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terça-feira, 30 de março de 2021

Anomia ou espelho quebrado?

Anomia ou espelho quebrado? 

Narciso acha feio o que não é espelho.

(Caetano Veloso)

Paulo Sérgio Ribeiro

Não é a primeira vez que escrevo com o pensamento em Viçosa/MG, atual morada deste blogueirinho sujo. Atrever-se a lembrar donde se vive é um risco, pois há sempre a chance de se repetir clichês ao tentar um distanciamento crítico do que lhe pareça familiar ou banal.

Quase nada sei de Viçosa, ainda que esteja nela situado há quase dois anos. Como qualquer habitante, certo trajeto se impôs a minha rotina e este circuito fechado se revelou demasiado claustrofóbico à medida que o isolamento se fez permanente na pandemia. Isolamento, não duvidem, tem sido apenas um ato pessoal de estoicismo diante da quarentena meia boca que alguns eufemisticamente chamam de “novo normal”.

O que é “normal”? O que nos vincula aos outros ao evocá-lo? Haveria alguma escala de valores para mensurá-lo?

O atrativo maior de Viçosa é o campus que lhe toma de empréstimo o nome: Universidade Federal de Viçosa (UFV). Sem dúvida, um deleite para quem aprecie suas manchas de Mata Atlântica, toda sorte de pássaros silvestres, sua jardinagem impecável, além, claro, de ser a preferência de dez em cada dez praticantes de esportes ao ar livre. Estes, entretanto, terão de eleger outro passeio público com a medida restritiva estabelecida pela Reitoria da UFV[1], haja vista a quantidade de frequentadores da universidade que, isoladamente ou em grupo, dispensam a máscara ao se entrecruzarem confiando na vastidão do campus, na providência divina, no Kapitão Kloroquina (com K) ou em sei lá o quê.

Ainda que considere tal decisão razoável, ela faz emergir uma questão que tanto inspira quanto atormenta àqueles(as) que, um dia, beberam da água da sociologia clássica: afinal de contas, o que faz o laço social?

Talvez, fosse mais fácil começar pelo que o esgarça – a dissolução do pacto federativo, entre outros processos de desagregação social - como sinaliza um dos mais argutos cronistas da questão nacional de que dispomos, Roberto Moraes[2]:  

 

A guerra federativa do desgoverno do Partido Militar contra governadores é muito profunda e de riscos incalculáveis.

[...]

Isso começou com a negação da pandemia, se ampliou com a propaganda de remédios sem efeitos, seguiu com o enrolo em relação às vacinas e agora com relação à distribuição orçamentária, como se as pessoas não vivessem nas cidades e estados, mas de um único país. Ninguém mora na nação, sem morar num município ou estado.

[...]

O resultado disso é a redução e a perda da identidade, do sentimento de pertencimento à nação Brasil. União sem soberania e sem articulação e cooperação federativa não é nação.


Não suponho que a nacionalidade seja a definição última de um sentimento comum quanto à origem ou destino coletivo. Mas aceitemos que a ideia moderna de “nação” vá ao encontro da tentativa de dar nome a certas relações de interdependência entre indivíduos estranhos entre si quando o que está em jogo é o controle sobre determinado território, assim como a instituição do Estado de cuja legitimidade depende o fato de que a totalidade daqueles indivíduos seja algo além do que a simples soma das suas partes. A mediação entre Estado e sociedade implica, pois, a figuração de um “todo orgânico” pela qual suas contrapartes se reconheçam mutuamente até mesmo para se posicionar diante dos seus conflitos mais cruentos.

Dito de outro modo, um mínimo de expectativa recíproca das maneiras de pensar, sentir e agir se faz necessário para que uma sociedade complexa transcenda nossas vidas sem reduzi-las a pura contingência. Mas, o que dizer quando um indivíduo se vê ameaçado por sua própria coletividade? Em termos simples: o que fazer quando, diante de um vírus da Covid-19 transmissível pelo ar, engrossando taxas de contágio galopantes e de óbito assustadoras, é quase certo que você topará com alguém ou algum grupinho sem máscara no campus da UFV, numa rua ou praça de Viçosa ou de qualquer outra cidade neste país?

Evidente que aqui subjaz uma situação de classe peculiar: escrevo do ponto de vista de quem pode se isolar para leitores que, provavelmente, participem de condição similar. Há, todavia, um sem número de categorias de trabalhadores que, simplesmente, têm de se expor e, ainda que tentem evitar condutas de risco, estão submetidos a maiores chances de se contaminar. Trato aqui, tão somente, de um comportamento coletivo – ser um agente colaborador de uma guerra biológica contra a humanidade – e do que ele revela sobre como laços sociais se fazem ou desfazem.

Diante desse comportamento coletivo sui generis, indago se há um estado de anomia entre nós.

Em uma primeira aproximação do conceito, anomia consistiria num estado de desorganização social resultante da perda do efeito disciplinador das normas sobre as condutas. A baixa adesão coletiva às tentativas episódicas de governos municipais ou estaduais de restringir a circulação de pessoas nos levaria a crer que a anomia, nos termos tratados até aqui, manifestar-se-ia como um conceito inequívoco em nosso cotidiano.

Porém, ressalva Heloísa Fernandes[3], a evolução mesma do conceito de anomia na obra de Émile Durkheim evidencia um diagnóstico da modernidade controverso em suas premissas.

Se nas primeiras obras do velho mestre francês - Regras do Método Sociológico e A Divisão do Trabalho Social –, anomia seria uma espécie de gradação do célebre conceito de “solidariedade orgânica” que, por sua vez, refletiria uma perspectiva dos conflitos como sintomas passageiros de uma sociedade que, qual um ser vivo em crescimento, comportaria fases de desiquilíbrio rumo ao estabelecimento de novas formas de vida social - desde que seus “órgãos” se mantivessem interdependentes - , em O Suicídio, diz Fernandes, há uma mudança de ênfase: com o “suicídio anômico”, admite-se a possibilidade de que o corpo social seja destruído, na medida em que uma ordem normativa internalizada não seja mais páreo para as paixões humanas que nos arrebatam:

 

Anomia é, então, o diagnóstico do corpo doente, e não mais das relações dos órgãos entre si. Ademais, não deriva da inexistência de regras de intercâmbio mas da ausência de freios. Já não indica a desordem de uma etapa no curso de uma evolução progressiva e automática em direção à solidariedade orgânica mas é o mal que ameaça a sociedade moderna (FERNANDES, 1996, p.75).


Ora, por que duvidar da pertinência do conceito de anomia se continuamos a morrer aos magotes pela elevação da liberdade individual a um valor absoluto por aqueles que dispensam máscaras nos espaços públicos ou simplesmente avacalham a noção de “desobediência civil” como subterfúgio para se reunir às dezenas em quaisquer espaços? Esta imoderação da comportamento não prova que determinadas pessoas seriam espécimes do “homo bolsonarus”, assim interpretado por Renato Lessa[4] como o mergulho numa distopia: devolver-nos ao estado de natureza?

Ao ponderarmos a correlação entre as maiores taxas de contágio da Covid-19 e as cidades com maiores resultados eleitorais favoráveis a Bolsonaro em 2018 [5], é bastante tentador tomar aquele segmento da população brasileira como o avesso da modernidade: a barbárie.

Contudo, tal suposição se mostra duvidosa a julgar pelo acerto de Fernandes (op. cit.) na análise que fez da sociologia do consenso de Émile Durkheim em diálogo com a psicanálise. O conjunto de valores e crenças que regulam o comportamento humano seria o correlato do superego, esta instância da autoridade moral a expiar nossas volições inconscientes numa luta sem fim por domá-las... em vão. Todavia, a consciência coletiva atribuível àquela “autoridade” se desvanece quando o indivíduo encontra-se sob pressão das múltiplas filiações valorativas propiciadas pela ruptura com a tradição que a modernidade nos brindou. Entregue às suas disposições de agir cada vez menos comprometidas com valores comuns – conformismo moral -, teríamos indivíduos insaciáveis e incontroláveis.

Ora, o que Durkheim toma por ameaça à sociedade moderna – a anomia – não seria a própria condição moderna? Sentir-se “perdido” não passou a ser uma constante em nossas vidas com a vacuidade de sentido num mundo onde (lembrando Weber) todos os valores são sagrados? Aliás, a entronização do indivíduo, indaga Fernandes, não seria o preço a se pagar pelas crenças modernas que nos constituem:

 

Quem sabe a anomia seja mesmo um sintoma do mal-estar na modernidade ? Sintoma dessa impossibilidade de habitar uma cultura que nos demanda como indivíduos – seres indivisos, monádicos, desterrados e “livres como pássaros” – ao mesmo tempo que não cessa de nos cobrar porque obedecemos tão bem ao seu mandato! (FERNANDES, 1996, p.78).


Sim, somos objeto de um experimento político genocida em curso, mas seus agentes colaboradores – ainda que personifiquem de maneira grotesca o “homo bolsonarus” – não são, necessariamente, encarnações de um passado arcaico, mas típicos homens e mulheres da modernidade. A perplexidade é reconhecer que não há qualquer chance de uma negociação pacífica de dissensos com aqueles, digamos, congêneres da vida humana. 

Com “eles” não haverá um “nós” a ser compartilhado, mas um mundo a ser disputado.



[2] BRASIL 247. A construção da guerra federativa do desmonte nacional. Edição de 01/03/2021 Disponível aqui.

[3] FERNANDES, Heloísa. Um século à espera de regras. Tempo soc.,  São Paulo ,  v. 8, n. 1, p. 71-83,  jun.  1996 . Disponível aqui.

[4] LESSA, Renato. Homo bolsonarus. Revista Serrote, Instituto Moreira Salles: São Paulo/SP, jul. 2020 (Edição especial).  

[5] Jornal O Globo. Cidades pró-Bolsonaro registraram maior taxa de contágio pela Covid-19, indica estudo. Edição de 04/05/2020. Disponível aqui.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

CfP: World Economy Working Group, 2020 IIPPE Annual Conference – Ferrara, Italy, September 9-11, 2020

CfP: World Economy Working Group, 2020 IIPPE Annual Conference – Ferrara, Italy, September 9-11, 2020 

Deadline for Submission of Abstracts: March 15, 2020 

Dynamics of Unevenness, Politics of (Under)development, and Forms of Resistance in the Global South 
Beginning significantly in the 1980s, neoliberalism emerged as the latest phase of capitalism that has dissolved the social compromise between capital and workers to the detriment of the latter. With its aim to maintain the undisturbed mobility of capital, neoliberalism has sought to control over and suppress any potential social force. As a consequence, neoliberalism has brought about enhanced commodification and marketisation, privatisation, deregulation coupled with austerity, precarisation, and de-unionisation. In addition to the rise of authoritarian forms of government, the mainstream political parties and movements began to resort to populism that offered new welfare regimes and redistribution mechanisms to depoliticise the masses and isolate state benefits from civil rights. With its emphasis on the general will of the people and the national interest, populism has further contributed to the weakening of labour organisation and movements. 

The world capitalist system is characterised by a hierarchical relationship between the advanced capitalist countries and the peripheries of capitalism in the Global South. The Global South has been characterised by dynamics of unevenness, underdevelopment, and inequality not only in comparison to the advanced capitalist countries but also among various parts of the Global South itself. The impact of neoliberalism and populism on the Global South has been asymmetrical in its combination with other socioeconomic and socio-political aspects of underdevelopment, such as war and conflict, poverty, immigration, gender- and race-based inequalities, rural-urban divide and urbanisation, reorganisation of agriculture, and so on. Yet, peoples of the global South have often risen up against the national and global production relations and unequal distribution relations in the forms of protests, demonstrations, and social movements. 
This section aims to foster a critical and interdisciplinary debate on unevenness, underdevelopment, and resistance in the Global South in the age of neoliberalism and populism by drawing from political economy, international relations, geography, political ecology, gender studies, race studies, sociology, and history. 
We also welcome submissions about ongoing attempts to build alternatives to neoliberalism and capitalism in the Global South. 

About your submission:

If you are interested being part of a panel in this stream, or have any questions please e-mail Gönenç Uysal (gonencuysal@osmaniye.edu.tr) and Lucia Pradella (lucia.pradella@kcl.ac.uk).
Please tick the World Economy Working Group when you make your submission and then indicate under the title or abstract tab that you are submitting to this call by adding Dynamics of Unevenness.  

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Tudo novo de novo? - Breves reflexões sobre a ação coletiva

Tudo novo de novo?* - Breves reflexões sobre a ação coletiva**

George Gomes Coutinho ***

Quando eu elaborava meu primeiro trabalho acadêmico dotado de algum fôlego, no caso minha primeira monografia na UFF/Campos no início deste século, tive a afortunada experiência de ser orientado pelo professor José Luiz Vianna da Cruz, uma das rochas fundamentais da sociologia e dos estudos sobre desenvolvimento regional entre nós. Muita água correu no Paraíba do Sul desde então. O professor José Luiz, daquela relação formal entre orientador e orientando de graduação, se tornou posteriormente meu amigo, colega de Departamento de Ciências Sociais e prossegue sendo um interlocutor/conselheiro. Tanto é que hoje em dia ouso chamá-lo simplesmente de “Zé” em uma demonstração singular de respeito e carinho que tenho por ele.

Voltando ao início deste século, minha monografia tinha por tema os movimentos sociais na universidade pública. O Zé, do alto de sua experiência, me apresentou uma questão logo no início de nossos trabalhos formulada de maneira simples e objetiva. Afinal, se estávamos falando de movimentos sociais, o que os move? Se a pergunta era sintética e elegante, a resposta (ou as respostas) me levou a trafegar pelas águas turvas das noites em claro. A pergunta do Zé tocava realmente no que era fundamental. Quais seriam os “móveis” da ação coletiva? Arrisco dizer que de lá pra cá parte de meus trabalhos foram tentativas de responder a essa pergunta de forma direta ou indireta e certamente parcela do conhecimento sistemático sobre a política enquanto fenômeno se estrutura nos arredores dos dilemas da ação coletiva.

Na conjuntura atabalhoada em que vivemos Aluysio Abreu Barbosa em uma conversa telefônica amistosa decidiu reencarnar a pergunta do Zé trazendo para o nosso contexto. Senti na pele que de fato as grandes questões não desaparecem. Elas se atualizam de acordo com as especificidades de cada momento histórico. Aluysio inclusive não me colocou “pouca coisa”. Ele nota, de forma correta, que os grandes movimentos coletivos brasileiros ocorridos desde o arrefecimento da ditadura civil-militar até 2015, perpassando o Fora Collor de 1992 e o junho de 2013 nas regiões metropolitanas do país, não são tudo farinha do mesmo saco. De fato não são. Todavia, vamos tentar ver o mínimo estrutural que os aproxima e o muito que diferencia estes grandes movimentos que tem a rua por cenário. Causando estranheza ao leitor, justamente o que os assemelha e os distancia envolve responder a pergunta do Zé: quais os móveis?

Teoricamente, de Karl Marx (1818-1883) a Mancur Olson (1932-1988), o que move grupos e classes que engendram ação coletiva, o “grande móvel”, é o interesse. É justamente o que aglutina e torna possível a ação coletiva e associativa dos sindicatos, movimentos sociais tradicionais, grupos de pressão, movimentos de massa, etc.. Seja a Associação Nacional de Rifles da América, o Greenpeace, O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo ou o pessoal da Tradição, Família e Propriedade. Coloquei exemplos tão discrepantes não tanto para causar desconforto ao leitor. Apenas quis demonstrar que estes grupos, a despeito do seu posicionamento no espectro político, se são de esquerda ou direita, progressistas ou conservadores, todos se agrupam em prol de algum interesse comum e compartilhado. A associação “reduz custos” que seriam simplesmente impossíveis para um indivíduo isolado e a ação coletiva visa permitir que se alcance um objetivo ou um conjunto de objetivos.

Antes de prosseguir, venho declarar minha discordância sobre a morte da política ou o que seria um processo de despolitização no Brasil contemporâneo. Eu concordo que exista um arrefecimento da política tradicional sem dúvida, algo que está na raiz da crise da democracia representativa no mundo. Não por acaso partidos, seja aqui ou na Europa, apresentam um déficit de legitimidade considerável entre seus eleitores. Porém, a política envolve tomar decisões dotadas de caráter vinculante como diria o alemão Niklas Luhmann (1927-1998). Portanto, se a morte é inevitável para tudo o que é vivo, a política é inescapável para todos(as) que vivem em sociedade. Decisões que tem impacto coletivo, seja sobre os parâmetros curriculares do Ensino Médio ou regras de tributação, são da natureza da política. Porém, há a mudança de agendas, novos temas emergentes e das formas de se fazer política, algo que retomarei adiante.

Prosseguindo, se os interesses demarcam a ação coletiva para gregos, troianos e baianos, não podemos ignorar a modulação fornecida pelos valores, visões-de-mundo, ideologias, elementos simbólicos, etc.. Neste ponto TFP e MST tem obviamente posicionamentos inconciliáveis sobre a questão agrária por exemplo. As agendas dos movimentos, a maneira pela qual os interesses se particularizam e dão robustez para a operacionalização da ação, são obviamente distintos. Contudo, temos momentos em que estes movimentos, de natureza mais particularizada, transcendem seu público de adeptos e simpatizantes atingindo a sociedade como um todo. A pauta originária de um grupo torna-se uma pauta consensual entre diversos grupos e classes. Olhemos para o movimento “Diretas Já” na longínqua década de 1980.

Nas “Diretas” o contexto explica. Se a ditadura civil-militar jamais foi um consenso total na sociedade brasileira, o que redundou nos movimentos de resistência insurrecionais (luta armada) e civilistas (atuação nas instituições), é impossível não reconhecer que um regime que durou 21 anos não tenha gozado de legitimidade entre amplos setores da população. Todavia a ressaca produzida pelo “Milagre”, o cenário de hiperinflação galopante e pauperização, tornou o descontentamento incontrolável. Inclusive a atuação da grande mídia oligopolista, até então entusiasta de primeira hora ao golpe de 1964, deu sua contribuição e reverberou o processo de perda de legitimidade dos militares no poder.  Neste ponto da história o que era um movimento perene em prol do retorno dos ritos democráticos de uma contra-elite minoritária (partidos de esquerda, intelectuais e artistas), se tornou um movimento de massa que transcendeu classes e grupos. Só o amplo consenso formado explica em um mesmo palanque gente como Ulisses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva.

O movimento da “Diretas” foi um movimento de massa cujo interesse era o de reinstituir a normalidade democrática. Considero equivocado considerar a “Diretas” um movimento de esquerda, embora que atores tradicionais deste espectro político, o que inclui sindicatos, partidos e movimentos sociais, tenham dado suporte inegável ao que vimos no Brasil na década de 1980. Os atores tradicionais auxiliaram na fisionomia do movimento de massas inclusive pelo acúmulo de expertise em se manterem organizados, a despeito de terem atuado durante boa parte do século XX na ilegalidade ou semi-legalidade. Igualmente forneceram um discurso, muitas vezes contundente, expresso em palavras de ordem onde a crítica da situação econômica era absolutamente oportuna para o momento.

Também o “Fora Collor” na década de 1990 mantém alguns dos aspectos que citei acima:1) transcende a crítica de uma contra-elite minoritária; 2) encontra apoio e reverberação da mídia oligopolista; 3) é dotado de uma fisionomia de esquerda pelo protagonismo de certos atores tradicionais, embora que o consenso naquele momento quanto ao impeachment tenha abarcado diversos grupos sociais para além do espectro político mencionado. 

