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terça-feira, 30 de julho de 2024

Eleições 2024 e o “efeito Witzel” - George Coutinho

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 Eleições 2024 e o “efeito Witzel” **

 George Gomes Coutinho ***

 

Ando acompanhando com muita atenção as entrevistas de candidatos/pré-candidatos a prefeito(a) de Campos para estas eleições. Eis uma das melhores maneiras de conhecer justamente o que a classe política local anda pensando, sobre eles mesmos e sobre a cidade.

Neste trabalho de audição atenta e respeitosa, um ponto tem se repetido, especialmente entre os nomes mais à direita: a esperança no que estou chamando de “efeito Witzel”. Me explico.

Nas eleições de 2018 tivemos o crescimento espantoso das intenções de voto de Wilson Witzel, ex-governador impichado do RJ e também meu colega no PPGCP/UFF em Niterói. Antes de prosseguir advirto ao leitor que não tenho nenhuma responsabilidade nos dois pontos biográficos que citei. Fiz até mesmo declaração pública de voto em Eduardo Paes para o Governo do Estado naquela ocasião.

De todo modo Witzel, até então um ilustre desconhecido e muitas vezes apelidado de Pretzel entre seus detratores, disparou na reta final nas intenções de voto e ganhou o pleito para governador do RJ no segundo turno. Com consistentes quase 60% dos votos válidos.

Esta disparada na intenção de votos não foi detectada no decorrer de 2018 e causou até perplexidade. Eis o “efeito Witzel”.

Em Campos, até o presente momento, as pesquisas de intenção de voto e de humor do eleitor com a atual administração indicam que Wladimir Garotinho pode, sim, liquidar a fatura já no primeiro turno. A questão é que nas entrevistas os opositores de Wladimir apostam na possibilidade de ocorrer o “efeito Witzel”. Ou, em outros termos, há a esperança declarada de que um ou mais nomes na concorrência eleitoral possam surpreender a todos nós e produzir uma reversão de expectativas na concorrência para a Prefeitura.

O maior problema deste raciocínio é desconsiderar o contexto das eleições de 2018 e até mesmo o pleito de 2016.

A conjuntura foi uma tempestade perfeita. Lavajatismo, antipolítica, prisão de Lula (que liderava as intenções de voto para presidente em 2018), diversos nomes se apresentando com um discurso antissistema e se vendendo como vacina “contra tudo o que está aí”. Foi isso que levou diferentes agentes com discurso, verídico ou não, de outsiders ao poder. Vide Dória em Sampa com seu papo “não sou político, sou empresário”, Kalil em BH e até mesmo Rafael Diniz em 2016, o primeiro eleito para a Prefeitura campista que não era egresso do grupo Garotinho.

Bolsonaro, Witzel, igualmente, ambos em 2018, surfaram uma onda muito específica que os alçou ao poder.

Dois mil e dezesseis e 2018 não foram anos de “eleições normais”. A conjuntura produziu diversos resultados surpreendentes.

Bem, e agora? A conjuntura não é a mesma. Diferentes análises indicam que as eleições de 2022 se movimentaram para alguma normalidade, tendo menos espaço para outsiders nos executivos locais, estaduais e nacional. Ou seja, longe de quebras bruscas e reversões radicais de expectativas, estamos voltando para um comportamento “normal” do eleitor onde este avalia simplesmente seu bem-estar, se o trabalho de policy making (elaboração de políticas) lhe é satisfatório ou não.

Penso que a tendência do processo de alguma desradicalização em curso, iniciado em 2022 e presente nos discursos de diferentes candidatos aos executivos estaduais, pode seguir neste 2024.

Dois mil e vinte e quatro tá com um “jeitão” de eleição normal. O humor (mood) do eleitor, que produziu o “efeito Witzel”, parece não estar presente.

Então, tudo mais constante, parece que a vantagem do incumbente campista segue até termos fatos novos que produzam a reversão de expectativas.

* Disponível em: https://pbs.twimg.com/media/EGmcUONWkAIPOO6.jpg, acesso em 30 de julho de 2024.

** Uma primeira versão desta reflexão foi publicada no perfil de facebook do autor em 22 de julho de 2024 (disponível em: https://www.facebook.com/george.coutinho.35/). A segunda versão foi publicada na página 04 do jornal campista Folha da Manhã em 27 de julho de 2024.

*** Cientista político, sociólogo e professor no Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Lya Luft e o voto bolsonarista

Lya Luft e o voto bolsonarista[1].
Paulo Baía[2]
 


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O voto é uma relação de "Troca Assimétrica", movida por afetos e cognição, no estrito sentido do significado das palavras afeto e cognição.

Afeto como a disposição de alguém por alguma coisa, seja positiva ou negativa, e cognição como a capacidade de processar informações e transformá-las em conhecimento, com base em um conjunto de habilidades como a percepção, a atenção, a associação, a imaginação, o juízo, o raciocínio e a memória.

O voto tem uma racionalidade na escolha, o eleitor faz um balanço de perdas e ganhos, uma avaliação de benefícios e custos de sua ação eleitoral.

A escolha nessa "Troca Assimétrica" sempre é mais vantajosa para o candidato do que para o eleitor.

O eleitor, por seus afetos e cognição, centra sua escolha na sua própria história de vida e de sua malha de sociabilidade.

Mesmos os votos mais altruístas, movidos por "Causas", são enredados em um convívio de afetos e cognições do "mundo visível e experimentado" pelo eleitor.

O candidato fala e se expõe sempre de maneira "segmentada" ou "individualizada" para captar a decisão do eleitor.

O candidato faz um processo de "sedução" do eleitor, fazendo com que o eleitor troque seu voto ou por adesão ao candidato ou por repúdio aos demais candidatos, sem que necessariamente haja adesão ao candidato escolhido.

A racionalidade da escolha eleitoral é sazonal, raramente estruturada e atemporal.

O momento do voto, seu tempo e espaço, são os vetores de motivação afetiva e cognitiva para uma escolha assimétrica, que sempre traz consequências positivas ou negativas para o autor da escolha.

Assim foi com Lya Luft, que não é uma ressentida, desencantada, desalentada.

É uma mulher forte, sabe o que quer e é determinada.

Vanguardista em sua geração, mulher libertária no campo profissional e existencial.

Extremamente culta e com elevado nível de escolarização, já possuia um mestrado em linguística em 1975 e outro em literatura brasileira em 1978, época em que muito poucos tinham o título de mestre no Brasil.

Leitora de Friedrich Schiller, poeta, filósofo, médico e historiador alemão.

Leitora de Johann Wolfgang von Goethe, Santo Tomás de Aquino e Jean Paul Sartre.

Professora notável na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi inovadora e pioneira dos primeiros cursos de pós-graduação no país.

Tradutora ousada, colocou em língua portuguesa Virgínia Woolf, Thomas Mann, Herman Hesse e muitos outros.

Como escritora tem destaque com "As coisas humanas", " Pensar é transgredir" e "Quarto fechado", que são mergulhos na alma humana.

Foi uma combatente contra a ditadura vinculada ao grupo de intelectuais/psicanalistas de Hélio Pelegrino, denunciando torturadores da área médica, psiquiatra e psicanalista que atuaram na ditadura brasileira a partir de 1964.

No Rio de Janeiro, participou das primeiras e históricas campanhas eleitorais do PT para o governo do estado com Lysâneas Maciel para governador e Vladimir Palmeira para o senado em 1982.

Em 1985 fez a campanha do desconhecido Wilson Farias do PT, tendo como vice a socióloga Miriam Limoeiro Cardoso, para a prefeitura do Rio de Janeiro, mesmo sendo amiga de Saturnino Braga do PDT e Marcelo Cerqueira do PSB, também candidatos.

O voto de Lya Luft, mesmo como escolha individual, tem significado público, é simbólico em termos políticos e sociológicos.

Representa a ambiência de afetos e cognição de um momento temporal de 57 milhões de brasileiros.

Não sabia que Lya Luft tinha votado em Jair Bolsonaro; se alguém me contasse, eu não acreditaria.

Soube com a entrevista da própria declarando seu arrependimento.

Por que votou? De acordo com seu relato, fez uma escolha assimétrica movida pela rejeição aos demais candidatos, em função de suas experiências de vida em relação aos competidores.

Escolheu não ganhar muito ou quase nada a ter que perder, na sua avaliação afetiva e cognitiva, com a vitória dos demais candidatos.

Com a escolha de Jair Bolsonaro, Lya Luft materializou seus afetos e cognições no segundo semestre de 2018.

O arrependimento público em junho de 2020 mostra outro momento de afetos e cognição. Lya Luft percebeu, por sua vivência no cotidiano do governo Jair Bolsonaro desde janeiro de 2019, que sua escolha eleitoral lhe trouxe perdas, perdas grandes e significativas, em vez de ganhos pequenos ou não ganhos. 

O voto de Lya Luft torna-se um "Voto Desvio Padrão" para se compreender a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro.

Como "Troca Assimétrica" , como uma racionalidade eleitoral em que todos ganham - os eleitores pouco e menos que o candidato - a votação de 57 milhões de votantes bolsonaristas está revelando que a "Assimetria" foi muito maior. O eleitor está descobrindo que, não só não ganhou nada com a rejeição aos demais candidatos, como efetivamente está perdendo com sua escolha em 2018.

O "Voto Lya Luft" foi um padrão, que pode explicar a escolha de Jair Bolsonaro pela rejeição, como um decisão de racionalidade política da maioria dos votantes em Bolsonaro. Essa mesma racionalidade está a promover "Arrependimentos", pois a lógica da "Troca Assimétrica" foi rompida com as perdas e com um "custo" que é imensamente alto e sem benefícios.

O "Arrependimento Público de Lya Luft" pode vir a se tornar um fenômeno coletivo para a maior parte dos 57 milhões de eleitores.

Creio que o voto "Lya Luft" explica, como padrão, a enorme escolha por Jair Bolsonaro nas regiões Sul e Sudeste do país.

