos judeus, nos EUA, sempre foi majoritariamente democrata.

Ao insistir em um comício com a presença física dos seus apoiadores, Trump pode ter contrariado as orientações sanitárias do seu próprio governo. Mas deu calor à sua campanha. E isso pode dar um contraste favorável ao presidente, em comparação com o distanciamento — politicamente correto, mas politicamente arriscado — da campanha democrata. O republicano mentiu várias vezes em seu discurso, como sempre faz. Ao que seus entusiastas parecem indiferentes. Mas talvez precise ir além deles. Em um país politicamente tão polarizado quanto o Brasil, mas sem voto obrigatório, é na busca do eleitor não trumpista, mas também não democrata, que o pleito deve ser decidido.

Trump e Biden parecem ter razão em um raro ponto comum dos seus discursos: será uma eleição histórica. Pelo uso da Casa Branca como palco de comício, pela primeira vez em seus 220 anos de existência, a campanha já é.
 
* "Republican Party Flag”. Disponível em: https://www.reddit.com/r/vexillology/comments/d2g8ep/republican_party_flag/, acesso em 31 de ago. 2020.


[1] Jornalista, poeta e diretor de redação do jornal Folha da Manhã.

[2] Texto originalmente redigido pelo autor poucas horas após o término do anúncio da campanha de reeleição do republicano Donald Trump. O texto original, que aqui estamos republicando, pode ser conferido aqui: https://www.facebook.com/aluysio.abreubarbosa.3/posts/1389300037925436

domingo, 30 de agosto de 2020

Eleições norte-americanas 2020 – Parte I – Lançamento da candidatura democrata

 
Eleições norte-americanas 2020 – Parte I – Lançamento da candidatura democrata

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Aluysio Abreu Barbosa[1]


 
Entre o final da noite de ontem e o início desta madrugada[2], Joe Biden fez o discurso que fechou a convenção democrata que lançou sua candidatura a presidente dos EUA, em 3 de novembro. Pregou a união para que seu país saia da sua maior crise humanitária, líder mundial em mortes pela Covid-19, e econômica desde a Grande Depressão de 1929. E evocou o exemplo de outro democrata, que há 87 anos venceu outro vírus, o da pólio, para reerguer os EUA e fazê-los o país mais poderoso do mundo: Franklin Delano Roosevelt.
 
Ao usar o exemplo do passado, Biden se mostrou atento às vozes do presente. Emocionou-se ao lembrar suas próprias perdas, pessoais e profundas, para mostrar empatia com as famílias do seu país devastadas pelas mais de 170 mil mortes pela Covid. Como ressaltou estar atento às vozes dos jovens que saíram as ruas dos EUA, sendo seguidos no mundo para protestar contra a discriminação racial e por mais justiça social. E voltou a se emocionar ao repetir as palavras que lhe disse, no velório do pai, a filha pequena de George Floyd: “Meu pai mudou o mundo. Meu pai mudou o mundo”.
 
Biden também foi duro. Deixou claro que os EUA não tolerarão mais intervenções externas em sua democracia. E citou como exemplo a Rússia do ditador Vladimir Putin, que usou hackers na criação de fake news para ajudar a eleger Donald Trump presidente em 2016. A quem criticou duramente pela condução dos EUA na crise da Covid, pelas pesadas perdas em vidas humanas, empregos e empresas: “Não precisa de muita retórica. Apenas julguem pelos fatos: 170 mil mortos, 5 milhões de infectados, 15 milhões de desempregados, mais de 10 milhões sem plano de saúde, uma em cada seis pequenas empresas fechando”.
 
O candidato democrata garantiu que, se eleito, será diferente ao governar para todos, não apenas aos apoiadores: “Vou trabalhar muito duro para quem não me apoiou. Esse é o trabalho de um presidente”. Lembrou das minorias e prometeu privilegiar a maioria, sem as benesses tributárias de Trump às grandes fortunas. Das quais prometeu cobrar os impostos necessários para garantir direitos previdenciários e de saúde à população: “Eu não quero punir ninguém. Mas já passou o tempo dos que mais ganham ficarem isentos de impostos. É hora dos ricos pagarem mais. É preciso contribuir com mais seguridade social”.
 
Biden não é um orador brilhante como Barack Obama, a quem agradeceu por ter servido como vice-presidente por oito anos. Nem um comunicador histriônico, mas habilidoso, como Trump. Ele é o que os estadunidenses chamam de “regular guy” (“cara normal”). Talvez não por acaso, aos brasileiros, “Joe” seja uma gíria para “mano”. Mas, às vezes, homens comuns são alçados por um contexto maior. Como o que pareceu se reforçar ontem, com a prisão de Steve Bannon, estrategista da exitosa campanha de Trump em 2016. De cujo governo saiu para articular uma aliança internacional da extrema-direita, inclusive com o clã Bolsonaro. E foi parar em cana por desviar recursos de um fundo para construir um muro entre os EUA e o México.
 
