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sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Repúdio à invasão violenta de evento acadêmico por bolsonaristas.


Repúdio à invasão violenta de evento acadêmico por bolsonaristas*.

 * Publicado originalmente em Change.org.

NOTA DE REPÚDIO

O Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas sobre a Democracia da Uerj (Cebrad/Uerj/CNPq) e o Laboratório de Alternativas Institucionais da UFF (LAI/UFF/CNPq) vêm a público manifestar seu mais veemente repúdio à ação perpetrada por militantes bolsonaristas que, no dia 03/12/2020, por volta das 19h, invadiram a live de lançamento do livro Bolsonarismo: teoria e prática, produzido em parceria pelos nossos núcleos de pesquisa e recém publicado pela Gramma Editora.

O evento, de cunho acadêmico, propunha-se a debater os temas ligados à natureza, desenvolvimentos e impactos do bolsonarismo como fenômeno sociológico e político sobre a sociedade e sobre as instituições políticas nacionais. Não havia nenhuma conotação partidária ou ideológica no encontro, cujo intuito era a livre discussão científica. Foi neste ambiente que militantes bolsonaristas se infiltraram e, aos gritos, tentaram silenciar os debatedores.

Não obtendo sucesso, postaram vídeos grotescos, de cunho pornográfico, com o objetivo de constranger os presentes e impedir o prosseguimento do debate. Ainda que tenhamos conseguido repelir os invasores e concluído com êxito a discussão, houve prejuízo para diversas pessoas que não puderam mais acessar a sala.

Os signatários desta nota entendem que é legítima a expressão de toda divergência política, ideológica ou teórica numa sociedade democrática, mas não podemos admitir práticas fascistas que têm por objetivo impor uma visão única e calar o divergente. Expressamos, assim, nossa repulsa a essa ação antidemocrática, que não pode prosperar na nossa sociedade.

Rio de Janeiro, 09 de dezembro de 2020

Geraldo Tadeu Monteiro, Coordenador do Cebrad/Uerj/CNPq

Carlos Sávio Teixeira, Coordenador do LAI/UFF/CNPq

Essa nota vai subscrita pelas seguintes entidades e pessoas, estando aberta à adesão de todas pessoas físicas e jurídicas que cerram fileiras na defesa dos Direitos Humanos e das liberdades democráticas.

Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais - Coordenação Regional do Rio de Janeiro;

APSERJ - Associação Profissional dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro

Sindicato dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro

SINTIFRJ - Sindicato dos Trabalhadores do Instituto Federal do Rio de Janeiro

Professor Thiago de Jesus Esteves (IFRJ)

Professor Lier Pires Ferreira (Ibmec; CP2; Lepdesp)

domingo, 28 de abril de 2019

Por que defender as Humanidades?


Por que defender as Humanidades?

Por Milton Lahuerta*

Historicamente, as chamadas Humanidades preocupam-se com o conhecimento crítico sobre a arte, a filosofia, o indivíduo, a cultura, a economia, o poder, etc. Numa palavra, elas têm por foco o homem em toda a sua complexidade. Neste sentido, em qualquer uma de suas áreas de atuação – o ensino, a pesquisa, a editoração, o jornalismo, o planejamento, a comunicação, o rádio, a televisão, o cinema, a música e o teatro –, as Humanidades lidam com conhecimentos e valores que norteiam a formação das sociedades, interrogando-se, permanentemente, sobre o ser humano singular e o mundo social em constante transformação.

Esses conhecimentos e valores são decisivos para a formação das novas gerações, para sua inserção na vida social e para o modo como elas vão lidar com a dimensão pública e com dinâmica democrática.

É claro que a perspectiva de formar as novas gerações para a vida civil não é fácil de ser cumprida numa época permeada pela prioridade da eficácia, na qual o tempo se acelera drasticamente, os papéis sociais tradicionais não conseguem se reproduzir, as certezas são colocadas em xeque e a vida passa a ser pautada pela lógica da descartabilidade. Decorrentes de uma transição para um novo padrão produtivo e tecnológico de escala planetária, essas transformações implicam novos requerimentos educacionais e têm forte impacto não apenas no trabalho, mas em todas as dimensões da vida.

Essa é uma questão decisiva, já que as duas principais finalidades da educação – a transmissão dos conhecimentos e da cultura necessários à integração social, e a formação de seres humanos autônomos – vêm perdendo sentido nas sociedades contemporâneas. Com isso, generaliza-se a perspectiva de que o sucesso profissional depende, exclusivamente, da aquisição de “conhecimentos úteis”, que, por sua aplicação, trazem benefícios materiais imediatos a seus portadores.

Com a naturalização desse modo de pensar, perde-se de vista um pressuposto fundamental: que a escola, e principalmente a Universidade, não devem apenas instruir e adestrar para o mercado, mas educar para a vida, formando seres humanos capazes de pensar com espírito crítico e autonomia moral.

É justamente aí que se encontra a importância das Humanidades como uma espécie de memória do que é (e foi) o homem, do que disse e pensou sobre si mesmo, resgatando e conhecendo os erros e malogros de nossas sociedades, constituindo-se numa base imprescindível para ensinar a viver no futuro.

Cada vez mais, a própria complexidade das sociedades atuais está a exigir profissionais capazes de pensar com autonomia, de apresentar explicações abrangentes sobre os processos em curso e de oferecer alternativas aos problemas individuais e sociais. Os egressos dos cursos de Humanidades – por estarem habituados à incerteza e ao questionamento permanente de seus próprios pressupostos – acabam por ter uma vantagem comparativa perante profissionais de áreas técnicas e especializadas: mais do que apenas preparar para o mercado, as humanidades formam para a vida. O que, numa era de grandes transformações, não é pouco!

* Sociólogo; Doutor em Ciência Política; Coordenador do Laboratório de Política e Governo da UNESP/Araraquara.

sexta-feira, 22 de março de 2019

Em defesa da liberdade docente - o caso do Liceu de Humanidades de Campos


Em defesa da liberdade docente - o caso do Liceu de Humanidades de Campos*

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Não é a primeira vez que tratamos de violações à autonomia didática e científica das instituições de ensino desde que a redemocratização entrou em agonia há quase três anos. Relembremos nossos posicionamentos sobre as tentativas de censura à disciplina optativa "Tópicos Especiais em Ciência Política 4: o golpe de 2016 e a democracia", oferecida pelo professor Luís Felipe Miguel na Universidade de Brasília (Unb) (aqui), bem como à Cássia Maria Couto, professora da rede pública de ensino do estado do Rio de Janeiro, que sofreu ataques covardes em sua página no Facebook devido a uma simples ironia sobre a dita "doutrinação" nos espaços escolares (aqui). 

Agora, quem sofre semelhante constrangimento é Marcos Antônio Tavares da Silva, professor de Português do Liceu de Humanidades de Campos dos Goytacazes/RJ[1]. O motivo? Uma redação solicitada aos seus alunos tendo por mote a charge "O patriota" (ver acima). É bom que se diga: uma atividade rotineira para professores(as) de Português e demais disciplinas que compõem o arco das "Humanidades" - isto é, a própria missão institucional do Liceu! - e cujo conteúdo chega a ser trivial para estudantes concluintes do Ensino Médio. Aliás, a charge veio ao mundo em 2017, sendo assinada por Vitor Teixeira no sítio "Humor Político"[2].

O constrangimento pelo qual passa o professor Marcos já foi reportado à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ):



Afinal de contas, por que tanto alarde em torno de uma simples tarefa escolar?

Olhar com sobriedade o "caso Liceu", que toma de assalto a opinião pública, leva-nos a pensar uma questão-chave para a autonomia didática do(a) professor(a): a relação entre razão e autoridade. Para tanto, nada melhor do que reler "Resposta à pergunta: 'Que é Iluminismo'"?[3], de Immanuel Kant, para distinguirmos quando termina a autoridade e onde começa a razão entre a escola e o seu entorno.

Se levarmos a sério a concepção de autonomia legada por Kant, localizaremos na educação escolar uma tensão permanente entre razão e autoridade. Não haveria mesmo como nos aliviarmos dela, uma vez que a escola somente confirma sua potencialidade emancipadora na transmissão de um patrimônio universal - o conhecimento que o gênero humano produziu até aqui - se "trair" a si mesma. 

Confuso até aqui? Explicamos: o Iluminismo possibilitou aos homens (e, por contrabando, às mulheres...) reconhecer, quiçá pela primeira vez, que vivemos em estado de "menoridade" e, logo, seria contraditório estarmos sob a tutela de alguém para superá-lo. Ora, se nos é facultado o entendimento e, mesmo assim, continuamos inaptos diante das indagações que a vida social nos solicita, é porque pouco nos servimos de nós mesmos. 

Atreva-se a conhecer! - Sapere aude! -, eis uma provocação do Iluminismo que sempre encontrará resistências, na medida em que figure para o homem e mulher medíocres uma perda do conforto que a ignorância lhes assegura. "É tão cômodo ser menor", admite Kant, ou lembrando uma frase icônica do filme "Matrix", a ignorância é uma bênção... 

A passagem à maioridade, contudo, não é uma impossibilidade. 

A todo tempo, lidamos com restrições ao pensamento: temos de pagar tributos, crer em símbolos nacionais e/ou religiosos, adequar-se às convenções sociais sem precisarmos de outra disposição senão ajustar-se irrefletidamente à ordem estabelecida. 

Até certo ponto, é lícito que assim seja se considerarmos a noção kantiana de uso privado da razão: um(a) professor(a) do Liceu de Humanidades, por exemplo, não poderia desvincular o uso que faz de sua razão das atribuições do cargo público a ele(a) confiado(a). Há um regime disciplinar, orientações curriculares a seguir, decoro a zelar etc. Porém, de um(a) professor(a) não é exigível educar os(as) seus(as) alunos(as) para continuarem sendo... seus(as) alunos(as).

Qual se fosse um parteiro de ideias ao modo socrático, professores(as) se constituem como intermediários culturais entre aquilo que ensinam e o uso público da razão enquanto destino para o qual seus(as) alunos(as) são estimulados a caminhar com as próprias pernas: a liberdade de trabalhar em salas de aula todos os elementos disponíveis para o entendimento é uma condição necessária para que homens e mulheres adultos(as) tenham sido educados para exercer a liberdade civil. 

Por liberdade civil, leia-se: uma pessoa falar em seu próprio nome para um público sem obedecer a outro critério senão expor com clareza seus próprios juízos e ideias para o exame de todos(as). Ser livre é uma realização pessoal que, todavia, apenas a socialização referenciada na liberdade de pensamento pode garantir. Aqui, os espaços escolares ainda configuram o lugar de excelência dessa forma de socialização, malgrado serem também espaços de controle e de nivelamento.

Voltando ao "caso Liceu", que crime ou pecado cometera o professor Marcos? Dizer, por intermédio de uma charge, aos(às) seus(as) alunos(as): "Sapere aude!". Atreva-se a conhecer: a posição de subalternidade do Brasil frente aos Estados Unidos com a política externa ultrajada pelo governo de Jair Bolsonaro. 

Secundaristas, atrevam-se a conhecer: a base militar de Alcântara, localizada no Maranhão, foi objeto de acordo assinado por Bolsonaro com o governo de Donald Trump para lançamentos de satélites, dependendo ainda da aprovação do Congresso Nacional. Pasme, o Ministério da Defesa estima que o país fature pífios 37 milhões de reais para ceder um dos raros recursos militares estratégicos que temos à maior potência militar do planeta[4].

Secundaristas, atrevam-se a conhecer: o Brasil entregue à falange bolsonarista no poder abrirá mão de suas vantagens como membro da Organização Mundial do Comércio (OMC) para ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), subordinando-se às diretrizes do governo estadunidense para o comércio exterior. Quais vantagens seriam essas? Na condição de país em desenvolvimento – status conferido ao Brasil na OMC –, negociar com países economicamente desenvolvidos sem se obrigar à reciprocidade de liberalização do seu mercado interno[5], uma medida protetiva cuja justificativa é autoevidente para um país em franco processo de desindustrialização como o Brasil.

Sem contar, claro, a cereja do bolo: Bolsonaro, um capitão da reserva do Exército brasileiro e então pré-candidato à Presidência da República em 2017, bater continência para a bandeira estadunidense em comício num restaurante em Deerfield Beach, estado da Flórida, região sul dos EUA[6]. Para os(as) incrédulos(as), recomendo uma visita rápida ao YouTube[7].

Chega! Haveria outras tantas demonstrações do patriotismo de araque de Bolsonaro et caterva, mas o texto ficou demasiado longo e não quero desanimá-los(as) expondo ad nauseam a velha síndrome de vira-lata a qual Nelson Rodrigues apontou como a vicissitude mais arraigada entre nós brasileiros(as).

Ao professor Marcos, prestamos nosso apoio e solidariedade por ousar ser iluminista em tempos sombrios. Acompanharemos o desenrolar do “caso Liceu” e desejamos que sua rotina profissional seja prontamente restabelecida em nome do interesse público inerente à arte de educar.

* Última atualização em 23/03/2019, às 11h06.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Damares, doutrinação, “kit gay” e o lugar da ciência após o transe eleitoral


Damares, doutrinação, “kit gay” e o lugar da ciência após o transe eleitoral

Por Luciane Soares da Silva*

Não há dúvida de que o termo mais correto para definir as eleições de 2018 é “boato”. Sabemos que boatos não são novidade na política nacional, já fizeram estrago em eleições anteriores e têm a capacidade de espalhar-se como fogo no milharal. Creio que a novidade consiste no uso do boato como ferramenta ativa de campanha. E como podemos perceber, com êxito diante da interpretação do Tribunal Superior Eleitoral de que tudo transcorreu na mais perfeita normalidade. Com um militar dando entrevista, com tudo.

Normalidade... primeiro afasta-se uma presidente eleita, posteriormente se reconhece a fragilidade do processo, mas com apoio popular a uma campanha anti-corrupção prende-se o principal candidato ao cargo. Entre manchetes espetaculares e patos desfilando na Avenida Paulista, surge um tipo histriônico, despreparado, capaz de incitar ódio em doses cavalares e atacar em um único dia, mulheres, negros, gays e todo o resto que se aproxime de uma classificação “à esquerda”.

Passada a eleição, gostaria de conversar com seus eleitores sobre a pauta moral. Há uma concepção profundamente equivocada em retirar da escola a discussão de temas sobre sexualidade, gênero, direitos humanos.

Não vou desenvolver aqui um ataque ao projeto “Escola Sem Partido” por compreender que em princípio ele é indefensável e impossível de ser efetivado. Nem colocarão mordaças nos professores nem terão meios de punir ou mesmo fiscalizar as escolas em um território como o nosso.

Mas há uma questão importante e ela diz respeito a explicação que alguns religiosos, pais e profissionais da área de educação, pretendem dar para sobrepor a família à escola em assuntos como sexualidade. Em minhas aulas sobre fato social, tenho utilizado não o exemplo do suicídio para explicar o conceito. Tenho discutido em aula os massacres em escolas nos Estados Unidos. E tenho feito isto contra um discurso muito sedutor de que os meninos de Columbine eram “doentes”, comprometidos psiquicamente. Fui estudar os casos. Milhares de livros e psicólogos descrevendo as características de um serial killer. Sem tocar com responsabilidade no tema das armas, na estruturação das escolas e na competição que instaura o estigma de “loser” em crianças de 13 anos. Por serem gordas, tímidas, pobres, lentas, seja lá a razão.

Minha defesa da importância da pesquisa em sociologia é dizer que não, estes adolescentes que a cada ano buscam superar o massacre do ano anterior, não são doentes nem psicologicamente comprometidos. Não podemos explicar estes massacres com Lombroso ou teorias de degenerescência individual. Elas já serviram para justificar o racismo, como Nina Rodrigues e outros no Brasil. Mas não, o problema não é o indivíduo.

A escola é uma das principais instituições modernas. Ela reflete a possibilidade de educarmos uns aos outros. Sobre arte, sobre matemática, sobre amor, sobre sexualidade. Não há limite para o que podemos aprender. Mas a escola é também uma instituição de reprodução de lugares sociais e preconceitos. Esta é a disputa vivida. De qualquer forma, aqueles que tiverem ouvidos abertos, verão dados inegáveis sobre abuso infantil: a maior parte destas crianças sobre abuso em casa ou em seu bairro.

Nos anos 2000, trabalhamos em uma equipe para reconhecer como estas crianças, muitas delas com 6 anos ou menos, expressavam o abuso. Fizemos uma imersão com palestras, conversamos com profissionais, vimos os desenhos que demonstravam padrões, como órgãos sexuais em tamanho disforme, pessoas deformadas, a criança em tamanho muito menor diante de um parente. Ouvimos de como tocavam seu corpo, de problemas para ir ao banheiro. Ou crianças com extrema tristeza, crises de choro ou demonstrações de sexualização precoce. O resultado da pesquisa em escolas e creches de Porto Alegre confirmaria tudo que tínhamos aprendido naqueles poucos dias. Em um dois bairros, nossa equipe foi expulsa e os questionários confiscados.  Mesmo estudando violência, nunca consegui retornar ao tema. E tenho profunda admiração pelos professores, profissionais de saúde, assistentes sociais, religiosos e demais pessoas que se envolvem em uma área que considero a mais pesada do trabalho social.

Abusadores não são monstros, não são “tarados” como tivemos de aceitar enquanto forma de normalização até décadas recentes. Abusadores sabem o que podem e com quem podem exercer seu abuso. Sabem até onde podem ir entre uma mão nas partes íntimas de um menino e o estupro de uma menina de 10 anos. Abusadores não são demônios entre nós como podem querer afirmar algumas igrejas que têm em seus quadros lobos eloquentes.

E só existe uma forma de combate – e todos somos responsáveis por isto – a denúncia e a proteção de infância e da adolescência. A família não pode seguir como uma instituição do século XVIII na qual o patriarca tem poder de vida e morte sobre mulheres, mesas, bois, tudo ao redor.

Se esta eleição, que separou famílias, teve alguma utilidade, foi escancarar esta hipocrisia moral. Ela não terá mais lugar. E agora que sabemos disto, nos resta defender todos aqueles que trabalham por uma educação realmente crítica e construtora de respeito a infância. E dizer a verdade sobre o corpo, sobre nossas necessidades e desejos, nada tem de errado.

Perversão é ganhar uma eleição com uma pauta moral sórdida e mentirosa.

* Socióloga. Professora Associada à Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Chefe do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (LESCE/CCH/UENF) e Presidenta da Associação de Docentes da UENF (ADUENF).

domingo, 27 de novembro de 2016

O senso do senso comum

O senso do senso comum*

George Gomes Coutinho **

A sociologia, na sua tarefa hercúlea de compreender nada menos que as relações sociais e a sociedade, observa que há um tipo de conhecimento muito específico utilizado no cotidiano. A este conhecimento chamamos de “senso comum”. É utilizado como mediador nas interações cotidianas e representa, sem qualquer idealização, os valores mais marcantes de um determinado momento histórico em uma dada configuração societária. Entramos aí no “conhecimento da vida cotidiana” como os austríacos/americanos Peter Berger e Thomas Luckman queriam. Ou, em uma vertente francesa, a boa e velha doxa de Pierre Bourdieu.  

O poder deste tipo de conhecimento é imensurável. Justamente por não admitir ser questionado, há no senso comum ares de naturalidade e auxilia a dar o formato das relações sociais. Hierarquias valorativas são construídas, o que inclui definir o bom e o mau gosto estético, agrupamentos sociais são bem recebidos ou estigmatizados, comportamentos são censurados ou exaltados, etc.. A lista de efeitos obtidos é imensa. Justamente pelo fato deste conhecimento não ser meramente contemplativo o efeito é concreto. Mirando na enorme capacidade humana de produzir abstrações, certamente o senso comum é o campeão em decantar na realidade.

O único remédio possível seria o da crítica sistemática da “mera opinião”. O rei está e sempre esteve nu. Hierarquias sociais, de toda e qualquer expressão, são construções humanas. Não são naturais e inatacáveis. Contudo, o senso comum, por se apresentar muitas vezes na forma de juízos práticos, atua de forma repressiva em prol de sua própria existência. Embora muitas vezes frágil na sua construção, é este senso comum que permite, dentre outras variáveis, que a vida prática na sociedade permaneça tal qual ela se apresenta. O conjunto de idéias vitoriosas em angariar corações e mentes luta de forma conservadora em prol de sua sobrevivência. O grande vencedor é o status quo. Eis o senso do senso comum.

Por isso na grande área de humanidades, onde seus profissionais vivem “inventando moda”, sociologia, história ou filosofia costumam ficar na berlinda em conjunturas como a nossa. E não é por outra razão que o anti-intelectualismo voltou com tanta energia nos tempos que correm.


* A versão original deste texto foi publicada no jornal Folha da Manhã em 26 de novembro de 2016.

** Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes