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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Restaurante Popular: qual política está posta na mesa? (parte 1)



Restaurante Popular: qual política está posta na mesa? (parte 1)

Democracia serve para todos ou não serve para nada. (Betinho)

Por Bruna Machel, Juliana Tavares
e Paulo Sérgio Ribeiro

É difícil precisar como e quando nasce o projeto dos Restaurantes Populares (RPs) no Brasil. Alguns dirão que sua origem data de 1940 pela iniciativa de Getúlio Vargas, que instituiu o chamado Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS)[1], o modelo de restaurantes públicos que ofereciam alimentação às populações pobres, posteriormente destruído pelo golpe civil-militar, precisamente em 1968[2]; outros dirão que os RPs foram iniciativa inédita do Governo do Estado do Rio de Janeiro, em 2000, quando Garotinho implementou o Restaurante Cidadão na Central do Brasil, ofertando alimentos a R$ 1,00 com subsídio estatal[3]. Porém, é absolutamente indiscutível que os RPs foram sistematicamente implementados, enquanto estratégia de promoção da segurança alimentar em grande escala, somente em 2003 como parte integrante do programa Fome Zero do Governo Federal sob comando do então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Tal programa tinha por objetivo superar o problema da fome no Brasil através de uma série de ações articuladas que envolviam desde a participação de setores sociais na formulação destas políticas (tendo como principal consequência positiva a então reorganização do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - CONSEA), como também o fomento à criação de RPs nas cidades com mais de 100 mil habitantes em todo território nacional.

Os princípios que regem o restaurante popular e a importância dessa política pública

Segundo o Manual dos Restaurantes Populares de 2004 do Governo Federal[4], Restaurantes Populares consistem em: 

[...] estabelecimentos administrados pelo poder público que se caracterizam pela comercialização de refeições prontas, nutricionalmente balanceadas (...) a preços acessíveis, servidas em locais apropriados e confortáveis, de forma a garantir a dignidade ao ato de se alimentar. São destinados a oferecer à população que se alimenta fora de casa, prioritariamente aos extratos sociais mais vulneráveis, refeições variadas, mantendo o equilíbrio entre os nutrientes...

Nota-se no manual dos RPs a preocupação em caracterizar esses estabelecimentos como pontos de apoio para pessoas extremamente pobres que vivem em situação de vulnerabilidade social, mas também voltados para as classes trabalhadoras nos centros urbanos. Tais segmentos, submetidos à precarização das condições de vida sob o sistema capitalista, sem poder se alimentar de forma saudável no cotidiano das médias e grandes cidades, acabam lançando mão de alimentações inapropriadas do ponto de vista nutricional, sofrendo, por consequência, muitas vezes com a subnutrição ou a obesidade. E como bem diz a resolução do CONSEA de 2009[5]

O direito humano a alimentação adequada e saudável e a soberania e segurança alimentar e nutricional não se limita a aqueles(as) que passam fome ou que são pobres ou socialmente excluídos(as), mas diz respeito a qualquer cidadão ou cidadã que não se alimenta adequadamente, seja porque tem renda insuficiente ou não tem acesso aos recursos produtivos (terra e outros), seja por ser portador(a) de necessidades alimentares especiais que não são respeitadas, mas, principalmente, porque a disponibilidade e o acesso aos alimentos condicionam de forma significativa suas práticas alimentares.

A partir desses debates e resoluções nacionais, os RPs foram implementados de formas distintas pelos Estados, porém mantendo como forma predominante o princípio universalizante orientado pelo CONSEA. As filas de acesso ao restaurante se tornaram o crivo natural entre aqueles que precisam e aqueles que "não precisam" de alimento a baixo custo, sem que houvesse a necessidade de qualquer medida restritiva por parte do Poder Público. Tal política melhorou a vida de milhões de aposentados, sem-tetos, estudantes pobres e trabalhadores precarizados do Brasil, tornando os centros urbanos mais humanizados. 

No entanto, com o agravamento da crise, especialmente a partir de 2014, a realidade dos RPs foi modificada radicalmente. Alguns governos decretaram então o fechamento destes equipamentos ou a criação de critérios de acesso que visavam a reduzir o número de usuários, vide a cidade do Rio de Janeiro[6]. Como diz o ditado popular: "A corda sempre arrebenta do lado mais fraco"... E o lado mais fraco na luta de classes, por óbvio, tende a ser o lado do trabalhador, da mãe de família, do jovem desempregado.

É didático recordar, por exemplo, que mesmo em meio à crise nacional, o então Governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, não abriu mão de dar isenção fiscal para empresas "amigas", sem que elas aumentassem sua contrapartida do ponto de vista do interesse público[7]; tão pouco deixou de realizar licitações fraudulentas, que comprometeram drasticamente a arrecadação estadual, como aponta recentemente a operação Boca de Lobo[8]. Tais práticas antirrepublicanas, corriqueiras em todo o Brasil, garantem o beneficiamento econômico de meia dúzia de empresas privadas e acabam por gerar prejuízos incalculáveis para a manutenção dos serviços públicos. É nesse contexto que programas como o Restaurante Popular são interrompidos ou descaracterizados. 

A situação em Campos dos Goytacazes

O debate sobre a reativação do Restaurante Popular (RP) em Campos dos Goytacazes-RJ, que será rebatizado de Centro de Segurança Alimentar e Nutricional (CESAN) pela atual gestão municipal, está longe de chegar ao consenso. Se há questões pendentes em sua formulação, deparamos agora com um fator agravante: o fim do CONSEA, uma das primeiras canetadas do presidente recém-empossado Jair Bolsonaro. Esse conselho reunia o melhor da inteligência nacional sobre a temática, tendo sido um referencial para diferentes programas de governo. 

Decretado o fim do CONSEA, aumenta-se a margem de experimentação dos governos municipais no terreno da segurança alimentar e nutricional e, não menos, a necessidade de fortalecer a participação popular nessa política em um momento de tantas incertezas quanto à cooperação entre União, estados e municípios para assegurar o abastecimento alimentar, o combate às causas da pobreza e dos fatores de marginalização, entre outras competências comuns dos entes da federação.

Segundo a apresentação da Prefeitura durante plenária do Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), em 09 de Novembro de 2018, para se alimentar no CESAN, as pessoas passarão por uma triagem, onde serão divididas em 3 categorias de renda, que definirá quem pode ou não contar com o subsídio público.

Terão direito à gratuidade pessoas cuja renda familiar seja de até R$ 178,00 per capita, comprovada pelo Cadastro Único do Governo Federal (CadÚnico). À primeira vista, parece uma iniciativa cuja justificativa é auto-evidente. No entanto, esbarramos no problema da dimensão de seu impacto real na vida destas pessoas, já que elas, em sua maioria, vivem em bairros periféricos e têm um acesso dificultado ao centro da cidade em face das não poucas insuficiências que temos em mobilidade urbana. Não seria exagero dizer que, com o fim das passagens a preços populares, o impacto da gratuidade do RP no cotidiano das populações extremamente pobres será, provavelmente, menor do que se desejaria.

Já famílias com renda mensal de até três salários mínimos per capita receberão subsídio de 50% do valor licitado. Tal valor ainda não foi definido. Porém, é plausível estimar, com base no contrato anterior, que vigorou até o fechamento do restaurante em 2017, que o preço final para o usuário nessa faixa de renda deva variar em torno de R$ 4,00. Estamos diante de uma possibilidade que, caso se confirme, será um tanto contraditória: pessoas em variadas situações de privação e de vulnerabilidade terão de pagar 300% mais caro por uma alimentação que custava, até 2017, R$ 1,00. Tudo isto em um momento de desvalorização do salário mínimo, altíssimos índices de desemprego e desmonte de programas sociais como o Cheque Cidadão.

Também é preocupante o fato de a Prefeitura de Campos anunciar o fim do subsídio para todos aqueles que, por alguma razão, não estejam inscritos no CadÚnico do Governo Federal ou que, simplesmente, não se enquadrem nos critérios de renda delimitados. Para esse trabalhador e trabalhadora, restará pagar o valor integral do contrato entre a Prefeitura e a empresa privada concessionária do serviço público? Valor este onde se incluem o custo real e o lucro do empresário, pagando, desse modo, o mesmo que se pagaria em qualquer estabelecimento comercial no Centro de Campos dos Goytacazes?

Após a breve abordagem feita na seção inicial sobre os princípios que regem a política dos RPs, é possível afirmar que sua função social vai muito além de uma noção minimalista de “focalização” na assistência social, pois envolve uma visão democrática de cidade voltada para as classes populares, não se caracterizando, portanto, pela seletividade, mas pelo conceito ampliado de Cidade para os Trabalhadores. Na segunda parte deste texto, discutiremos com mais detalhes o que venha a ser focalização nas políticas sociais e algumas polêmicas que julgamos desnecessárias em torno da mesma quando contraposta ao princípio da universalização.

Longe estamos de viver em uma cidade cujos trabalhadores compartilhem os mesmos lugares de cidadania. Dividimo-nos em classes sociais na cidade do capital, que nada mais é do que a cidade da segregação, da especulação imobiliária, do exército de reserva de trabalhadores desempregados ou subempregados, da reprodução da miséria em “escala industrial”. Ações que tornam a cidade mais conectada com a demanda dos trabalhadores, no sentido de efetivação de direitos, entram em confronto com o interesse daquela entidade que paira fantasmagoricamente acima dos governos, o dito mercado.

Sigamos o exemplo de cidades como Teresina[9] (que curiosamente possui um PIB per capita menor do que Campos dos Goytacazes), ou o exemplo das mais de 30 cidades do Rio Grande do Norte[10], ou mesmo de Belo Horizonte[11], que mantém os RPs em pleno funcionamento. Ademais, não negamos o fato de que existe uma população em situação de rua crescente, localizada no área central da cidade. Essas pessoas, que devem ser assistidas pelo Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), contam hoje com a solidariedade de grupos religiosos que distribuem alimentos em porta de igrejas e nas praças públicas, além de projetos sociais como o Café Solidário.

De fato, a reabertura do restaurante popular deverá amenizar um pouco a dor destas pessoas e isso é inegavelmente importante do ponto de vista da dignidade da pessoa humana. Sem subestimarmos essa virtualidade, o que propomos debater aqui é o estilo de política social a ser implantado e, por conseguinte, a clareza e a efetividade dos critérios de focalização que serão adotados em uma política cuja razão de ser é conjugar segurança alimentar e nutricional com outras demandas não menos essenciais para redistribuir a riqueza produzida socialmente.


[2] Ibid. ibidem.


sábado, 15 de dezembro de 2018

Restaurante popular: notas para um debate


Restaurante popular: notas para um debate 

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Eis um tema que requer uma crítica propositiva no campo progressista: a política municipal de segurança alimentar e nutricional. Delinear tal crítica não é tarefa simples, sobretudo pelo senso de urgência que a regressão dos indicadores sociais suscita no Brasil pós-golpe. Em Campos dos Goytacazes-RJ, o retorno dessa pauta diz respeito ao serviço, suspenso desde 2017, do "Restaurante Popular". No afã de estabelecer sua marca distintiva, a atual gestão anuncia a mudança de nome do restaurante em seu processo de reativação: "Centro de Segurança Alimentar e Nutricional" (CESAN). Para Sana Gimenes, Secretária Municipal de Desenvolvimento Humano e Social, trata-se não somente de rebatizá-lo, mas de modificar o "modelo" dessa política social[1]

Para esboçar o que venha a ser tal “modelo” no cenário local, temos de abordar preliminarmente o que é segurança alimentar e nutricional. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA)[2], órgão de assessoramento imediato da Presidência da República, expõe a razão de ser dessa política: o direito universal ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente que não comprometa o acesso a outras necessidades essenciais. Sua prioridade é a oferta pública de práticas alimentares benéficas à saúde que tenham por fundamento o respeito à diversidade cultural e que sejam ambiental e economicamente sustentáveis.

Trata-se, pois, de aplicar um conjunto de ações intersetoriais na gestão da cadeia produtiva de alimentos que não relegue ao segundo plano questões como, por exemplo, a fiscalização do uso de agrotóxicos nas lavouras comerciais – quando resulte em ganhos de produtividade em descompasso com a saúde dos(as) trabalhadores(as) –, bem como a redução da desigualdade de acesso à terra urbana e rural e ao território, o fomento à agricultura familiar e o fortalecimento da produção orgânica e agroecológica de alimentos, a regulação dos meios (um palavrão para os “liberais morenos” que temos...), notadamente a publicidade infantil, no que toca à redução do estímulo ao consumo de alimentos prejudiciais à saúde ou que nos distanciem de hábitos alimentares tradicionais que constituam um bem coletivo.

Tomando por referência o conceito adotado pelo CONSEA, discutir segurança alimentar e nutricional implica avaliar o quão próximo ou distante estamos da condição de soberania alimentar: o direito que assiste aos povos de definir com autonomia as políticas sobre o que produzir, para que produzir e em que condições produzir. Topamos aqui com um fato e um dado: a crescente incapacidade do Estado que conduzir sua política social sob a captura do capital financeiro. O diagnóstico aqui quase sempre é destinado aos Estados nacionais, porém, ensina a doutrina administrativista, municípios também são uma expressão do poder estatal enquanto entes dotados de autonomia política desde à Constituição de 1988.

Fazer-se “soberano”, no sentido bem compreendido do termo para uma prefeitura municipal, leva-nos a avaliar possibilidades e limites da participação popular nas instâncias de decisão competentes para a política de segurança alimentar e nutricional que se desenha no momento. Desse modo, creio que tão importante quanto dimensionar recursos e restrições para a sua execução orçamentária, é diagnosticar problemas de concepção dessa política, pois traduzi-la é em si mesmo um desafio para o campo progressista que queira construir mediações para a cidadania ativa dos futuros usuários do CESAN.

Como a Prefeitura propõe a retomada do serviço?

Projeta-se um acréscimo de 1000 refeições em comparação com o que se ofertava na primeira versão do Restaurante Popular (em torno de 2500 refeições) e a inclusão do jantar (antes se restringia ao café da manhã e ao almoço). É previsto gratuidade para pessoas em situação de pobreza, extrema pobreza e em situação de rua, conforme dados do Cadastro Único do Governo Federal (CadÚnico) e, também, preços reduzidos à metade para pessoas inscritas no CadÚnico que não se enquadrem em nenhuma das situações mencionadas acima. Demais pessoas pagarão preços “normais”. Os preços da refeições e a localização do CESAN ainda não foram definidos. Seus dias de funcionamento serão de segunda a sexta-feira.

A prestação do serviço será descentralizada: de um lado, contração, mediante licitação, de empresa especializada para o preparo das refeições e manutenção dos equipamentos e maquinário; de outro, uma parceria com os permissionários do Mercado Municipal que doarão alimentos inadequados para comercialização, mas próprios para o consumo humano, destinados a um “Banco de Alimentos”, que responderá parcialmente pelo abastecimento. Para este fim, também é prevista a participação da agricultura familiar e das cooperativas em pelo menos 30% dos alimentos ofertados; outra articulação com o setor privado – a Liga Gastronômica de Campos – é proposta com o objetivo de assegurar o funcionamento do CESAN nos fins de semana. Cogita-se ainda oferecer aos sábados refeições no CESAN aos assistidos pelo Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (CentroPop).

Feita essa rápida descrição do rol de proposições da Prefeitura, chamo atenção para uma declaração da secretária municipal de Desenvolvimento Humano e Social que sinaliza o tamanho da expectativa em torno da retomada do "Restaurante Popular" (ainda que com outro nome) para um governo cuja popularidade está em xeque:

A gente trabalha com a perspectiva imediata de combater a fome, mas queremos construir uma política mais ampla, de forma que a segurança alimentar e nutricional seja uma das principais bandeiras de nossa gestão — disse Sana [Gimenes][3].

Nada contra (nem a favor) um agrupamento político não medir esforços para manter e/ou ampliar o seu espaço de poder. Lutar para demarcá-lo não é crime nem pecado, sobretudo se a efetividade de um serviço público está em jogo. Mas cabe indagar se aquele espaço é ou não um espaço democrático. Este caracteriza-se pela abertura que a sociedade civil organizada tem para exercer o dissenso em processos de decisão coletiva. Se o CESAN é um divisor de águas como se pretende, é fortuito que o debate público seja ampliado para desfazer os nós em questões pendentes[4]. Contrapondo a fala da secretária com as proposições já descritas, não está claro onde começa a universalização e termina a focalização dessa política de segurança alimentar e nutricional.

Universalização e focalização são orientações normativas e não conceitos estanques, podendo ser conjugadas de diversas maneiras em casos concretos. Ao que tudo indica, há uma prevalência da focalização no estilo de política social que se quer adotar, ainda que o discurso oficial pareça dizer o contrário. Se isto é razoável ou não, dependerá do arranjo que se pactue entre a administração municipal e a sociedade civil, considerando que o município (Estado) pode ser um transferidor de renda para cima ou para baixo segundo a constelação de interesses que guie seus atos administrativos. Considerando a amplitude do conceito de segurança alimentar e nutricional, o experimento de proteção social anunciado em Campos dos Goytacazes pode ser também uma política redistributiva para a cidade. Para tanto, há de se esclarecer qual concepção de justiça social está posta na mesa.