Dê luz às pessoas. São palavras para o nosso tempo. O presidente atual deixou o país no escuro por muito tempo. Dou a minha palavra: se me levarem à presidência, serei uma fonte de luz, não de escuridão”, pregou Biden. E depois completou: “Toda eleição é importante. Mas essa é ainda mais. Chegamos a um ponto de inflexão. Tempos de perigo, e também de oportunidades extraordinárias. Podemos escolher um caminho diferente, um caminho de reformar, unir. Isso vai determinar o que os Estados Unidos serão no futuro. A decência, a ciência, o caráter. Tudo isso está em jogo”. Falou para os EUA. Que se o elegerem presidente em novembro, como indicam até aqui as pesquisas, ecoarão no mundo.
 
No Brasil, por exemplo, se Biden vencer em novembro, toda a política externa do governo Jair Messias Bolsonaro (sem partido) implode.
 

* “We The People” de Mindy Sommers. Disponível em: https://fineartamerica.com/featured/we-the-people-map-america-mindy-sommers.html


[1] Jornalista, poeta e diretor de redação do jornal Folha da Manhã.


[2] O texto em questão, aqui republicado com autorização do autor, foi postado originalmente poucas horas após o lançamento da candidatura de Joe Biden q para  presidência dos EUA neste ano de 2020. O post original pode ser conferido em: https://www.facebook.com/aluysio.abreubarbosa.3/posts/1383124231876350

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Democracia e Marxismo: a perspectiva de Ellen Wood

 As Coordenações dos Cursos de Ciências Sociais da UFF-Campos e o Blog Autopoiese e Virtu convidam para a Live:


“Democracia e Marxismo: a perspectiva de Ellen Wood”


Convidado: Prof. Jefferson F. do Nascimento – IFSP/Sertãozinho-SP

 – PPGPol/UFScar


Mediação: Prof. George Coutinho – UFF/Campos, RJ


25/08/2020 – 16 horas – Terça-Feira


Inscrições gratuitas em: https://www.even3.com.br/ellenwood/


Evento de lançamento do livro “Ellen Wood: o resgate da classe e a

 luta pela democracia” de Jefferson Ferreira do Nascimento.



quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Notas sobre o antifascismo à brasileira – parte I

Fonte: UOL Notícias (aqui).

Notas sobre o antifascismo à brasileira – parte I

 

“Nada mais parecido com um fascista que um pequeno burguês assustado” – Bertold Brecht.

 

Paulo Sérgio Ribeiro

 

Na expressão fascismo, há uma tessitura histórica a recomendar cautela ao observador contemporâneo, pois é grande o risco de se perder em sua labiríntica polissemia. Por sua vez, se o antifascismo se insinua como um front em meio ao descalabro que é o Governo Bolsonaro, é fortuito esboçar sua análise conceitual sem deixar de lado a matéria viva na qual ela se faz possível, a saber, a situação concreta na qual estamos metidos até o pescoço em busca de uma direção consequente.

 

Primeira observação: evocar o antifascismo como forma de opor-se a Jair Bolsonaro e a tudo que sua trajetória pública implica – sobretudo, quando vomita o revisionismo histórico de 1964 – não é algo nascido no calor das últimas horas. Lembremos, para ficar num só exemplo, a proibição, por parte do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ), de uma faixa antifascista no pórtico da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), em outubro de 2018[1], para não subestimarmos o caráter disruptivo que a denúncia do fascismo mantém após décadas de sua gênese na Itália dos anos 1920, liderada por Benito Mussolini, o Duce, até os estertores da Segunda Guerra Mundial.

 

Mesmo sem pretensão de realizar uma exegese do fascismo italiano, convém indagar como aquela experiência serve de diagnóstico àqueles(as) que vislumbrem no antifascismo um horizonte comum das lutas sociais impulsionadas pela irresponsabilidade do Executivo Federal na gestão da crise econômica e da pandemia da Covid-19. Desde já, livremo-nos de uma exigência tola de formalismo metodológico: provavelmente, a maioria das pessoas que replicam em suas redes virtuais o símbolo antifascista não tem a menor ideia do que foi o fascismo em solo europeu e isso, em si, não chega a ser um problema para quem almeje a revitalização da esfera pública. Se o pensamento político nada mais é do que um movimento de pensamento, não serei eu a exigir duas cópias autenticadas no cartório oficial da cultura erudita para quem queira fazer do antifascismo sua causa.

 

Para tatear as pegadas deste monstro secular, recorro à interlocução de Eric Hobsbawn em seu “Era dos Extremos”[2]. Tal escolha, por certo, não o toma por obra definitiva sobre o fascismo[3], mas tão somente como uma referência oportuna para desatar alguns nós górdios do que venha a ser o seu contraponto entre nós, brasileiros(as), diante da agenda de reformas que se desenrola sob o bolsonarismo sem, todavia, estar reduzida a ele. O monstro a que aludimos releva-se, em chave psicanalítica, como a irracionalidade humana latente que engendra um movimento cíclico de repressão-rebelião-restauração que, em cada época, adquire fisionomia própria.

 

Na época focalizada por Hobsbawn, as três primeiras décadas do século XX, malgrado o mundo já ter testemunhado sua Primeira Grande Guerra, a “civilização liberal” ainda parecia um futuro promissor para um seleto grupo de Estados independentes organizados em torno de valores antitéticos aos regimes de força. Mais do que um arranjo institucional, tratava-se de uma cultura política herdeira do Iluminismo, na medida em que seus principais atributos – governo constitucional com representantes livremente eleitos e submetidos ao domínio da lei; e liberdades civis asseguradas aos cidadãos enquanto um conjunto de direitos sustentado pelo aprendizado coletivo sobre a dignidade da “pessoa humana” – eram tributários de uma noção difusa de melhoria do gênero humano – o reluzente progresso – a ser informada cada vez mais pelo debate público mediado pela educação e pela ciência.  

 

Desnecessário dizer que a antessala desse (frágil) triunfo da civilização burguesa correspondia à existência de domínios coloniais, sem, claro, esquecermos de alguns poucos Estados que consistiam em verdadeiras autocracias. Contudo, no Ocidente, um vendaval autoritário destronaria as crenças coletivas da modernidade oitocentista que mostrava ainda vigor sob aquele verniz civilizatório: se, como aponta Hobsbawn[4], antes da Marcha sobre Roma (1922), contavam-se mais de 60 Estados independentes nos continentes europeu e americano que, com maior ou menor consistência, poder-se-iam chamar de democracias liberais, em 1944, pouco mais de dez Estados persistiriam com tais regimes políticos.

 

O declínio do liberalismo ocorria pari passu com o ensaio geral de uma nova conflagração entre potências imperialistas. Não obstante, salienta Hobsbawn[5], a ameaça às instituições que o espelhavam vinha apenas da direita política. A contar com as teses estapafúrdias (e nem por isso menos eficazes na “guerra híbrida” em que estamos) de uma extrema-direita hiperativa nas redes virtuais, não surpreende que a regressão operada por forças políticas de variado matiz conservador seja atribuída, pasmem, mais uma vez ao espantalho do comunismo. Eleger o último como o álibi da violência estrutural do capitalismo sempre foi um ardil irresistível em um sistema socioeconômico cuja incapacidade de produzir solidariedade social nada mais faz do que devolver àquela violência estrutural sua nudez e crueza nos períodos de agudização das crises de acumulação capitalista.

 

Na presente década (2011-2020), mal passado o crash de 2008, tornou-se um dado sensível para a geopolítica a rearticulação de uma direita internacional com virulência equivalente à sua congênere que flertou com o fascismo no entreguerras. Todavia, tal aggiornamento reacionário não parece, até prova em contrário, uma ameaça imediata aos regimes democráticos. Ao menos, é o que sugere um insuspeito periódico liberal, The Economist[6], ao divulgar (adotando critérios teóricos e metodológicos que não discutiremos aqui) um ranking de países segundo a eficiência ou debilidade do desempenho de suas instituições democráticas. Nele, o Brasil seria classificável como uma “democracia imperfeita”. Sim, eu sei, soa um tanto eufemístico para quem sobreviveu até aqui em solo brasileiro.

 

Perdoem o argumento de autoridade, mas se o maior liberista que o Brasil foi capaz de oferecer ao mundo, José Guilherme Merquior (1941-1991), admite que nem todas as conquistas democráticas no Ocidente podem ser tributadas às forças explicitamente liberais[7], não haveria por que ignorar o que está em jogo na reiteração de falácias sobre aquela que viria o grande rival delas: a revolução social, como máxima expressão da crítica ao capital e, não menos, como veio narrativo das tradições de esquerda em disputa por uma consciência possível.

 

Na longa guerra civil europeia (1914-1945), os comunistas propriamente ditos sempre foram minoria nos movimentos trabalhistas da maioria dos países e, quando se mostravam suficientemente fortes e coesos, foram ou estariam na iminência de serem massacrados. O medo de uma revolução anticapitalista era real, porém seus potenciais agentes não estavam incondicionalmente comprometidos com esse fim: na Rússia soviética, o movimento revolucionário além fronteiras recuaria depois da Primeira Guerra e os movimentos social-democratas (de orientação marxista) aceitavam sem maiores senões a democracia representativa, convertendo-se meramente em partidos da ordem [8].

 

Se houve uma segunda onda revolucionária durante e após a Segunda Guerra, ressalva Hobsbawn, o “perigo vinha exclusivamente da direita”[9] quanto à derrubada de governos constitucionais. Guardados os condicionantes inerentes à “Era da Catástrofe” em face da falência do programa neoliberal no século XXI, é razoável indagar sobre o “perigo” da nova articulação global de uma direita tentada a dobrar a aposta diante da crise de legitimação do capital, pois, tal como no aludido cenário de guerra total, é desaconselhável esquecer que o “rótulo ‘fascismo’ é ao mesmo tempo insuficiente mas não inteiramente irrelevante”[10].


Se tal advertência procede, na sequência, buscarei sumariar como Hobsbawn tipifica as forças que punham abaixo os regimes liberal-democráticos e, por conseguinte, contextualizar tais dinâmicas no que concerne ao antifascismo no Brasil de Bolsonaro.



[1][1] UOL. TRE tira faixa antifascista da UFF e fiscais vão à UERJ; OAB acusa censura, edição de 26/10/2018. Disponível (aqui)

[2] Cf. HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos. O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[3] George Gomes Coutinho faz um excelente cotejo de outras referências igualmente relevantes em texto derivado de sua participação, a convite do Cineclube Marighela, como debatedor do filme “A Onda”, intitulado “Reflexões sobre o Fascismo” (aqui).

[4] Op. cit., p.114-115.

[5] Idem.

[6] UOL. Brasil cai em índice que mede democracias no mundo. Edição de 22/01/2020. Disponível (aqui)

[7] Cf. MERQUIOR, José Guilherme. O liberalismo – antigo e moderno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p.18.

[8] Cf. HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos. O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 116.

[9] Ibid. ibidem.

[10] Idem.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Saudades de um Bar


Saudades de um bar*

            Ando saturado de atividades online. É pela tela do computador que tenho interagido com o mundo e dele tenho recebido notícias. Encontro com estudantes pelo Meets e isso é muito bom, na medida em que é melhor do que simplesmente não encontra-los – mas não é a mesma coisa. A criatividade para a escrita tem me faltado e isso começou a se transformar em uma preocupação. Na semana passada, organizei uma palestra com o Professor Renzo Taddei, da Unifesp, para discutir o livro “A queda do céu” – de Davi Kopenawa e Bruce Albert – e falar de diferentes assuntos a partir dali: cosmologias, conhecimentos tradicionais e sua relação com a ciência, problemas ambientais etc. Ao longo da preparação do evento, tive a certeza: “meu próximo artigo para a Folha será sobre Kopenawa”. Eis que o evento terminou, cliquei no botão para encerrar a gravação, vi os comentários das pessoas que acompanharam a transmissão e.... pronto. Acabou. Nada mais. Fiquei com a sensação de que algo havia faltado. E não consegui escrever sobre o assunto.
            Os dias passaram e fui me envolvendo com outras atividades acadêmicas, a maioria delas de caráter administrativo, mas todas com uma característica comum: remotamente, a partir do meu computador, na sala da minha casa, começando e terminando com cliques. Não dá para dizer que a falta de criatividade seja fruto da falta de assunto. Todos os dias vejo notícias de novos absurdos do governo federal e suspeitas cada vez mais escandalosas sobre a administração do governo Estadual. É muita loucura para pouco tempo e isso costuma render diversas letras - só que não tem rendido. E foi já conformado com a situação que voltei ao computador para ler um texto que havia “guardado para depois”. Falo do artigo de Aluysio Barbosa sobre “O Mundo sem boteco”, onde o autor narra uma conversa típica de botequim versando sobre literatura, política, pandemia e o futuro de Campos. Um texto divertido que só não atingiu a plenitude do ambiente de boteco porque não mencionou o retorno de Jesus ao Benfica. É óbvio que esse assunto estaria entre os trend topics dos bares do Brasil e, dada a relevância da camisa rubro-negra - muito maior que os dirigentes do clube -, do mundo. O texto deve ter sido escrito antes da saída de Jesus. Terminei de ler o texto e pensei: nossa, é isso que tem feito falta: um boteco.
            O tempo foi passando e recebi, por acaso, uma entrevista de meu querido colega Paulo Thiago de Mello falando sobre as mudanças sofridas nos botequins cariocas e as dificuldades enfrentadas pelo setor. Paulo Thiago tratou de uma mudança nas expectativas dos consumidores, que agora buscam experiências gastronômicas, coisa que não era o propósito do boteco tradicional. E não era mesmo. O boteco, como argumenta meu colega, caracteriza-se por ser um espaço de socialização. A comida e a bebida são itens importantes, claro, mas o ambiente conhecido, com pessoas conhecidas... isso aí sim seria a característica central da cultura de boteco.
A entrevista me remeteu ao artigo do Professor Luiz Antônio Machado da Silva, intitulado “O significado do botequim”, onde são abordadas diferentes formas de sociabilidade em um botequim, instituição de grande importância em algumas áreas da cidade, onde, por exemplo, trabalhadores se informam sobre oportunidades de trabalho ou sobre os trâmites para obter documentos, o que caracteriza o botequim como um espaço de hospitalidade urbana. O autor destaca, de modo muito evidente, que o botequim transcende a oferta de álcool e adquire o que poderíamos chamar de relevância sociológica, o que contrasta com muitos dos preconceitos e críticas que pairam sobre o botequim.
            No bar nós bebemos, sim, mas não fazemos só isso. Nós conversamos, trocamos informações sobre os eventos recentes, sejam eles públicos ou privados, deixamos a imaginação fluir e aprendemos enquanto ouvimos os outros. O bar é um lugar de convivência onde a vida pública se desenrola e as relações são vivenciadas, onde, como diz a sabedoria popular, vamos para “trocar uma ideia”. Trata-se, pois, de um espaço de interação, algo crucial para a vida urbana. Advogados, jornalistas, médicos e até engenheiros civis formados, assim como pedreiros, auxiliares de escritório e outros inúmeros grupos profissionais reúnem-se em seus bares prediletos após a labuta para confraternizar, falar da rotina de trabalho, planejar o futuro, debater o presente e analisar diversos aspectos da vida em geral. O bar renova a vida, refresca a rotina e areja o espírito.
            Os desavisados pudicos que tratam o bar como uma instituição ligada ao alcoolismo não compreendem a relevância da instituição e tratam-na com puro preconceito. A pandemia poderia ensinar-lhes algo, mas, assim como acontece normalmente no Brasil atual, é mais cômodo ter uma opinião esvaziada de conteúdo do que empreender qualquer exercício de reflexão sobre algo - o que faz com que os preconceitos perdurem. Todavia, o escritor é persistente e insiste em trazer problemas: se as prateleiras de supermercado estão repletas de oportunidades etílicas, por que alguém sentiria saudades de um bar? A resposta para isso está nas linhas acima: o bar não é a bebida, o bar é a socialização. Há inúmeros espaços que oferecem interações sociais riquíssimas – academias de ginástica, estádios de futebol, igrejas, clubes etc - , todavia, para algumas (muitas) pessoas, é no bar que tais interações são vivenciadas. E a falta que se sente não é da cerveja gelada, que em casa permanece fechada na geladeira, mas sim dos encontros dos bares. Pois a cerveja é pretexto para encontrar as pessoas, do mesmo jeito que encontrar as pessoas é pretexto para a cerveja. No final das contas, são os encontros que são buscados e que, num contexto de pandemia, foram impedidos.
Até quem ignorou a quarentena vivenciou um empobrecimento de sociabilidade. O isolamento físico significou uma transformação radical nas formas de experimentação da vida social e, com isso, passamos a observar, ou realizar, uma série de queixas derivadas da falta do encontro. O que a pandemia destacou é uma ideia que fundou o nascimento da Sociologia, com Émile Durkheim: a sociedade está no indivíduo e acima dele; e ele é mais do que ele mesmo na medida em que a sociedade está nele. O isolamento não elimina a sociedade, de forma alguma, mas ele reduz a experiência do encontro, das trocas, do fluxo pelas cidades, do caminhar e do caminho. E quem sente saudades de um bar, sente saudades da cerveja, mas também e sobretudo do conjunto de experiências que vem como acompanhamento.
Os eventos da universidade não têm terminado nas mesas do Dona Chica, do Seu Evaldo, do Tropeço ou do Black Bird - e isso tem reduzido os debates e encerrado a reflexão. E essa constatação, de que o desdobramento de eventos acadêmicos em bares possibilita a continuidade de debates - de modo mais informal e por vezes mais frutífero -, deveria ser suficiente para fazer refletir sobre as limitações do Ensino a Distância, onde não ocorrem encontros nem nos corredores. Todavia, isso aqui é o Brasil e vivemos “esse pileque homérico no mundo” nada favorável à reflexão sobre a realidade.
             

Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.

Publicado no Site da Folha da Manhã em 25 de Julho de 2020.

Entrevista Valpassos Folha da Manhã sobre Situação de Campos dos Goytacazes



Entrevista de Carlos Abraão Moura Valpassos ao Blog Opiniões do Jornal Folha da Manhã. - Publicado em 01 de Agosto de 2020.
http://opinioes.folha1.com.br/2020/08/01/eleicao-de-novembro-define-prefeito-nao-quem-paga-a-conta-de-campos/

FM – A Prefeitura enviou à Câmara Municipal uma previsão orçamentária para 2021 de R$ 1,7 bilhão. Mas, pela crise econômica advinda da Covid, há previsão de que isso possa cair até para 1,5 bilhão até a LOA ser encaminhada em agosto. Com R$ 1,1 bilhão comprometido só com folha de servidor, há solução aritmética para Campos? Qual?
CAMV - A solução aritmética é simples e já se insinua no enunciado: a quantidade de dinheiro disponível ficará abaixo do desejado. As perspectivas não são alvissareiras e isso impõe a necessidade de planejamento. Para enfrentar o cenário negativo, será preciso criar receitas, ou seja, trazer investimentos para Campos. Isso demanda planejamento de ações e eficiência para colocar em prática aquilo que for planejado. A próxima gestão não poderá ser alicerçada sobre um discurso que não ganha materialidade. Para tanto, será necessário valorizar aquilo que já existe – agricultura e pesca, por exemplo - e incentivar a implementação de empresas e indústrias, sem desconsiderar as que já estão aqui e também o setor de serviços.

FM – Fala-se muito da reforma administrativa. Que o governo Jair Bolsonaro (sem partido) teme propor desde os protestos no Chile de 2019. Ninguém projeta que entre em pauta antes de 2021, com mudanças ao servidor só para concursos futuros, como frisa o presidente da Câmara Federal, deputado Rodrigo Maia (DEM/RJ). Campos pode esperar 35 anos até que essas novas regras, ainda nem debatidas e aprovadas, tenham impacto em sua folha? Qual a alternativa? Cortar unidades e programas de saúde, de assistência social, creches e escolas?

CAMV - Não vejo como cortar os programas de saúde, de assistência social, as creches e as escolas possa ser solução para qualquer questão. Se for feito, o que teremos será uma problema administrativo contornado por agravamentos de problemas na área de saúde, de incremento da pobreza – o que vai se converter em diversos outros problemas – e de educação. Há inúmeras questões de grande complexidade que começam a ser simplificadas quando descartamos as alternativas absurdas. Essa parece ser uma delas. A cidade possui um problema crônico que não será desfeito pelo mero desejo e a resposta para isso dificilmente será dada nos próximos 4 anos.

FM – No Código Civil de 2002 há a resolução da “onerosidade excessiva”, de aplicação sempre controversa. Seria um caminho à insolvência financeira dos entes federativos, pior no Estado do Rio e em Campos, pela dependência do petróleo? Ou em tempo de crise com a pandemia da Covid, seria o momento de o estado em suas três esferas romper com a austeridade e assumir o papel de indutor da economia, como preconizava John Keynes?

CAMV - É valido pensar sobre os resultados que estamos obtendo com as medidas de austeridade. Obtivemos melhoras na saúde ou na educação? Nosso IDH sofreu alterações positivas? Tais medidas reduziram a concentração de renda? As finanças caminham para um equilíbrio? A resposta é negativa para todas as questões. O Brasil vive um momento onde o Estado é apontado como fonte de todos os problemas, morais e econômicos. O setor privado é muitas vezes pensado como algo positivo e eficiente. E isso não se confirma nem de um lado, nem de outro. O Estado pode e deve ter papel central como motor propulsor da Economia, gerando empregos e fazendo girar o capital, mas, sobretudo, descentralizando os recursos – que não podem ficar disponíveis apenas para grandes empresários.

FM – Em entrevistas ao programa Folha no Ar, todos os pré-candidatos a prefeito de Campos entrevistados falaram em necessidade de redução da máquina municipal. Até a ex-vereadora Odisséia Carvalho, do PT, partido tradicionalmente ligado aos servidores públicos. Mas nenhum deles deu detalhes de como e onde. Qual a sua visão?
CAMV - Não acredito que o problema será solucionado na próxima gestão, seja ela qual for. O simples fato de nenhum dos entrevistados ter dado detalhes sobre como reduzir a máquina municipal já é um indicativo disso. Ou vamos acreditar que um raio de luz cairá sobre a pessoa eleita, no primeiro dia de 2021, para que ela resolva a questão? Os gastos da folha representam um desafio, sim, mas é preciso ter em mente que a cidade possui diversas outras questões que podem atenuar o problema ou intensifica-lo. Afinal, quando foi que a folha de pagamentos se tornou uma questão central? Isso se deu após a redução das receitas dos royalties. A dependência do petróleo parece ser o ponto crucial, a origem de vários problemas.

FM – Sempre mais visível em quem está no poder, a contradição entre o discurso de campanha e a realidade do governo é realçada na pré-candidatura à reeleição do prefeito Rafael Diniz (Cidadania). Que, em 2016, prometeu manter programas sociais, valorizar o servidor e, em 2020, enfrenta a rejeição por não ter cumprido. Em que o prefeito errou? Como ele ou qualquer outro adversário de novembro poderiam acertar entre discurso e realidade?
CAMV - Rafael Diniz não caiu de paraquedas na Prefeitura. Em primeiro lugar, ele é cidadão de Campos; em segundo, e ainda mais importante: ele era vereador. Ele sabia muito bem qual era a situação econômica do município. A questão que me surge é: ele sabia que seria eleito? Se sabia, não se preparou devidamente para o que estava por vir. Em pouco tempo de governo, ele já estava solicitando paciência e o prazo de 1 ano para começar a governar. Todavia, com cerca de 6 meses ele quebrou suas promessas, fechou o restaurante popular e encerrou o programa social das passagens de ônibus. A gestão de Rafael está chegando ao fim e ele não cumpriu as promessas de campanha, nem as de governo, pois até hoje não temos um restaurante popular nem um sistema de transporte público eficiente. Ter um planejamento de governo é algo crucial, não basta a boa vontade e a esperança de que tudo vai se resolver quando o “jogo” começar.

FM – Outro pré-candidato a prefeito de Campos no Folha no Ar, Roberto Henriques (PC do B) classificou de “modelo perdulário” o que teria sido instalado no município a partir do governo Arnaldo Vianna (PDT), com inchaço da máquina pública custeado pelo incremento substancial das receitas do petróleo. Para Henriques, isso foi mantido nas gestões Alexandre Mocaiber (sem partido), da qual foi vice, e Rosinha Garotinho (Pros). Concorda? Por quê?
CAMV - Não sei se “perdulário” seria o melhor adjetivo, mas há de se reconhecer que faz sentido. Todavia, acho que “irresponsável” seria mais claro e objetivo. Sempre acreditei que os recursos originados dos royalties deveriam ter um propósito social e atuar como uma compensação às futuras gerações por aquilo que foi retirado do território. Nesse sentido, os recursos dos royalties deveriam ter sido investidos para promover um legado que seria usufruído no presente e, sobretudo, no futuro. Isso aconteceu? O que sobrou da época de farturas? Houve responsabilidade no emprego das verbas? Quando um cidadão campista pode dizer “felizmente temos isso aqui, que foi algo realizado na época boa dos royalties e dura até hoje”? Pois é. Dito isso, só nos resta discutir se fica melhor chamar de perdulário, irresponsável ou qualquer outro adjetivo...

FM – Pelo fato de Arnaldo e Mocaiber serem médicos, categoria sempre corporativa, um grande inchaço da máquina foi na saúde. Matéria de agosto da InterTV alertou que enquanto a OMS indica, para cada mil habitantes, o ideal de um médico, Campos tem três. E ainda assim a saúde é um dos principais motivos de queixa da população. Rosinha tentou enfrentar a classe, mas recuou. Assim como Rafael, com o ponto biométrico. Mas também voltou atrás por conta da pandemia. A categoria importante e ruidosa dá um raio-x do dilema da cidade?  

CAMV - Não se cabe dizer de uma categoria que ela seja “sempre corporativa”, pois isso encobre as disputas internas e as divergências que marcam diversos grupos profissionais. Se a OMS indica 1 médico para cada 1.000 habitantes e Campos possui 3 para cada 1.000, isso deveria se ser muito bom e se refletir em um sistema modelo de atendimento de saúde. Todavia, isso não acontece. Em primeiro lugar, precisamos lembrar que médicos não trabalham apenas com presença de espírito, eles precisam de estrutura e insumos específicos. Temos isso? Nossos postos de saúde estão sucateados há muito tempo; faltam medicamentos, equipamentos e há casos onde atendimentos são realizados em salas mofadas. Acredito que os médicos podem e devem ser cobrados, mas o questionamento teria maior legitimidade se as condições de trabalho fossem adequadas.

FM – A conta do desperdício dos royalties começou a chegar a partir do final de 2014, com a queda do preço do barril de petróleo. Não por acaso, a partir dali o governo Rosinha realizou suas três “vendas do futuro”. Os garotistas tentam minimizar seu impacto, que comprometeram as receitas do petróleo de Campos até julho 2026. Como você avalia?
CAMV - Não é possível minimizar o impacto das “vendas do futuro” para Campos. A cidade possui um histórico monocultor, viveu quase todo o século XX dependendo da produção de cana-de-açúcar e migrou, no final do século, para a dependência do Petróleo. Dependente de um mercado que não controla, Campos se viu em péssima situação quando ocorreu a desvalorização do barril do petróleo e, com os empréstimos contratados, assumiu uma dívida que perturba mensalmente o orçamento da cidade. A folha salarial não deixaria de ser uma questão se não tivéssemos o pagamento dessa dívida, mas ela teria outro peso no orçamento. O tal “futuro” virou “presente” de forma rápida e não houve geração de receita para tapar o buraco – aí está algo que o prefeito Rafael Diniz pode chamar de “herança maldita”.


FM – Além das “vendas do futuro”, o relatório da CPI do PreviCampos revelado na Câmara Municipal, na última terça (28), apontou um desfalque de R$ 500 milhões na previdência do servidor durante o governo Rosinha. Fruto dele, o município tem que colocar todo mês R$ 6 milhões para manter as aposentadorias e benefícios em dia, além dos R$ 4,5 milhões da contribuição patronal e outros R$ 4,5 dos previdenciários. Como estancar essa sangria?

CAMV - O relatório da CPI do PreviCampos ainda terá muitos desdobramentos – políticos e judiciais. O desfalque ali realizado cria mais um gasto para o município – gasto que poderia ser empregado em diferentes políticas sociais. Independente dos desdobramentos judiciais, parece pouco provável que o município consiga reaver as quantias que foram retiradas do PreviCampos, o que significa que a cobertura dessa dívida tende a ser incorporada, como tem sido, aos gastos da Prefeitura. Tal relatório parece refletir, de modo explícito, os maus usos do dinheiro público em Campos dos Goytacazes, bem como os efeitos deletérios da luta entre grupos políticos que se alternam no poder há mais de 40 anos.

FM – Marcadas para agosto e setembro, se as convenções fossem hoje, o candidato garotista a prefeito do PSD seria o ex-vereador Fábio Ribeiro, não o deputado federal Wladimir Garotinho, como a Folha divulgou em primeira mão em 25 de julho. Isso deve ser encarado como a confissão política de que o quadro financeiro da Prefeitura é financeiramente insolúvel?     
CAMV - Não tenho como afirmar que seja uma confissão política de que o quadro financeiro é insolúvel, mas o argumento é forte. Wladimir Garotinho é deputado e tem mais dois anos de mandato pela frente. Talvez seja mais promissor para a cidade tê-lo como deputado, atuando por causas da cidade, do que como prefeito. Isso, todavia, é uma forma muito idealista de encarar a situação. A ausência de Wladimir no pleito eleitoral cria, de antemão, uma mácula sobre o nome que o substitui. O problema financeiro, todavia, não foi suficiente para afastar as intenções dos outros candidatos, que não são incautos, mas também não apresentaram, até o momento, soluções razoáveis para muitos dos problemas da cidade. Não há indícios de prosperidade num futuro próximo.

FM – Em valores corrigidos pelo INPC, Campos recebeu de royalties e participações especiais (PEs) R$ 4,67 bilhões de 1999 a 2004, com Arnaldo; 6,94 bilhões de 2005 a 2008, com Mocaiber; e 12,06 bilhões de 2009 a 2016, com Rosinha. Em conta que desce a ladeira para 2021, Rafael teve, até 2020, R$ 1,84 bilhão. Juntos, os três prefeitos anteriores tiveram 23,67 bilhões. Acredita que os quase 600 mil campistas tenham a noção da chance histórica que a cidade desperdiçou? Qual seu legado, além de uma máquina inchada e insustentável?

CAMV - A população tem consciência dos erros cometidos em todas as gestões. Todavia, estamos em uma cidade pobre, em diversos sentidos, e a Prefeitura é responsável, direta ou indiretamente, por boa parte da renda das famílias. Aqui, aderir a um candidato ou a outro significa apostar nas possibilidades de obter trabalho e renda ao longo da próxima gestão. Não é uma questão de ignorância política ou histórica, simplesmente, é o resultado de uma disputa de poder, em um contexto de pobreza, que leva muitas pessoas a tornarem a política não uma questão de planejamento para o bem coletivo, mas sim como uma forma de obter recursos no curto prazo. Um bom exemplo foi o áudio vazado, recentemente, de um vereador de Campos explicando como pressiona seus funcionários contratados para que obtenham votos para ele. Seria essa a função de um vereador? Seria essa a função de seus assessores, trabalhar para que ele obtenha votos?
O que a população de Campos perdeu com o uso irresponsável dos royalties foi um conjunto de oportunidades para superar a dependência da Prefeitura e do petróleo. Qual foi o legado? Não sei, acho que, quando a pandemia passar, deveríamos refletir sobre isso sob os arcos do Canal Campos-Macaé – que, apesar da maquiagem, continua sendo chamado de valão.