A questão é que o mundo mudou muitíssimo de lá para cá. A chamada “revolução informacional”, que se potencializa a partir do final da década de 1990, já inclui novas formas de comunicação e interação na sociedade. Ao mesmo tempo tivemos os anos do lulismo neste século XXI, onde os atores tradicionais da esquerda ingressaram nas instituições e tanto passaram a ser “vidraça” quanto tiveram sua atuação contestatória consideravelmente diminuída. Afinal, movimentos e partidos tornaram-se governo. Nesse ínterim novas pautas ganharam ainda mais corpo e possibilitaram o protagonismo de atores que não se sentiam plenamente contemplados pelos movimentos tradicionais de esquerda. Esse diagnóstico não é meu, boa parte da literatura sobre movimentos sociais aponta para esta questão. Aqui, dentre as novidades, falo do movimento ambiental, feminista, movimento negro, grupos LGBTT, etc.. A natureza, este agente difuso, ganha porta-vozes humanos. Jessé Souza (1960), sociólogo brasileiro, ironicamente chama este grupo de “classe média de Oslo”, brasileiros que adotam uma agenda ambiental e de sustentabilidade digna dos nórdicos.  E os afetos e a expressividade adquirem uma enorme relevância onde o clássico problema das diferenças materiais entre as classes sociais passa a ser secundário. Não por acaso o filósofo francês Luc Ferry (1951) aposta que a intimidade, as relações afetivas, é um tema amplamente mobilizador neste século XXI.

Um outro ponto, ao qual não canso de lembrar, é o da fadiga das democracias representativas liberais no mundo todo na nossa conjuntura. Devo este diagnóstico ao sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017). A alta financeirização das economias nacionais, processo que se inicia na década de 1970, torna os governos reféns diretos da pauta fornecida pelas grandes instituições financeiras. Em suma: o que prometem nas campanhas eleitorais não é efetivamente realizado inclusive por constrangimentos e acordos que moldam os orçamentos governamentais. Parte da crise de legitimidade da social democracia européia é explicada por este fator. Na esteira da fragilização dos partidos social democratas, os partidos tradicionais moderados sofrem por inércia. Portanto, a crise da democracia representativa liberal é seguramente também uma crise dos partidos e lideranças tradicionais, um problema que não é só brasileiro.

O junho de 2013 no Brasil se insere neste macro contexto absolutamente complexo. Não foram os atores tradicionais de esquerda que organizaram os movimentos. Pelo contrário. Em várias cidades brasileiras estes atores foram até mesmo hostilizados. Naquele momento muitos analistas ficaram atônitos. O que houve?

Junho de 2013 foi um dos maiores testes da capacidade de aglutinação coletiva das novas formas de comunicação e interação. Como vimos, é inegável o barulho causado. Naquele momento o slogan “Vem Pra Rua” ou o Movimento Passe Livre sintetizam uma pauta reivindicatória que envolveu desde o seu estopim, no caso a revogação do aumento do preço das passagens urbanas, até a crítica ao uso de dinheiro público para as grandes obras que seriam necessárias para a realização dos mega-eventos vindouros. Tanto a Copa do Mundo quanto as Olimpíadas do Rio estavam na lista de prioridades do Estado brasileiro.

Notem que por mais que tenham se apresentado como “movimentos pulverizados”, haviam pautas reivindicatórias que apontavam tanto para o direito de mobilidade urbana quanto implicavam, mesmo que de forma um tanto inábil, na tentativa de influir no processo de tomada de decisão sobre os orçamentos governamentais. Em contraposição ao investimento nos mega-eventos os manifestantes clamavam, mesmo que sem muita precisão, por mais investimentos em saúde e educação. Neste ínterim, até pelo caráter inovador, os grupos políticos tradicionais não conseguiram interlocução ou mesmo captar as demandas apresentadas, dotá-las de objetividade política.

Ali abriu-se uma caixa de Pandora. Os métodos de mobilização, até então jamais vistos no cenário tupiniquim, foram depois largamente utilizados. Inclusive há semelhanças de métodos com o que ocorreu aqui e na Primavera Árabe: redes sociais, novas formas dinâmicas de interação, etc..

Cabe notar que os movimentos da chamada “nova direita” no Brasil se utilizaram depois fartamente tanto da estética de mobilização dos grupos de junho de 2013 quanto até mesmo de nomenclaturas e slogans. Afinal, o “Movimento Passe Livre”, o MPL, de alguma inspirou o “Movimento Brasil Livre”, não por acaso MBL. O slogan “Vem Pra Rua” tornou-se um movimento homônimo.

Nesse ínterim uma pletora de questões aflorou. Trata-se de uma constelação de fatores. Aqui a frustração econômica causada pelo término da era das commodities implicou uma enorme dificuldade de manutenção das políticas econômicas e sociais do lulismo continuadas por Dilma Rousseff. Este é um ponto crucial para entendermos a insatisfação que gerou os movimentos de massa pós-2013. Para além disso os movimentos da “nova direita” passam a vocalizar demandas e perspectivas de grupos da sociedade que até então não encontravam representantes dotados da capacidade de síntese necessária e com enorme habilidade em utilizar as redes sociais. Não quer dizer que não existissem as visões-de-mundo mais conservadoras. Apenas não haviam encontrado grupos que vocalizassem esses sentimentos difusos.

Nesse ínterim, já desde ação penal 470, o “mensalão”, a grande mídia monopolista engrossou de forma sistemática a narrativa que associou o Partido dos Trabalhadores de forma inequívoca, por vezes quase exclusiva, ao fenômeno da corrupção. Por outro lado, no âmbito da política tradicional, Dilma lidou diretamente com um governo dotado de capacidade decisória limitada e um Congresso Nacional rebelde liderado por Eduardo Cunha.

O que tornou os movimentos de massa diferenciados não foi tanto o uso das táticas de comunicação novas já experimentadas em 2013. O que há de novo é o conteúdo apresentado e pela primeira vez desde a redemocratização a ausência de atores ou pautas usualmente apresentadas pela esquerda tradicional. Até 2013 encontrávamos pautas de reivindicação inclusivas, de ampliação direitos. De 2013 em diante não houve sequer a fisionomia de esquerda. Neste ponto do diagnóstico concordo plenamente com Aluysio que me chamou a atenção para este fato.

Contudo é difícil dizer, conforme afirmei anteriormente, que a “política morreu”. Outros grupos, dotados de alta capacidade de negociação jamais arrefeceram. As mudanças que vivenciamos de 2016 para cá na legislação social são obra de grupos que se não redundam em grandes movimentos de massa, até pela natureza silenciosa com que atuam, são tão ou mais eficientes no diálogo com o sistema político tradicional. São grupos de pressão dotados de alto poder de fogo oriundos das 6 mil famílias que concentram boa parte da riqueza nacional. Promovem uma ação coletiva menos visível dado o convencimento promovido pelo dinheiro. Neste sentido na atual conjuntura é desnecessário inflar grandes movimentos da nova direita nas ruas e lidamos com uma contra-elite, pelo flanco esquerdo, profundamente fragilizada e carente de legitimidade.

O que ficará disso tudo? Como já disse Wanderley Guilherme dos Santos (1935), um dos decanos da ciência política brasileira, “o futuro não é materialmente verificável”. O que temos certeza é que a revolução informacional das últimas décadas, se modificou o cotidiano das nossas sociedades, não poderia ter efeito muito diferente nas mobilizações coletivas. Estas, tal como outrora, permanecem guiadas por interesses sendo este o móvel aglutinador. Todo o restante sobre o amanhã ainda “não decantou”. Aguardemos.  Porém, os “móveis” da questão do Zé prosseguem.

* Uma confissão tardia, sincera e necessária neste 03 de dezembro de 2017. Tomei de empréstimo o título do "cantautor" brasileiro Paulinho Moska. Moska lançou em 2003 o disco e a canção "Tudo novo de novo" que inspirou diretamente a forma como batizei esse texto. Se todos somos um pouco ladrões, e creio que somos, espero que a minha condição de réu confesso pelo menos amenize a pena vindoura.

** Texto publicado originalmente  em 24 de novembro de 2017 no blog "Opiniões" do jornalista Aluysio Abreu Barbosa. O blog "Opiniões" é parte do grupo Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ. Disponível em: http://opinioes.folha1.com.br/2017/11/24/origem-da-serie-ruas-do-brasil-resumida-por-george-gomes-coutinho/


*** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes