Mostrando postagens com marcador teoria social. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador teoria social. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Por uma teoria sociológica sistêmica e pós-colonial da América Latina


Por uma teoria sociológica sistêmica e pós-colonial da América Latina* 

* Publicado originalmente em Scielo.br 

O estudo “Por uma Sociologia Sistêmica Pós-Colonial da América Latina” propõe uma teoria sociológica sistêmica pós-colonial para analisar a América Latina enquanto região da sociedade mundial moderna. O autor toma a teoria da sociedade de Niklas Luhmann como ponto de partida para este esforço de construção teórica, que consiste em combinar a análise da unidade da sociedade mundial com a consideração das diferenças e variedades regionais construídas em seu interior. Para alcançar este objetivo o estudo identifica e propõe solução para um problema fundamental na teoria da diferenciação funcional da sociedade formulada por Luhmann: Sua descrição da transição à sociedade moderna enxerga somente um processo de diferenciação funcional singular e interno à Europa, desconsiderando, como os pós-coloniais costumam dizer, o papel da “diferença colonial” na constituição da transição para a modernidade. Para compreender a globalidade das diferenças regionais, a teoria dos sistemas precisa não apenas investir em estudos sobre a globalização dos sistemas funcionais a partir do século XIX, tendo a Europa como o núcleo difusor dos processos sociais globais, mas sobretudo questionar e revisar sua descrição da própria transição para a sociedade moderna, realizando uma profunda autocrítica.

Por isso, o autor propõe rever a tese da transição à sociedade mundial funcionalmente diferenciada a fim de escapar da narrativa da singularidade ocidental, segundo a qual outras regiões recebem, sempre de fora para dentro, estruturas sociais e semânticas gestadas primeiramente na Europa. A ideia é recontar a história da modernidade, substituindo a narrativa única de uma diferenciação funcional desenvolvida inicialmente no interior da Europa e depois expandida para o resto do mundo por narrativas plurais sobre a experiência de cada contexto “geo-histórico” como parte do desenvolvimento “entrelaçado” e “múltiplo” de sistemas funcionais globais. O diálogo com a crítica “pós-colonial” conduz o autor à tese de que, também na teoria dos sistemas, é necessário reescrever a história do ocidente a partir das relações e diferenças que o constituíram.

O argumento principal é que é possível propor uma recepção da teoria da sociedade mundial de Luhmann que corrija seus componentes eurocêntricos, permitindo construir uma concepção não culturalista e não essencialista da América Latina. Processos e estruturas da regionalização são considerados como variações normais da modernidade global, e esta, por sua vez, enquanto dinâmica societária diferenciada e não estacionária. Nesta recepção crítica da sociologia de Luhmann, a construção da América Latina como regionalização semântica e estrutural deixa de ser vista como desvio, sob o signo da falta, da modernidade plena de outras regiões. A modernidade contemporânea não é identificada com nenhuma região específica do planeta, embora se reconheça a centralidade da Europa em sua emergência. Todas as regiões, assim como outras configurações estruturais, se constroem a partir da modernidade global, na qual estruturas neocoloniais se reproduzem, mas não constituem um sistema unitário como nas relações coloniais do passado pré-moderno, e sim um conjunto de relações centro/periferia fragmentadas pela lógica da diferenciação funcional da sociedade. O unitarismo estrutural característico do colonialismo, com sua relação entre “centro” e “periferia” válida em todas as dimensões, é rompido pela diferenciação funcional, que impõe uma fragmentação da oposição centro/periferia em múltiplas diferenças entre “centros” e “periferias” no interior dos distintos sistemas funcionais.

Para o autor, a diferenciação funcional não apenas fragmenta e rompe com o primado da colonialidade; ela também produz o horizonte e as condições de possibilidade de crítica e transformação semântica e estrutural das assimetrias entre povos, Estados e nações. Ele identifica um deficit de autorreflexão no pós-colonialismo, que pretende fazer uma crítica “externa” da modernidade/colonialidade, como se o horizonte normativo de uma “humanidade compartilhada”, que também orienta em última instância a crítica pós-colonial, não dependesse de uma formação societária na qual a colonialidade não é a forma primária, necessária e naturalizada de constituição de relações e unidades sociais. O ponto central é que a diferenciação funcional da sociedade mundial produz a contingência das estruturas de desigualdade social em toda as suas formas: A referência ao ideal de que “somos todos humanos” é uma fonte conhecida da semântica moderna da inclusão de todas as pessoas nos sistemas funcionais  de uma sociedade pós-tradicional e pós-colonial, na qual diferenças ontológicas entre pessoas, grupos, povos, nações, classes, gêneros, etnias etc. podem ser observadas como construções contingentes e arbitrárias passíveis de transformação.

Para ler o artigo, acesse:

DUTRA, R. Por uma Sociologia Sistêmica Pós-Colonial da América Latina. Dados [online]. 2021, vol.64, no.01 [viewed 28 September 2021]. https://doi.org/10.1590/dados.2021.64.1.229. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582021000100206&lng=en&nrm=iso

Links externos:

Dados – Revista de Ciências Sociais – DADOS: www.scielo.br/dados

Página Institucional do Periódico: http://dados.iesp.uerj.br/

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Mulheres, teoria social e uma coletânea indispensável



Mulheres, teoria social e uma coletânea indispensável*

* Publicado originalmente no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social.

Mariana Chaguri

O recém-lançado Clássicas do Pensamento Social: mulheres e feminismos no século XIX com organização e comentários de Verônica Toste Daflon e Bila Sorj é uma obra que nos ajuda a perceber como a história das ideias e da produção do conhecimento é também uma história da produção da diferença baseada em gênero.

A coletânea reúne trechos de obras de Alexandra Kollontai (Rússia, 1872-1952); Alfonsina Storni (Argentina, 1892-1938); Anna Julia Cooper (EUA, 1858-1964); Charlotte Perkins Gilman (EUA, 1860-1935); Ercília Nogueira Cobra (Brasil, 1891-?); Harriet Martineau (Inglaterra, 1802-1872); Pandita Ramabai Sarasvati (Índia, 1858-1922) e Olive Schreiner (África do Sul, 1855-1920).  Autoras nascidas no século XIX, em diferentes geografias, e que, a despeito da boa circulação que encontram em seus respectivos tempos históricos, foram se tornando presenças fugidias nos manuais de teoria social.

Como apontam as organizadoras, trata-se de um apagamento que se intensificou conforme o processo de institucionalização das Ciências Sociais foi se aprofundando em diferentes partes do mundo. Como consequência, essas e tantas outras mulheres intelectuais passaram, na melhor das hipóteses, a terem suas existências registradas em compêndios ou manuais de teoria social. Um registro que não significa, no entanto, o debate sobre suas contribuições à teoria social, promovendo a marginalização ou mesmo a exclusão de suas ideias dos balanços e avaliações críticas acerca do estatuto teórico e das inovações científicas da disciplina.

Ao apresentar trechos seleccionados de obras, artigos ou textos avulsos – a maioria deles inéditos em português -, Verônica Daflon e Bila Sorj oferecem subsídios teóricos e ferramentas analíticas que nos permitem rever, alargar e repensar o que e quem constitui o cânone clássico da teoria social. Desse modo, a coletânea oferece uma contribuição fundamental à tarefa de recuperação dos “elos e [das] genealogias de pensamento de mulheres e de feminismos nas mais diversas áreas das artes e do conhecimento” (Daflon e Sorj, 2021: 10).

O esforço empírico e analítico de refazer tais elos é tarefa chave para a desorganização da dinâmica das relações de poder que hierarquizam, legitimam ou deslegitimam inovações teóricas e metodológicas, modos de construir problemas ou perguntas de pesquisa no interior da teoria social, sobretudo aquela classificada como clássica. Longe de querer dirimir nesta resenha a polêmica sobre o que faz de uma obra ou um/a autor/a um/a clássico/a, aponto que Clássicas do Pensamento Social nos ajuda a perceber como tal seleção integra instituições, escritores/as, críticos/as e leitores/as num mesmo circuito de trocas intelectuais e culturais, ou seja, ainda que ocupem posições diferenciais neste circuito, todos/as ajudam a selecionar, colocar em circulação e legitimar autores/as e obras.

Clássicas do Pensamento Social nos permite revisitar a história da teoria social e enquadrá-la como produto de uma prática coletiva, isto é, moldada pelas relações sociais que a fizeram possível e, não menos importante neste caso, marcada por uma pedagogia dos textos clássicos (Connell, 1997). É por meio desta provocação aos conteúdos substantivos dos clássicos e do cânone que a coletânea nos convida a reexaminar os problemas, questões, pressupostos e práticas compartilhadas que ajudaram a construir determinada teoria social como clássica.

Para tanto, as organizadoras selecionaram autoras de geografias diversas – como África do Sul, Argentina, Brasil, Estados Unidos, Índia, Inglaterra e Rússia – que viveram, produziram e disputaram as ideias científicas e os modos de ver e falar sobre o social e a sociedade em meio às variadas revoluções e transformações na sociedade, na economia e na cultura que marcaram a segunda metade do século XIX e o começo do século XX.

Se em boa parte da história das ideias os anônimos sempre foram mulheres como apontou Virginia Woolf ([1929] 2014), Raewyn Connell não deixa de observar que a maioria dos autores clássicos da teoria social: “viveu vidas burguesas modestas, com suporte do trabalho doméstico de mulheres [mães, esposas, filhas] em lares patriarcais” (Connell, 1997:1527). Entre o anonimato das ideias e o trabalho de cuidado e suporte à produção intelectual de pais, irmãos, maridos, amantes ou amigos, diferentes mulheres sistematizaram ideias, teorias e conceitos para investigação e análise do mundo social, bem como se lançaram nos debates políticos e embates públicos de seus tempos históricos.

No caso das autoras selecionadas para integrar a coletânea Clássicas do Pensamento Social, estamos diante de mulheres que em diferentes espaços sociais e geográficos compartilharam trajetórias pessoais semelhantes: “jovens viúvas, ‘solteironas’, ‘desquitadas’, mulheres sem filhos, mães solteiras, órfãs de pai desde cedo” (Daflon e Sorj, 2021: 14). As oito autoras também compartilham outro traço biográfico comum: foram viajantes ou migrantes, “deslocando-se entre culturas e pessoas, entre o público e o privado, desenvolvendo olhares comparativos e singulares” (Daflon e Sorj, 2021: 15).

Ou seja, mulheres que longe das funções de cuidado e de suporte à reprodução de vidas burguesas mais ou menos modestas em lares patriarcais, percorram acidentados caminhos pessoais e coletivos para se realizarem na e por meio da vida intelectual. Circunstâncias que, segundo as organizadoras, marcaram suas ideias e modos de pensar e falar sobre a sociedade, sendo possível observar que seus escritos também estão permeados por “subjetividades femininas formadas de maneira crítica e não usual” (Daflon e Sorj, 2021: 15).

Clássicas do Pensamento Social faz emergir, então, uma outra história das ideias, colocando uma questão chave para o tempo presente: que teoria social clássica podemos fazer emergir quando dialogamos – com as recusas e adesões típicas de qualquer diálogo intelectual crítico – com as inovações teóricas e metodológicas, os modos de construir problemas ou perguntas de pesquisa que foram formuladas pelas autoras e obras selecionadas?

Analisando em conjunto os trechos selecionados pelas organizadoras, notamos que se trata de uma teoria social que toma como objeto de análise as dimensões privadas e pública do social, evitando dualismo e procurando, a todo momento, colocá-las em relação. Como efeito, temos uma ciência da sociedade que debate as relações entre Estado, mercado e família a partir de pontos de vistas variados, chamando a atenção para a domesticidade, para a reprodução da vida social e para as variadas fontes de legitimação do poder e da dominação. Trata-se, também, de uma teoria social que tem na posicionalidade dos atores sociais um elemento chave de investigação, adotando perspectivas que tomam diferenças de gênero, classe e raça como centrais para a compreensão do social. Como resultado, temos a desestabilização de ideias unitárias de comunidade, autoridade, status etc.

Neste ponto, importa observar que ao enquadrar o social a partir daquilo que hoje chamaríamos de uma perspectiva de gênero, as autoras e obras selecionadas indicam que a imaginação feminista atuou ativamente nas disputas de ideias, conceitos e categorias que ajudaram a estruturar noções como a de nação, nacionalismo, Estado Nacional, direitos e cidadania sobretudo a partir da segunda metade do século XIX. Ao apontar para a historicidades das mediações políticas e analíticas entre gênero, nação, Estado e cidadania, por exemplo, a coletânea nos ajuda a explorar as conexões entre o feminismo do século XIX e aspectos de variadas imaginações anticoloniais e anticapitalistas.

Vista em conjunto, a coletânea Clássicas do Pensamento Social nos apresenta autoras cujas biografias também podem ser lidas como trajetórias coletivas de mulheres intelectuais na virada do século XIX para o XX, com seus alcances e limites, bem como com os trânsitos – mais ou menos acidentados – entre a casa e a rua, mas também entre classes, países, debates teóricos e controvérsias públicas. Do mesmo modo, aponta para o amálgama entre imaginação feminista, demanda por diretos, ação política e a produção de ideias. Ao percorrer os trechos selecionados na coletânea, nota-se que este amálgama fez emergir uma teoria social que torna as noções de igualdade e diferença interdependentes, ainda que em tensão.

Se, historicamente, as mulheres permaneceram fora do tempo ou do acontecimento (Perrot, 2007: 9), num universo socialmente confinado e restritas a falar sobre os “momentos que não se narram, momentos que não se notam” (Souza, 2009:100), Verônica Daflon e Bila Sorj apontam que um tempo possui muitas histórias e que são variados os modos de experimentá-lo, reconstruí-lo e analisá-lo. Ou seja, contextos intelectuais são constituídos por controvérsias e disputas, sendo fundamental construir uma história das ideias e uma história intelectual das Ciências Sociais cujo repertório teórico e metodológico não tome mulheres intelectuais como sujeitos além ou aquém do tempo, ponto chave para afastá-las de noções como pioneirismo ou mesmo de uma política de representação que não desestabiliza cânones ou modos de falar e ensinar teoria social.

Clássicas do Pensamento Social contribui para colocar os ativismos, os escritos e as ideias dessas autoras em contexto, permitindo compreender como elas atuaram sobre os modos de investigar e refletir sobre a sociedade, bem como construíram conceitos e categorias de análise. A coletânea, portanto, nos ajuda a compreender, analisar e avaliar essas autoras como agentes que pertencem intelectualmente a seus tempos pessoais e sociais, participando ativamente dos espaços no qual as controvérsias públicas são travadas e os imperativos da inovação científica demandados (Castro e Chaguri, 2020).

Referências

CASTRO, Bárbara; CHAGURI, Mariana. (2020). Gênero, tempos de trabalho e pandemia: por uma política científica feminista. Linha Mestra, n.41, p.23-31. Disponível em: https://doi.org/10.34112/1980-9026a2020n41ap23-31

CONNELL, Raewyn. (1997). “Why is classical theory classical?,” American Journal of Sociology, 102, n. 6, p.1511-1557.

DAFLON, Verônica Toste; SORJ, Bila. (2021). Clássicas do pensamento social. Mulheres e feminismos no século XIX. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.

PERROT, Michelle. (2007). Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto.

SOUZA, Gilda de Mello. (2009). Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34.

WOOLF, Virgina. (2014). Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas.

terça-feira, 6 de abril de 2021

A desigualdade como problema moderno

Fonte: Clacso.

A desigualdade como problema moderno*

Roberto Dutra**

* Publicado originalmente em Folha 1.

A sociedade moderna é a primeira sociedade em que a desigualdade é percebida como problema social. Quanto mais trivial este fato parece ser, mais as pré-condições sociais desta problematização são esquecidas. Compreender a desigualdade não é só explicar causalmente seu surgimento, sua reprodução e sua mudança, mas também as condições sociais que tornam possível problematizar este fenômeno e observar suas causas não como um dado da natureza, mas como estruturas sociais que podem ser modificadas.

Como é possível que a vida social nos permita ver a desigualdade como um problema e não como garantia natural de ordem? A crítica e a problematização da desigualdade social do ponto de vista da justiça e igualdade pressupõem uma ordem social que seja compatível com a mutabilidade destes fenômenos. Na maior parte da história social da humanidade a desigualdade não foi um problema, mas sim um dado da natureza aceito como tal pelos humanos. Nem toda ordem social comporta a problematização e a mudança das estruturas de desigualdade social. Tanto a crítica da desigualdade quanto as idéias sobre justiça social que orientam esta crítica, incluindo as utopias políticas e o “igualitarismo primitivo” dos sociólogos (Müller, 2002, p. 497-498), pressupõem uma ordem social na qual a mudança das estruturas de desigualdade possa ocorrer sem que esta ordem social desmorone. A mudança das estruturas de desigualdade requer certa continuidade institucional e cultural na sociedade. A idéia de que podemos transformar as estruturas de desigualdade social é muito mais do que uma expectativa sociológica projetada na sociedade (Sachweh, 2011, p. 581): é uma conquista evolutiva da sociedade moderna, que está diretamente ligada à transição para um novo tipo de ordem social, na qual o princípio da igualdade orienta a participação dos indivíduos na política e no direito. É somente como resultado de práticas sociais específicas destas esferas que a desigualdade deixa de ser vista como um dado natural para ser percebida como um obstáculo à realização de determinadas normas e valores sociais. A problematização jurídica e política da desigualdade é o resultado da diferenciação da sociedade em esferas sociais autônomas (economia, política, direito, ciência, família, religião, artes etc.), que abre um horizonte de observação no qual assimetrias entre indivíduos e grupos sociais podem ser percebidas como contingentes e arbitrárias.

A igualdade moderna é complexa (Walzer, 2003): não supõe e nem exige a eliminação de toda e qualquer assimetria social, mas daquelas assimetrias que se somam umas as outras e geram um processo de acumulação de vantagens e desvantagens que destroem a possibilidade de igualdade no acesso a um padrão de vida considerado “digno” e “civilizado” em cada contexto. A igualdade moderna é complexa, não absoluta, porque a sociedade não é uma unidade, mas uma pluralidade de esferas. É este tipo de igualdade complexa que chamamos de cidadania. A pluralidade estrutural criada a partir da diferenciação da sociedade em esferas disponibiliza um horizonte comparativo que coloca as desigualdades em situação de maior ou menor pressão por legitimação. Formas de desigualdade típicas de uma esfera (como as desigualdades de classe produzidas na economia e no sistema de ensino) podem ser contrastadas com formas de igualdade vigentes em outras esferas (como a igualdade formal vigente no sistema político e no sistema jurídico). Em sociedades estamentais como o sistema feudal e o colonial, havia uma unidade estrutural que bloqueava o horizonte comparativo e com isso contribuia para a legitimação não problemática da desigualdade.

Em sua clássica sociologia da cidadania, Marshall (1967) vincula explicitamente o desenvolvimento da busca por igualdade à superação desta unidade estrutural característica de sociedades estamentais e com isso à diferenciação da sociedade em instituições funcionalmente especializadas. Em sociedades feudais, afirma, “não havia nenhum princípio sobre a igualdade dos cidadãos para contrastar com o princípio de desigualdade de classes”(Marshall,1967, p. 64). Com a diferenciação da sociedade em esferas autônomas, ao contrário, a desigualdade de classe deixa de estar fundada em seu próprio direito, e passa a ser “um produto derivado de outras instituições” (Marshall, 1967, p. 77). As duas coisas também podem ser afirmadas em relação às relações de gênero, raça/etnia e à própria divisão política do mundo em nacionalidades (o lado excludente do princípio da cidadania que Marshall não abordou): assim como as relações de classe, elas são constitúidas e observadas em contraste com formas de igualdade vigentes em outras esferas, especialmente com a igualdade formal de natureza política e jurídica, e são produto derivado de outras instituições.

A desigualdade pode deixar de ser um problema

O horizonte cognitivo e normativo que condiciona a problematização da desigualdade não é um dado. Como a hipótese sobre a possível formação de uma sociedade “neofeudal” sugere, este horizonte pode ser eliminado da vida social: a institucionalização da igualdade em determinadas esferas sociais, como o direito e a política, pode ser removida pela formação de estamentos capazes de suprimir a diferenciação da sociedade em esferas. A desigualdade pode deixar de ser um problema para se tornar novamente um dado natural.

Esta possível eliminação do horizonte cognitivo e normativo da igualdade eliminaria também as condições de possibilidade da crítica social da desigualdade. Vale repetir: Esta crítica social é institucionalizada através da introdução e desenvolvimento de direitos de cidadania universalistas, dependendo diretamente das estruturas do sistema político e do sistema jurídico: É somente porque todos os cidadãos têm formalmente o mesmo status político e jurídico que as desigualdades em outras esferas da vida se tornam um problema que deve ser revolvido a partir de decisões políticas e jurídicas: “A distinção entre igualdade e desigualdade constitui um paradoxo. Quanto mais iguais nos tornamos, segundo o paradoxo, mais descobrimos desigualdades, algumas delas de natureza infinitesimal” (Müller, 2002, p. 497).

Recentemente, alguns estudiosos têm levantado a hipótese da refeudalização e renaturalização das desigualdades sociais na sociedade mundial contemporânea (KALTMEIER, 2020; KOTKIN, 2020; DURAND, 2020; ROTH, 2021). Para Joel Kotkin e Olaf Kaltmeier, a classe economicamente dominante está se transformando em um estamento global que concentra recuros econômicos, políticos e culturais no topo da pirâmide social, destrói as classes médias e constrói aquela fusão de dimensões da desigualdade que elimina qualquer esfera da igualdade capaz de servir de contraponto às assimetrias sociais existentes. O novo estamento global passa a dominar a subjulgar as elites políticas, jurídicas e culturais. Surgiria um novo tipo de ordem social de estamentos fechados que suplanta a diferenciação da sociedade em esferas autônomas. Para Cédric Durand, estaríamos diante da formação de um “tecnofeudalismo” como resultado da evolução recente da economia de conquista de dados e espaços digitais: as plataformas corporativas que conquistam, concentram e administram o “mar de dados” (Big Data) produzidos pela multidão de indivíduos e organizações tornam-se “senhores feudais”, dos quais estes indivíduos e organizações passam a depender de modo radicalmente assimétrico. Para Steffen Roth, a possibilidade de formação de uma sociedade neoestamental deve ser tratada como um cenário improvável ao lado de outros possíveis. Ele advoga que a entronização do valor da saúde, como possibilidade surgida da pandemia da Covid-19, produziria a cosmovisão adequada para sustentar e legitimar esta hierarquia neoestamental pós-moderna: povos sanitarimente inferiores poderiam ser governados e colonizados por povos sanitariamente superiores:

“Em uma sociedade mundial da saúde "neo-medieval", seria fácil e óbvio medir não apenas funções específicas, mas praticamente todos os papéis, valores ou comportamentos tendo como parâmetro sua contribuição ou ameaça à saúde. O surgimento de classes, castas ou Estados correspondendo a diferentes níveis de saúde, pureza, infecção ou poluição seria uma consequência provável” (ROTH, 2021, p. 7).

Como vimos, a diferenciação da sociedade em esferas e a igualdade política e jurídica são condições de possibilidade para que a desigualdade seja problematizada, criticada e politizada na sociedade. O aumento da desigualdade e da dependência econômica em relação às corporações que controlam Big Data, e a prevalência de um sistema social (saúde) sobre os outros parecem ser condições necessárias, mas não suficientes para apontar o colapso das condições de problematização da desigualdade. Para que ocorra este colapso, o aumento da desigualdade e o surgimento da dependência na economia digital teriam que resultar não só na fusão das formas de inclusão e desigualdade de distintas esferas sociais, mas esta fusão teria também que eliminar o horizonte normativo e cognitivo da igualdade que permite a problematização da desigualdade. A prevalência do sistema econômico e das desigualdades econômicas teria que ser acompanhada pela formação de uma ordem social mais ampla, destituída de qualquer esfera na qual o valor da igualdade esteja institucionalizado e sirva de parâmetro imanente para politizar desigualdades observadas em outros sistemas sociais. Concretamente, esta ordem social mais ampla teria que ver destruída por completo a igualdade formal entre indivídos e povos, institucionalizada no sistema de Estados nacionais e na cidadania, para que a renaturalização da desigualdade pudesse substituir a igualdade complexa. O mesmo vale para a possibilidade de que o sistema da saúde venha a ocupar a posição de centralidade que a economia ocupa na maioria das situações, com a consequência de que a estrafificação sanitária se torne a dimensão capaz de fundir a agregar desigualdades em uma hierarquia social global, unitária e renaturalizada.

A prevalência de uma esfera social sobre outras é muito mais regra do que exceção na história da sociedade mundial moderna e não significa necessariamente a fusão de estruturas de desigualdade destas diferentes esferas. A formação de grupos estamentais também não basta para identificar o colapso da igualdade. Estruturas de desigualdade estamental especificamente modernas não apenas se formaram a partir de desigualdades de patrimônio e poder ao longo dos séculos XIX e XX (BOURDIEU, 2014), como também foram politizadas e em boa medida alteradas pela própria evolução das esferas sociais.

No entanto, a possibilidade do colapso da igualdade não pode ser descartada. O aumento vertiginoso das desigualdades econômicas, os obstáculos à superação de desigualdades raciais, étnicas e gênero em diferentes esferas sociais e a fragilidade institucional dos direitos igualitários de cidadania são fenômenos que apontam justamente para a possibilidade de desconstrução do horizonte normativo e cognitivo da igualdade e da consequente renaturalização das assimentriais sociais dos mais diversos tipos.

Bibliografia

BOURDIEU, P. Sobre o Estado. São Paulo: Cia das Letras, 2014.

DURAND, C. Technoféodalisme: Critique de l’économie numérique. Paris: Éditions La Découverte, 2020.

KALTMEIER, O. Refeudalisierung und Rechtsruck: soziale Ungleichheit und politische Kultur in Lateinamerika. Bielefeld: Bielefeld University Press, 2020.

KOTKIN, J. The coming of neofeudalism. A warning to the global middle class. New York: Encounter Books, 2020.

MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.

MÜLLER, H-P. Die drei Welten der sozialen Ungleichheit: Belohnungen, Prestige

und Citzenship. Berliner Journal für Soziologie, n. 4 , p. 485-503, 2002.

ROTH, S. The Great Reset. Reestratification for lives, livelihoods, and the planet. Technological Forecasting and Social Change, v. 166, p. 1-8, 2021.

SACHWEH, P. Unvermeindbare Ungleicheiten? Alltagsweltliche Ungleichheitsdeutungen zwischen sozialer Konstruktion und gesellschaftlicher Notwendigkei. Berliner Journal für Soziologie, n. 21, p. 561-586, 2011.

WALZER, M. Esferas da justiça. Uma defesa  do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

** Sociólogo. Mestre em Políticas Sociais. Doutor em Sociologia. Professor Associado do Laboratório de Gestão e Políticas Públicas (LGPP), Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Tudo novo de novo? - Breves reflexões sobre a ação coletiva

Tudo novo de novo?* - Breves reflexões sobre a ação coletiva**

George Gomes Coutinho ***

Quando eu elaborava meu primeiro trabalho acadêmico dotado de algum fôlego, no caso minha primeira monografia na UFF/Campos no início deste século, tive a afortunada experiência de ser orientado pelo professor José Luiz Vianna da Cruz, uma das rochas fundamentais da sociologia e dos estudos sobre desenvolvimento regional entre nós. Muita água correu no Paraíba do Sul desde então. O professor José Luiz, daquela relação formal entre orientador e orientando de graduação, se tornou posteriormente meu amigo, colega de Departamento de Ciências Sociais e prossegue sendo um interlocutor/conselheiro. Tanto é que hoje em dia ouso chamá-lo simplesmente de “Zé” em uma demonstração singular de respeito e carinho que tenho por ele.

Voltando ao início deste século, minha monografia tinha por tema os movimentos sociais na universidade pública. O Zé, do alto de sua experiência, me apresentou uma questão logo no início de nossos trabalhos formulada de maneira simples e objetiva. Afinal, se estávamos falando de movimentos sociais, o que os move? Se a pergunta era sintética e elegante, a resposta (ou as respostas) me levou a trafegar pelas águas turvas das noites em claro. A pergunta do Zé tocava realmente no que era fundamental. Quais seriam os “móveis” da ação coletiva? Arrisco dizer que de lá pra cá parte de meus trabalhos foram tentativas de responder a essa pergunta de forma direta ou indireta e certamente parcela do conhecimento sistemático sobre a política enquanto fenômeno se estrutura nos arredores dos dilemas da ação coletiva.

Na conjuntura atabalhoada em que vivemos Aluysio Abreu Barbosa em uma conversa telefônica amistosa decidiu reencarnar a pergunta do Zé trazendo para o nosso contexto. Senti na pele que de fato as grandes questões não desaparecem. Elas se atualizam de acordo com as especificidades de cada momento histórico. Aluysio inclusive não me colocou “pouca coisa”. Ele nota, de forma correta, que os grandes movimentos coletivos brasileiros ocorridos desde o arrefecimento da ditadura civil-militar até 2015, perpassando o Fora Collor de 1992 e o junho de 2013 nas regiões metropolitanas do país, não são tudo farinha do mesmo saco. De fato não são. Todavia, vamos tentar ver o mínimo estrutural que os aproxima e o muito que diferencia estes grandes movimentos que tem a rua por cenário. Causando estranheza ao leitor, justamente o que os assemelha e os distancia envolve responder a pergunta do Zé: quais os móveis?

Teoricamente, de Karl Marx (1818-1883) a Mancur Olson (1932-1988), o que move grupos e classes que engendram ação coletiva, o “grande móvel”, é o interesse. É justamente o que aglutina e torna possível a ação coletiva e associativa dos sindicatos, movimentos sociais tradicionais, grupos de pressão, movimentos de massa, etc.. Seja a Associação Nacional de Rifles da América, o Greenpeace, O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo ou o pessoal da Tradição, Família e Propriedade. Coloquei exemplos tão discrepantes não tanto para causar desconforto ao leitor. Apenas quis demonstrar que estes grupos, a despeito do seu posicionamento no espectro político, se são de esquerda ou direita, progressistas ou conservadores, todos se agrupam em prol de algum interesse comum e compartilhado. A associação “reduz custos” que seriam simplesmente impossíveis para um indivíduo isolado e a ação coletiva visa permitir que se alcance um objetivo ou um conjunto de objetivos.

Antes de prosseguir, venho declarar minha discordância sobre a morte da política ou o que seria um processo de despolitização no Brasil contemporâneo. Eu concordo que exista um arrefecimento da política tradicional sem dúvida, algo que está na raiz da crise da democracia representativa no mundo. Não por acaso partidos, seja aqui ou na Europa, apresentam um déficit de legitimidade considerável entre seus eleitores. Porém, a política envolve tomar decisões dotadas de caráter vinculante como diria o alemão Niklas Luhmann (1927-1998). Portanto, se a morte é inevitável para tudo o que é vivo, a política é inescapável para todos(as) que vivem em sociedade. Decisões que tem impacto coletivo, seja sobre os parâmetros curriculares do Ensino Médio ou regras de tributação, são da natureza da política. Porém, há a mudança de agendas, novos temas emergentes e das formas de se fazer política, algo que retomarei adiante.

Prosseguindo, se os interesses demarcam a ação coletiva para gregos, troianos e baianos, não podemos ignorar a modulação fornecida pelos valores, visões-de-mundo, ideologias, elementos simbólicos, etc.. Neste ponto TFP e MST tem obviamente posicionamentos inconciliáveis sobre a questão agrária por exemplo. As agendas dos movimentos, a maneira pela qual os interesses se particularizam e dão robustez para a operacionalização da ação, são obviamente distintos. Contudo, temos momentos em que estes movimentos, de natureza mais particularizada, transcendem seu público de adeptos e simpatizantes atingindo a sociedade como um todo. A pauta originária de um grupo torna-se uma pauta consensual entre diversos grupos e classes. Olhemos para o movimento “Diretas Já” na longínqua década de 1980.

Nas “Diretas” o contexto explica. Se a ditadura civil-militar jamais foi um consenso total na sociedade brasileira, o que redundou nos movimentos de resistência insurrecionais (luta armada) e civilistas (atuação nas instituições), é impossível não reconhecer que um regime que durou 21 anos não tenha gozado de legitimidade entre amplos setores da população. Todavia a ressaca produzida pelo “Milagre”, o cenário de hiperinflação galopante e pauperização, tornou o descontentamento incontrolável. Inclusive a atuação da grande mídia oligopolista, até então entusiasta de primeira hora ao golpe de 1964, deu sua contribuição e reverberou o processo de perda de legitimidade dos militares no poder.  Neste ponto da história o que era um movimento perene em prol do retorno dos ritos democráticos de uma contra-elite minoritária (partidos de esquerda, intelectuais e artistas), se tornou um movimento de massa que transcendeu classes e grupos. Só o amplo consenso formado explica em um mesmo palanque gente como Ulisses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva.

O movimento da “Diretas” foi um movimento de massa cujo interesse era o de reinstituir a normalidade democrática. Considero equivocado considerar a “Diretas” um movimento de esquerda, embora que atores tradicionais deste espectro político, o que inclui sindicatos, partidos e movimentos sociais, tenham dado suporte inegável ao que vimos no Brasil na década de 1980. Os atores tradicionais auxiliaram na fisionomia do movimento de massas inclusive pelo acúmulo de expertise em se manterem organizados, a despeito de terem atuado durante boa parte do século XX na ilegalidade ou semi-legalidade. Igualmente forneceram um discurso, muitas vezes contundente, expresso em palavras de ordem onde a crítica da situação econômica era absolutamente oportuna para o momento.

Também o “Fora Collor” na década de 1990 mantém alguns dos aspectos que citei acima:1) transcende a crítica de uma contra-elite minoritária; 2) encontra apoio e reverberação da mídia oligopolista; 3) é dotado de uma fisionomia de esquerda pelo protagonismo de certos atores tradicionais, embora que o consenso naquele momento quanto ao impeachment tenha abarcado diversos grupos sociais para além do espectro político mencionado. 

A questão é que o mundo mudou muitíssimo de lá para cá. A chamada “revolução informacional”, que se potencializa a partir do final da década de 1990, já inclui novas formas de comunicação e interação na sociedade. Ao mesmo tempo tivemos os anos do lulismo neste século XXI, onde os atores tradicionais da esquerda ingressaram nas instituições e tanto passaram a ser “vidraça” quanto tiveram sua atuação contestatória consideravelmente diminuída. Afinal, movimentos e partidos tornaram-se governo. Nesse ínterim novas pautas ganharam ainda mais corpo e possibilitaram o protagonismo de atores que não se sentiam plenamente contemplados pelos movimentos tradicionais de esquerda. Esse diagnóstico não é meu, boa parte da literatura sobre movimentos sociais aponta para esta questão. Aqui, dentre as novidades, falo do movimento ambiental, feminista, movimento negro, grupos LGBTT, etc.. A natureza, este agente difuso, ganha porta-vozes humanos. Jessé Souza (1960), sociólogo brasileiro, ironicamente chama este grupo de “classe média de Oslo”, brasileiros que adotam uma agenda ambiental e de sustentabilidade digna dos nórdicos.  E os afetos e a expressividade adquirem uma enorme relevância onde o clássico problema das diferenças materiais entre as classes sociais passa a ser secundário. Não por acaso o filósofo francês Luc Ferry (1951) aposta que a intimidade, as relações afetivas, é um tema amplamente mobilizador neste século XXI.

Um outro ponto, ao qual não canso de lembrar, é o da fadiga das democracias representativas liberais no mundo todo na nossa conjuntura. Devo este diagnóstico ao sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017). A alta financeirização das economias nacionais, processo que se inicia na década de 1970, torna os governos reféns diretos da pauta fornecida pelas grandes instituições financeiras. Em suma: o que prometem nas campanhas eleitorais não é efetivamente realizado inclusive por constrangimentos e acordos que moldam os orçamentos governamentais. Parte da crise de legitimidade da social democracia européia é explicada por este fator. Na esteira da fragilização dos partidos social democratas, os partidos tradicionais moderados sofrem por inércia. Portanto, a crise da democracia representativa liberal é seguramente também uma crise dos partidos e lideranças tradicionais, um problema que não é só brasileiro.

O junho de 2013 no Brasil se insere neste macro contexto absolutamente complexo. Não foram os atores tradicionais de esquerda que organizaram os movimentos. Pelo contrário. Em várias cidades brasileiras estes atores foram até mesmo hostilizados. Naquele momento muitos analistas ficaram atônitos. O que houve?

Junho de 2013 foi um dos maiores testes da capacidade de aglutinação coletiva das novas formas de comunicação e interação. Como vimos, é inegável o barulho causado. Naquele momento o slogan “Vem Pra Rua” ou o Movimento Passe Livre sintetizam uma pauta reivindicatória que envolveu desde o seu estopim, no caso a revogação do aumento do preço das passagens urbanas, até a crítica ao uso de dinheiro público para as grandes obras que seriam necessárias para a realização dos mega-eventos vindouros. Tanto a Copa do Mundo quanto as Olimpíadas do Rio estavam na lista de prioridades do Estado brasileiro.