O "Arrependimento" é um mecanismo psíquico, social e político que vem com a admissão pelo indivíduo de uma nova realidade em sua vida.

É um desprendimento com as amarras de um passado próximo ou distante, um ato de libertação, de arrojo pessoal ou coletivo.

O arrependimento de Lya Luft, para mim é muito bem-vindo, e basta para tê-la como aliada na luta contra o neofascismo do governo Bolsonaro.

Nessa questão eu estou sintonizado com Renato Janine Ribeiro, Sergio Abranches, Jose Alvaro Moises, Marcos Nobre e Bolívar Lamounier.

O "Voto Lya Luft" descortinou uma linha nova para entender o voto bolsonarista em 2018.

Não foi um voto de "toscos" e "imbecilizados", foi uma escolha feita preferencialmente pela "não escolha" aos demais candidatos.

Uma tomada de decisão dramática, contraditória, com subjetividades afetivas e cognitivas complexas, com dúvidas e incertezas no voto. 

Sem estigmatizar eleitores de Jair Bolsonaro , sem "a prioris" morais condenatórios, com técnicas sociológicas e políticas, podemos decifrar o voto de Lya Luft e compreender pelo menos 30 milhões dos 57 milhões de votos em Jair Bolsonaro, nas principais cidades das regiões Sul e Sudeste do Brasil.

Nas demais regiões e na maioria das cidades do interior de São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul temos outras variáveis de entendimento em que a "Idéia Projétil" de Jair Bolsonaro é protagonista das escolhas. Nessas os eleitores estão tendo "ganhos" com o voto em Jair Bolsonaro.



* "Woman with book" - Pablo Picasso - Disponível em: https://gr.pinterest.com/pin/421931058816494367/ (acesso em 26 de junho de 2020).

[1] Texto republicado com a autorização do autor. Post originalmente disponível em: https://www.facebook.com/paulorsbaia.baia/posts/4208907562515317  (acesso em 26 de junho de 2020)


[2] Sociólogo e Cientista Político. Professor da UFRJ.




terça-feira, 6 de novembro de 2018

Eleições fluminenses – brevíssimas notas


Eleições fluminenses – brevíssimas notas

George Gomes Coutinho

O que explica Witzel para além do divã? Não é mais a pergunta de um milhão de dólares. Há padrões que podem ser mobilizados. Não exatamente usando o histórico de eleições anteriores. Essa eleição foi eivada de novidades. Há várias e irei apenas sintetizar algumas, sem pretensão de aprofundar cada uma delas.

Antes cabe notar o seguinte: as eleições estaduais de 2018 devem ser analisadas caso a caso.  Mesmo com todas as novidades destas eleições, as dinâmicas não foram idênticas em todos os estados da federação. Em parte dos estados brasileiros houve uma dinâmica “normal”, que encontra paralelo com eleições anteriores e atores políticos tradicionais em disputa.

Porém, no caso particular do Rio, as novidades ajudam a explicar sim. Decerto o menor tempo de campanha, conforme já disse publicamente em inúmeras oportunidades, foi uma questão importante nestas eleições. Neste sentido, o menor tempo de divulgação e contraste entre as propostas disponíveis no mercado político, em um cenário de crise generalizada, deu brecha para ações singulares como o uso intensivo de redes sociais enquanto via de propagação de “marcas políticas”. Por marcas políticas estou chamando as chapas propriamente nas eleições majoritárias. Nesse caldo as “fake news”, e a justiça eleitoral sofrendo da mais franca incompetência técnica no combate às mesmas, produziram uma deterioração pronunciada da opinião pública em proporções tão profundas que a erosão talvez só possa ser devidamente dirimida com o passar dos próximos anos.

Houve também a demanda pela novidade, pela mudança, o que permitiu que outsiders tivessem êxito. Nestes termos, Witzel, não desconsiderando seus méritos, que ainda estão para serem conhecidos na gestão da máquina pública, encontrou um cenário francamente favorável. Eduardo Paes teve sua experiência e proximidade profissional com o poder, dadas as particularidades dessas eleições, contando negativamente. O eleitorado viu em Witzel “o novo”.

Junto a isso, “o novo” dialogou ironicamente com os setores tradicionais sem qualquer pudor. Crivella foi um apoio importante, angariando o voto dos setores cristãos reacionários. Aliado a isso, a tentativa de simbiose da campanha de Witzel com a do clã Bolsonaro igualmente atraiu eleitores.

Como se não bastasse, a contundência discursiva de Witzel funcionou para o eleitor fluminense como canto de sereia. A solução de questões de segurança pública que dialogam diretamente com o senso comum do cidadão mediano, permitindo uma polícia com licença para matar, se apresentou como um mote extremamente eficiente. Cabe sempre lembrar que estamos ainda no estado que vivencia uma intervenção federal prolongada expressa na presença do exército na capital. Tudo isso a despeito das seqüelas geradas e da evidente ineficiência em solucionar a violência urbana que se propôs.

As particularidades da conjuntura do Rio explicam. Inclusive a baixa eficácia dos prefeitos do interior em angariar votos para Eduardo Paes. Este expediente era algo que faria sentido em outros momentos da história eleitoral. Mas, não nesse. Tudo foi muito sui generis.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

A censura que paira sobre nossas cabeças


NÃO ADIANTA PEDIR PERDÃO DAQUI A 50 ANOs

Por Eleonora de Lucena*

Ninguém poderá dizer que não sabia. É ditadura, é tortura, é eliminação física de qualquer oposição, é entrega do país, é domínio estrangeiro, é reino do grande capital, é esmagamento do povo. É censura, é fim de direitos, é licença para sair matando.

As palavras são ditas de forma crua, sem tergiversação – com brutalidade, com boçalidade, com uma agressividade do tempo das cavernas. Não há um mísero traço de civilidade. É tacape, é esgoto, é fuzil.

Para o candidato-nojo, é preciso extinguir qualquer legado do iluminismo, da Revolução Francesa, da abolição da escravatura, da Constituição de 1988.

Envolta em ódios e mentiras, a eleição encontra o país à beira do abismo. Estratégico para o poder dos Estados Unidos, o Brasil está sendo golpeado. As primeiras evidências apareceram com a descoberta do pré-sal e a espionagem escancarada dos EUA. Veio a Quarta Frota, 2013. O impeachment, o processo contra Lula e sua prisão são fases do mesmo processo demolidor das instituições nacionais.

Agora que removeram das urnas a maior liderança popular da história do país, emporcalham o processo democrático com ameaças, violências, assassinatos, lixo internético. Estratégias já usadas à larga em outros países. O objetivo é fraturar a sociedade, criar fantasmas, espalhar medo, criar caos, abrir espaço para uma ditadura subserviente aos mercados pirados, às forças antipovo, antinação, anticivilização.

O momento dramático não permite omissão, neutralidade. O muro é do candidato da ditadura, da opressão, da violência, da destruição, do nojo.

É urgente que todos os democratas estejam na trincheira contra Jair Bolsonaro. Todos. No passado, o país conseguiu fazer o comício das Diretas. Precisamos de um novo comício das Diretas.

O antipetismo não pode servir de biombo para mergulhar o país nas trevas.

Por isso, vejo com assombro intelectuais e empresários se aliarem à extrema direita, ao que há de mais abjeto. Perderam a razão? Pensam que a vida seguirá da mesma forma no dia 29 de outubro caso o pior aconteça? Esperam estar livres da onda destrutiva que tomará conta do país? Imaginam que essa vaga será contida pelas ditas instituições – que estão esfarrapadas?

Os arrivistas do mercado financeiro festejam uma futura orgia com os fundos públicos. Para eles, pouco importam o país e seu povo. Têm a ilusão de que seus lucros estarão assegurados com Bolsonaro. Eles e ele são a verdadeira escória de nossos dias.

A eles se submete a mídia brasileira, infelizmente. Aturdida pelo terremoto que os grandes cartéis norte-americanos promovem no seu mercado, embarcou numa cruzada antibrasileira e antipopular. Perdeu mercado, credibilidade, relevância. Neste momento, acovardada, alega isenção para esconder seu apoio envergonhado ao terror que se avizinha.

Este jornal escreveu história na campanha das Diretas. Depois, colocou-se claramente contra os descalabros de Collor. Agora, titubeia – para dizer o mínimo. A defesa da democracia, dos direitos humanos, da liberdade está no cerne do jornalismo.

Não adianta pedir desculpas 50 anos depois.

* Jornalista, ex-editora-executiva da Folha (2000-2010) e copresidente do serviço jornalístico TUTAMÉIA (tutameia.jor.br)

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Fonte: Tutaméia.

Acesso: http://tutameia.jor.br/nao-adianta-pedir-perdao-daqui-a-50-anos/

domingo, 21 de outubro de 2018

Quem pragueja contra o comunismo sabe o que é liberalismo? (parte 3)




Quem pragueja contra o comunismo sabe o que é liberalismo? (parte 3)

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Sumariadas as linhas conceituais da “justiça com equidade” (ver parte 2), principiemos pela leitura do programa de governo de Fernando Haddad (PT)[1]. Tendo por fio condutor o Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado para o decênio 2014-2024, nesse programa eleva-se a educação à condição de “prioridade estratégica” que obedece às seguintes diretrizes:

a) Forte atuação na formação dos educadores e na gestão pedagógica da educação básica, na reformulação do ensino médio e na expansão da educação integral;

b) Concretização das metas do PNE, em articulação com os planos estaduais e municipais de educação;

c) Institucionalização do Sistema Nacional de Educação, instituindo instâncias de negociação interfederativa; criação de política de apoio à melhoria da qualidade da gestão em todos os níveis e aperfeiçoamento do SAEB;

d) Criação de novo padrão de financiamento, visando progressivamente investir 10% do PIB em educação, conforme a meta 20 do PNE; implementação do Custo-Aluno-Qualidade (QAQ) e institucionalização do novo FUNDEB, de caráter permanente, com aumento da complementação da União; retomada dos recursos dos royalties do petróleo e do Fundo Social do Pré-Sal;

e) Fortalecimento da gestão democrática, retomando o diálogo com a sociedade na gestão das políticas bem como na gestão das instituições escolares de todos os níveis.

Das diretrizes expostas, chama-me atenção a proposta de redefinição dos padrões de financiamento para alcançar 10% de investimento do PIB em educação. Trata-se de uma meta que exigirá um verdadeiro rearranjo distributivo e cujas chances reais de ser efetuada perpassam o comprometimento das rendas petrolíferas com o investimento público em educação. Nos termos originais do marco regulatório da exploração dos campos do pré-sal, delimitavam-se 75% dos royalties do petróleo para a educação e 25% para a saúde, além de 50% de todos os recursos do Fundo Social do pré-sal para ambos os setores. A base legal para essa repartição de investimentos, sancionada no então Governo Dilma[2], sofreu drásticas alterações sob o Governo Temer[3] e, na prática, tornou-se letra morta com a Emenda Constitucional nº 95, que restringe os gastos primários do governo federal por 20 anos e que, diga-se, teve o voto de aprovação do deputado federal Jair Bolsonaro[4].

Diante deste contingenciamento, como o programa de Haddad focaliza a educação infantil e o ensino fundamental? Na primeira, em consonância com a educação integral, estabelece-se a expansão “com qualidade” das vagas em creches e o fortalecimento das políticas voltadas para a pré-escola. No segundo, são previstos ajustes na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em contraponto a “imposições obscurantistas” - uma menção indireta a projetos de lei inconstitucionais sob o rótulo "Escola sem partido" -, assim como uma “forte política nacional de alfabetização” que confira tratamento qualificado às especificidades locais dos educandos. Para o ensino fundamental, também são previstas medidas de valorização e formação profissional dos professores e professoras a partir do fortalecimento do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). Por seu intermédio, estudantes universitários de Pedagogia e de Licenciatura atuarão nas escolas públicas em sinergia com a tentativa de promover um salto qualitativo no processo de alfabetização das crianças.

Como o programa de Jair Bolsonaro (PSL)[5] delineia esses dois segmentos da política educacional? A primeira menção a essa política é feita na seção “Linhas de ação” na forma de um binômio Saúde/Educação:

Saúde e Educação: eficiência, gestão e respeito com a vida das pessoas. Melhorar a saúde e dar um salto de qualidade na educação com ênfase na infantil, básica e técnica, sem doutrinar.

Na última oração – “sem doutrinar” – evidencia-se uma percepção do processo de ensino-aprendizagem que é, no mínimo, ilógica. Ora, a socialização escolar não se resume à transmissão de conhecimentos de ordem cognitiva, ainda que os seus agentes estivessem deliberadamente comprometidos com a exclusividade dessa função social da escola. Qualquer profissional de educação sabe melhor do que ninguém que há uma tensão permanente entre as famílias e a escola no tocante à expectativa de aquisição de comportamentos e declará-la extinta seria o mesmo que, digamos, revogar as leis da física newtoniana...  

Adiante, postula-se a tese de que “gastamos como os melhores” e “educamos como os piores”, aludindo à posição do país no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA). De fato, nosso desempenho educacional encontra-se aquém do desejável. Os resultados colhidos através do PISA em 2015[6] sinalizam que os alunos brasileiros tiveram um desempenho abaixo da média dos alunos nos países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Naquele ano, obtivemos em ciências 401 pontos, enquanto a média dos demais países ficou em torno de 493 pontos; em leitura 407 pontos, em comparação à média de 493 pontos; e em matemática 377 pontos, comparados à média de 490 pontos.

Diante das severas insuficiências na aprendizagem escolar, lança-se um prognóstico que, à primeira vista, parece auspicioso: inverter as prioridades, concentrando, pois, esforços na educação infantil, fundamental e média. Qual diagnóstico lhe serve de base? Mudar (sem precisar como) a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), eliminar a “aprovação automática” e expurgar a “ideologia de Paulo Freire” no processo de alfabetização. Uma vez mais, vaticina que um dos maiores entraves no setor é a “forte doutrinação”. Desnecessário dizer que tal afirmação vai de encontro ao que pedagogos e demais especialistas em diferentes latitudes do globo pensam. Basta lembrar que a Organização das Nações Unidas (ONU) ratifica o reconhecimento de Paulo Freire como patrono na educação brasileira. Mas não nos distraíamos com bobagens. Fixemos o olhar em uma proposição sui generis contida em seu programa:

Educação à distância: deveria ser vista como um importante instrumento e não vetada de forma dogmática. Deve ser considerada como alternativa para as áreas rurais onde as grandes distâncias dificultam ou impedem aulas presenciais.

Eis uma resolução que, em sendo implementada, tornaria o Estado e a sociedade brasileiros divorciados daquilo que é, digamos, a quintessência do liberalismo. Recordemos: tornar-se gente, na acepção genuinamente liberal do termo, decorre de uma bem vinda “invasão” do Estado no reduto familiar com vistas a incorporar seus membros em um processo de cidadanização. Seu instrumento por excelência é a escola pública, universal e gratuita que, mesmo sem deixar de aclimatar-se às peculiaridades regionais, tem de promover a participação integral dos indivíduos na socialização de conhecimentos e comportamentos que seja a um só tempo causa e efeito de uma nação que se possa chamar de conclusa. Aqui, sequer podemos dizer que se adota uma concepção de justiça social afeita à liberdade natural, pois, como vimos, mesmo nesta versão minimalista do liberalismo social, é pressuposta a formação escolar em condições equitativas para que um indivíduo adulto tenha sido capacitado a empreender a si mesmo em uma economia competitiva de mercado.

Pasmem, qual o sentido de uma criança de uma família pobre do semiárido nordestino ou do Alto Amazonas ter acesso a um conteúdo didático por meios audiovisuais sem estar integrada à sala de aula? As famílias das áreas pouco acessíveis deveriam suportar em seus próprios ombros a socialização dos custos da integração nacional sem uma presença robusta do Estado na educação básica? Seria razoável negar a uma criança as virtualidades do saber não instituído que apenas a convivência em uma comunidade escolar mais ampla do que suas relações familiares podem assegurar? Contar-se-iam com pais e/ou responsáveis aptos a dirigir os estudos à distância das crianças sob sua guarda? 

A pertinência de tais perguntas ante os desafios que a “educação 2.0” está a exigir em uma sociedade complexa como a brasileira, atravessada pelas iniquidades de uma elevada desigualdade socioeconômica entre classes sociais, confirma a olhos vistos o quão iliberal é Bolsonaro em seu programa de governo. Os fantasmas alimentados em torno do comunismo não passam de um véu para as fragilidades de uma agenda educacional que carece de um plano de ação que encadeie objetivos e metas.

Conclusão: no programa de governo de Haddad, prevalece uma concepção de justiça social subjacente à igualdade liberal de oportunidades, na medida em que preconiza uma alocação redistributiva de recursos que gere oportunidades educacionais para segmentos da população em relativa desvantagem sem, necessariamente, sacrificar o estilo universalista da sua política social. Já no programa de Bolsonaro, predomina uma perspectiva da educação que, a considerar a recorrência das falácias em torno do “perigo vermelho”, acaba por traduzi-la em um problema moral sem outra fundamentação senão os velhos preconceitos de uma caserna militar que carece de luz e oxigênio.

Por fim, é bom lembrar: um governo estadual ousou recentemente navegar contra a maré montante do neoliberalismo no país. Trata-se do governo do Maranhão[7], que incluiu em sua carta náutica uma medida de recomposição salarial na educação básica que propiciou um novo piso remuneratório a servidores efetivos e contratados, comprometendo 115 milhões na sua folha de pagamento. Um professor iniciando a carreira no Maranhão com jornada semanal de 40 horas terá remuneração de R$ 5.750,83. Já o que inicia com jornada de 20 horas, receberá R$ 2.875,41. De longe, a melhor remuneração para a docência nos níveis fundamental e médio dentre os estados da federação, efetuada no governo de um comunista, Flávio Dino (PCdoB). Surpreendente? Nem tanto.



[1] http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2018/propostas-de-candidatos
[2] http://www.brasil.gov.br/governo/2013/09/sancionada-lei-que-destina-royalties-do-petroleo-para-saude-e-educacao
[3] https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2016/10/partidos-que-hoje-querem-mudar-regras-do-pre-sal-se-posicionaram-de-forma-diferente-anos-atras-6194.html
[4] http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/10/saiba-como-cada-deputado-votou-em-relacao-pec-do-teto-de-gastos.html
[5] http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2018/propostas-de-candidatos
[6] http://portal.inep.gov.br/web/guest/acoes-internacionais/pisa/resultados
[7] https://www.cpp.org.br/informacao/noticias/item/10576-com-reajuste-maranhao-pagara-mais-alto-salario-de-professor

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Quem pragueja contra o comunismo sabe o que é liberalismo? (parte 2)


Quem pragueja contra o comunismo sabe o que é liberalismo? (parte 2)

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Traçados os pressupostos para a questão educacional (ver parte 1), definamos os pontos de referência na tradição liberal que facilitarão uma abordagem comparativa dos programas de governo de Fernando Haddad e Jair Bolsonaro. Para interligá-los, é fortuito indagarmos como uma visão de mundo igualitária pode ou não se concretizar em uma sociedade nacional.

Segundo Álvaro de Vita[1], ninguém melhor do que John Ralws sistematizou teoricamente a defesa do igual valor dignitário dos indivíduos sem, contudo, abrir mão das premissas liberais da ideia de autonomia que a modernidade nos legou. Seguindo os passos da “justiça rawlsiana”, Vita elenca três tipos de bens que devem ser considerados no tocante à gestão dos conflitos distributivos:

- Renda, riqueza, acesso a oportunidades educacionais e ocupacionais, provisão de serviços (bens passíveis de distribuição);

- Conhecimento e auto-respeito (bens não passíveis de serem distribuídos diretamente, mas que são afetados pelo modo como os primeiros são distribuídos);

- Capacidades físicas e mentais de uma pessoa (bens cuja distribuição em dada população não são condicionados pela distribuição de outros bens).

O primeiro e segundo tipos constituem os "bens primários", que, embora vinculem a todos pelo valor intrínseco que possuem, são afetados por contingências naturais e sociais que impedem ou, ao menos, dificultam os indivíduos retirarem deles um benefício mútuo. Sendo assim, como assegurar a cooperação social entre os mais e menos dotados de recursos escassos de todo tipo? Para Vita, o enfoque liberal-igualitário de Ralws vislumbra três princípios distintos para a distribuição de benefícios sociais e econômicos.

O primeiro deles seria a liberdade natural, do qual se extrai a visão política mais aproximada do liberalismo econômico, uma vez que esse princípio sugere a combinação de ordem social competitiva com igualdade formal de oportunidades como condição suficiente para garantir a todos os mesmos direitos de acesso às melhores posições sociais. Nesta versão do liberalismo, tão decantada no senso comum pela ideologia da mérito, não se ofereceria, na prática, uma solução a contento para as desigualdades raciais, de gênero e étnicas que as relações de mercado acomodam em contrariedade àquilo que prometem: a inexistência de barreiras legais para o exercício dos próprios talentos e capacidades sob o veredicto escolar.

A tentativa de superar um padrão de desigualdade atribuível a fatores naturais e sociais que estão fora do alcance da escolha individual e que, portanto, tende a se perpetuar de modo arbitrário, redundou no segundo princípio, a igualdade liberal de oportunidades. Nesta forma de igualação, tenta-se viabilizar um ponto de partida em que não haja constrangimentos externos à vontade dos indivíduos que tenham destrezas semelhantes, bem como motivação para realizá-las conforme suas predileções. Para tanto, todo um complexo institucional haveria de ser erguido em torno da efetiva igualdade de status de cidadania, liberando assim os indivíduos de contingências (lugar de origem, caracteres raciais adscritos, entre outras) que limitassem suas perspectivas de realização pessoal. Aqui, importa reconhecer que a estratificação social não deveria ser a medida de todas coisas para o senso de pertencimento dos indivíduos a uma civilização que seria em si mesma um bem comum.

Não obstante, um ponto de partida desigual será assumido in totum se aceitarmos que o horizonte histórico não transcenderá, até prova em contrário, a sociedade de classes capitalista. No primeiro princípio (liberdade natural), não se daria margem alguma a ponderações desse tipo. Já no segundo (igualdade liberal de oportunidades), esse condicionante estrutural apareceria de maneira subliminar como um problema. A desigualdade de classe se mantem na medida em que recursos intangíveis (background familiar, capital cultural) são transmissíveis de geração a geração sob um verniz meritocrático que ocultaria a falta de contrapartida aos desprovidos de vantagens sociais herdadas, condenando-os, pois, à condição de (sub)cidadãos.

Frente ao caráter inconcluso daquele problema, vem à tona um terceiro princípio, a igualdade democrática. Aqui encontramos uma espécie de especulação sobre a motivação moral de um indivíduo para que um novo padrão distributivo tenha eficácia. Ora, testar o seu próprio desempenho para fins de classificação em carreiras profissionais privilegiadas e, sobretudo, instrumentalizar-se para tal são disposições de agir específicas, isto é, implicam uma socialização de certas atitudes de classe que, digamos, faça com que as (auto)profecias se realizem. Se não escolho livremente os dotes genéticos nem a circunstância social que me facultam desenvolver talentos naturais suscetíveis de serem mais valorizados do que outros em um dado arranjo socioeconômico, por que seria legítimo supor que poucos devam obter a maior parte dos frutos da cooperação social? Vita lembra que essa arguição na obra de Ralws é controversa, já que lançaria um ataque frontal à “cidadela última para onde políticos e economistas conservadores recuam quando querem justificar as desigualdades sociais existentes”. O igual valor dignitário dos indivíduos não encontraria rival à altura se a fraternidade fosse, de fato, o ponto médio de um pêndulo que oscilasse entre as aspirações à liberdade e à igualdade:

O princípio de igualdade democrática requer que os mais privilegiados abram mão de tirar proveito das circunstâncias sociais e naturais que os beneficiam, a não ser quando fazê-lo beneficia também os que têm o menor quinhão de bens primários (VITA, 1999, p.48).

Revistas essas concepções normativas de justiça social em seu sentido amplo, passaremos à leitura dos programas de governo na terceira e última parte desse texto (a publicar). Inicialmente, cogitei avaliá-los já nesta segunda parte, porém creio não ser construtivo fatigá-los com um texto demasiado extenso. Adianto apenas que o recorte que farei das agendas educacionais propostas por Haddad e Bolsonaro privilegiará as ações voltadas ao ensino pré-escolar e fundamental, por entender que esse período da aprendizagem é crucial para ampliar as possibilidades de superação das desigualdades frente à cultura.



[1] Vita, Álvaro de. Uma concepção liberal-igualitária de justiça distributivaRevista Brasileira de Ciências Sociais, Fev. 1999, vol. 14, nº 39, p.41-59. ISSN 0102-6909

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Os ardis da autocrítica pregada aos outros


Pichações nazistas em uma igreja católica de São Pedro da Serra, distrito de Nova Friburgo/RJ.

Os ardis da autocrítica pregada aos outros

Por Lara Luna da Silveira*

Li algumas críticas pertinentes sobre a responsabilidade da esquerda e a falta de autocrítica do PT no fenômeno de adesão em massa a Bolsonaro e, cercada de pessoas que votam nele, tenho convicção para afirmar que, de fato, "aquela tia" ou "aquele colega" não são fascistas, mas convictamente antipetistas.

O mesmo cuidado que pedimos para não misturar "comunismo" com PT (e mesmo com toda preguiça de ver o nome Venezuela e "ditadura petista" em memes que "viajam na maionese") estou tentando ter para não encaixar qualquer um, dentre quase 50 milhões de pessoas, no rótulo de fascista. Se tem mulher, negro, pobre e gay votando nele, no mínimo, tenho curiosidade em entender essa adesão.

Dito isto, acho que a ojeriza à corrupção não explica tudo. Não sabemos o percentual de eleitores que estão votando porque ele é um "mito" que fala aquilo que querem ouvir; nem dos eleitores que votam "apesar do que ele fala", a título de voto de veto.

Fato é que também vejo pessoas como eu, que não queriam o PT no segundo turno, que queriam que o PT reconhecesse que não é só vítima de interpretações enviesadas, de difamações, mas que também permitiu e cometeu não apenas erros de estratégia eleitoral, mas inclusive corrupção, que é sim um problema sério. Mas a coisa é complexa. Não caio no maniqueísmo de odiar o PT, porque apesar de seus erros foi, para mim, de longe o governo que mais tentou incluir pessoas e enfrentar as desigualdades sociais. Também é um problema sério, muito sério aliás, ter gente passando fome. A minha crítica ao PT, assim entendo, passa longe de ser esse antipetismo que vocifera nas redes. Prefiro fazê-la entre aqueles que estão ainda mais à esquerda que a socialdemocracia adotada pelo partido, porque tentamos sair desse lugar comum e repetido de falar em corrupção, considerando haver todos os incentivos estruturais para que ela não acabe e que candidato nenhum vai "dar jeito" nela nem "messianicamente".

Há, assim, quem vai votar no Haddad no estilo "apesar de" também (particularmente, gosto muito de sua biografia, admiro-o muito enquanto político).

Mas, agora, chego aonde quero: apesar do voto de veto, o que mais tem pautado a disputa é o argumento moral. E aí o antipetismo vem agregando “fake news”, ignorância e maledicência. Não falo isso porque estou do outro lado trincheira, sei que há “fake news” do lado de cá também. Mas já é sabido o quanto a campanha do Bolsonaro tem sido feita pura e simplesmente pelas redes, particularmente pelo Whatsapp, com apoio de especialistas que sabem como gerar medo. Medo de sermos uma Venezuela, medo de seu filho ter que dividir banheiro com transexuais, medo do comunismo, medo de andar desarmado. Não importam os debates, não importam os projetos estruturais (economia, educação, saúde, saneamento, etc.), não importa a experiência em gestão. Não importa nem saber o que era, de fato, o projeto "Escola sem homofobia".

Isso explica a adesão de religiosos. Não porque a preocupação maior seja com a mensagem de paz, que se escandaliza com a apologia à tortura. Mas porque a regulação da sexualidade ainda é hoje instrumento de biopolítica, de controle de corpos não só dos integrantes das nossas famílias, mas de todos aqueles que atravessam a rua. Por isso, a violência física a certas minorias, apesar de vir de uma parte restrita do eleitorado, encontra-se no mesmo candidato catalisador do voto daqueles que são contra a agressão física, mas que não acolhe a diversidade por motivos de ordem moral. O candidato não era o único antipetista disponível. Era o que, em nuances diferentes, conversava sim com a mentalidade de muita gente, "apesar de...".

Não quero que o medo nem o ódio pautem as decisões da minha vida, mesmo sabendo que os tenho. Meu voto é, assim, uma decisão racional, de posicionamento de valores. Considero-me mais liberal "raiz" em muitos quesitos que muita gente que se diz de direita: não quero o Estado cerceando direitos civis. Entretanto, quero-o provendo direitos sociais porque não somos nenhum país de Primeiro Mundo que possa abrir mão disso. Choca-me termos milhões de analfabetos e uma proposta de ensino à distância para crianças não chocar as pessoas! Como alguém no meio da caatinga sem um livro vai acessar o ensino "à distância"?! Mas aí eu entro na pauta estrutural e o que vale é discutir o "sexo dos anjos"!

Esse "textão" chato vai ser jogado em resposta a todo mundo que vier com o papo de "mas o PT isso...". Eu também sei votar movida por valores, "apesar de"...

* Doutora em Sociologia Política (UENF).