Notem que por mais que tenham se apresentado como “movimentos pulverizados”, haviam pautas reivindicatórias que apontavam tanto para o direito de mobilidade urbana quanto implicavam, mesmo que de forma um tanto inábil, na tentativa de influir no processo de tomada de decisão sobre os orçamentos governamentais. Em contraposição ao investimento nos mega-eventos os manifestantes clamavam, mesmo que sem muita precisão, por mais investimentos em saúde e educação. Neste ínterim, até pelo caráter inovador, os grupos políticos tradicionais não conseguiram interlocução ou mesmo captar as demandas apresentadas, dotá-las de objetividade política.

Ali abriu-se uma caixa de Pandora. Os métodos de mobilização, até então jamais vistos no cenário tupiniquim, foram depois largamente utilizados. Inclusive há semelhanças de métodos com o que ocorreu aqui e na Primavera Árabe: redes sociais, novas formas dinâmicas de interação, etc..

Cabe notar que os movimentos da chamada “nova direita” no Brasil se utilizaram depois fartamente tanto da estética de mobilização dos grupos de junho de 2013 quanto até mesmo de nomenclaturas e slogans. Afinal, o “Movimento Passe Livre”, o MPL, de alguma inspirou o “Movimento Brasil Livre”, não por acaso MBL. O slogan “Vem Pra Rua” tornou-se um movimento homônimo.

Nesse ínterim uma pletora de questões aflorou. Trata-se de uma constelação de fatores. Aqui a frustração econômica causada pelo término da era das commodities implicou uma enorme dificuldade de manutenção das políticas econômicas e sociais do lulismo continuadas por Dilma Rousseff. Este é um ponto crucial para entendermos a insatisfação que gerou os movimentos de massa pós-2013. Para além disso os movimentos da “nova direita” passam a vocalizar demandas e perspectivas de grupos da sociedade que até então não encontravam representantes dotados da capacidade de síntese necessária e com enorme habilidade em utilizar as redes sociais. Não quer dizer que não existissem as visões-de-mundo mais conservadoras. Apenas não haviam encontrado grupos que vocalizassem esses sentimentos difusos.

Nesse ínterim, já desde ação penal 470, o “mensalão”, a grande mídia monopolista engrossou de forma sistemática a narrativa que associou o Partido dos Trabalhadores de forma inequívoca, por vezes quase exclusiva, ao fenômeno da corrupção. Por outro lado, no âmbito da política tradicional, Dilma lidou diretamente com um governo dotado de capacidade decisória limitada e um Congresso Nacional rebelde liderado por Eduardo Cunha.

O que tornou os movimentos de massa diferenciados não foi tanto o uso das táticas de comunicação novas já experimentadas em 2013. O que há de novo é o conteúdo apresentado e pela primeira vez desde a redemocratização a ausência de atores ou pautas usualmente apresentadas pela esquerda tradicional. Até 2013 encontrávamos pautas de reivindicação inclusivas, de ampliação direitos. De 2013 em diante não houve sequer a fisionomia de esquerda. Neste ponto do diagnóstico concordo plenamente com Aluysio que me chamou a atenção para este fato.

Contudo é difícil dizer, conforme afirmei anteriormente, que a “política morreu”. Outros grupos, dotados de alta capacidade de negociação jamais arrefeceram. As mudanças que vivenciamos de 2016 para cá na legislação social são obra de grupos que se não redundam em grandes movimentos de massa, até pela natureza silenciosa com que atuam, são tão ou mais eficientes no diálogo com o sistema político tradicional. São grupos de pressão dotados de alto poder de fogo oriundos das 6 mil famílias que concentram boa parte da riqueza nacional. Promovem uma ação coletiva menos visível dado o convencimento promovido pelo dinheiro. Neste sentido na atual conjuntura é desnecessário inflar grandes movimentos da nova direita nas ruas e lidamos com uma contra-elite, pelo flanco esquerdo, profundamente fragilizada e carente de legitimidade.

O que ficará disso tudo? Como já disse Wanderley Guilherme dos Santos (1935), um dos decanos da ciência política brasileira, “o futuro não é materialmente verificável”. O que temos certeza é que a revolução informacional das últimas décadas, se modificou o cotidiano das nossas sociedades, não poderia ter efeito muito diferente nas mobilizações coletivas. Estas, tal como outrora, permanecem guiadas por interesses sendo este o móvel aglutinador. Todo o restante sobre o amanhã ainda “não decantou”. Aguardemos.  Porém, os “móveis” da questão do Zé prosseguem.

* Uma confissão tardia, sincera e necessária neste 03 de dezembro de 2017. Tomei de empréstimo o título do "cantautor" brasileiro Paulinho Moska. Moska lançou em 2003 o disco e a canção "Tudo novo de novo" que inspirou diretamente a forma como batizei esse texto. Se todos somos um pouco ladrões, e creio que somos, espero que a minha condição de réu confesso pelo menos amenize a pena vindoura.

** Texto publicado originalmente  em 24 de novembro de 2017 no blog "Opiniões" do jornalista Aluysio Abreu Barbosa. O blog "Opiniões" é parte do grupo Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ. Disponível em: http://opinioes.folha1.com.br/2017/11/24/origem-da-serie-ruas-do-brasil-resumida-por-george-gomes-coutinho/


*** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes