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segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Mulheres, teoria social e uma coletânea indispensável



Mulheres, teoria social e uma coletânea indispensável*

* Publicado originalmente no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social.

Mariana Chaguri

O recém-lançado Clássicas do Pensamento Social: mulheres e feminismos no século XIX com organização e comentários de Verônica Toste Daflon e Bila Sorj é uma obra que nos ajuda a perceber como a história das ideias e da produção do conhecimento é também uma história da produção da diferença baseada em gênero.

A coletânea reúne trechos de obras de Alexandra Kollontai (Rússia, 1872-1952); Alfonsina Storni (Argentina, 1892-1938); Anna Julia Cooper (EUA, 1858-1964); Charlotte Perkins Gilman (EUA, 1860-1935); Ercília Nogueira Cobra (Brasil, 1891-?); Harriet Martineau (Inglaterra, 1802-1872); Pandita Ramabai Sarasvati (Índia, 1858-1922) e Olive Schreiner (África do Sul, 1855-1920).  Autoras nascidas no século XIX, em diferentes geografias, e que, a despeito da boa circulação que encontram em seus respectivos tempos históricos, foram se tornando presenças fugidias nos manuais de teoria social.

Como apontam as organizadoras, trata-se de um apagamento que se intensificou conforme o processo de institucionalização das Ciências Sociais foi se aprofundando em diferentes partes do mundo. Como consequência, essas e tantas outras mulheres intelectuais passaram, na melhor das hipóteses, a terem suas existências registradas em compêndios ou manuais de teoria social. Um registro que não significa, no entanto, o debate sobre suas contribuições à teoria social, promovendo a marginalização ou mesmo a exclusão de suas ideias dos balanços e avaliações críticas acerca do estatuto teórico e das inovações científicas da disciplina.

Ao apresentar trechos seleccionados de obras, artigos ou textos avulsos – a maioria deles inéditos em português -, Verônica Daflon e Bila Sorj oferecem subsídios teóricos e ferramentas analíticas que nos permitem rever, alargar e repensar o que e quem constitui o cânone clássico da teoria social. Desse modo, a coletânea oferece uma contribuição fundamental à tarefa de recuperação dos “elos e [das] genealogias de pensamento de mulheres e de feminismos nas mais diversas áreas das artes e do conhecimento” (Daflon e Sorj, 2021: 10).

O esforço empírico e analítico de refazer tais elos é tarefa chave para a desorganização da dinâmica das relações de poder que hierarquizam, legitimam ou deslegitimam inovações teóricas e metodológicas, modos de construir problemas ou perguntas de pesquisa no interior da teoria social, sobretudo aquela classificada como clássica. Longe de querer dirimir nesta resenha a polêmica sobre o que faz de uma obra ou um/a autor/a um/a clássico/a, aponto que Clássicas do Pensamento Social nos ajuda a perceber como tal seleção integra instituições, escritores/as, críticos/as e leitores/as num mesmo circuito de trocas intelectuais e culturais, ou seja, ainda que ocupem posições diferenciais neste circuito, todos/as ajudam a selecionar, colocar em circulação e legitimar autores/as e obras.

Clássicas do Pensamento Social nos permite revisitar a história da teoria social e enquadrá-la como produto de uma prática coletiva, isto é, moldada pelas relações sociais que a fizeram possível e, não menos importante neste caso, marcada por uma pedagogia dos textos clássicos (Connell, 1997). É por meio desta provocação aos conteúdos substantivos dos clássicos e do cânone que a coletânea nos convida a reexaminar os problemas, questões, pressupostos e práticas compartilhadas que ajudaram a construir determinada teoria social como clássica.

Para tanto, as organizadoras selecionaram autoras de geografias diversas – como África do Sul, Argentina, Brasil, Estados Unidos, Índia, Inglaterra e Rússia – que viveram, produziram e disputaram as ideias científicas e os modos de ver e falar sobre o social e a sociedade em meio às variadas revoluções e transformações na sociedade, na economia e na cultura que marcaram a segunda metade do século XIX e o começo do século XX.

Se em boa parte da história das ideias os anônimos sempre foram mulheres como apontou Virginia Woolf ([1929] 2014), Raewyn Connell não deixa de observar que a maioria dos autores clássicos da teoria social: “viveu vidas burguesas modestas, com suporte do trabalho doméstico de mulheres [mães, esposas, filhas] em lares patriarcais” (Connell, 1997:1527). Entre o anonimato das ideias e o trabalho de cuidado e suporte à produção intelectual de pais, irmãos, maridos, amantes ou amigos, diferentes mulheres sistematizaram ideias, teorias e conceitos para investigação e análise do mundo social, bem como se lançaram nos debates políticos e embates públicos de seus tempos históricos.

No caso das autoras selecionadas para integrar a coletânea Clássicas do Pensamento Social, estamos diante de mulheres que em diferentes espaços sociais e geográficos compartilharam trajetórias pessoais semelhantes: “jovens viúvas, ‘solteironas’, ‘desquitadas’, mulheres sem filhos, mães solteiras, órfãs de pai desde cedo” (Daflon e Sorj, 2021: 14). As oito autoras também compartilham outro traço biográfico comum: foram viajantes ou migrantes, “deslocando-se entre culturas e pessoas, entre o público e o privado, desenvolvendo olhares comparativos e singulares” (Daflon e Sorj, 2021: 15).

Ou seja, mulheres que longe das funções de cuidado e de suporte à reprodução de vidas burguesas mais ou menos modestas em lares patriarcais, percorram acidentados caminhos pessoais e coletivos para se realizarem na e por meio da vida intelectual. Circunstâncias que, segundo as organizadoras, marcaram suas ideias e modos de pensar e falar sobre a sociedade, sendo possível observar que seus escritos também estão permeados por “subjetividades femininas formadas de maneira crítica e não usual” (Daflon e Sorj, 2021: 15).

Clássicas do Pensamento Social faz emergir, então, uma outra história das ideias, colocando uma questão chave para o tempo presente: que teoria social clássica podemos fazer emergir quando dialogamos – com as recusas e adesões típicas de qualquer diálogo intelectual crítico – com as inovações teóricas e metodológicas, os modos de construir problemas ou perguntas de pesquisa que foram formuladas pelas autoras e obras selecionadas?

Analisando em conjunto os trechos selecionados pelas organizadoras, notamos que se trata de uma teoria social que toma como objeto de análise as dimensões privadas e pública do social, evitando dualismo e procurando, a todo momento, colocá-las em relação. Como efeito, temos uma ciência da sociedade que debate as relações entre Estado, mercado e família a partir de pontos de vistas variados, chamando a atenção para a domesticidade, para a reprodução da vida social e para as variadas fontes de legitimação do poder e da dominação. Trata-se, também, de uma teoria social que tem na posicionalidade dos atores sociais um elemento chave de investigação, adotando perspectivas que tomam diferenças de gênero, classe e raça como centrais para a compreensão do social. Como resultado, temos a desestabilização de ideias unitárias de comunidade, autoridade, status etc.

Neste ponto, importa observar que ao enquadrar o social a partir daquilo que hoje chamaríamos de uma perspectiva de gênero, as autoras e obras selecionadas indicam que a imaginação feminista atuou ativamente nas disputas de ideias, conceitos e categorias que ajudaram a estruturar noções como a de nação, nacionalismo, Estado Nacional, direitos e cidadania sobretudo a partir da segunda metade do século XIX. Ao apontar para a historicidades das mediações políticas e analíticas entre gênero, nação, Estado e cidadania, por exemplo, a coletânea nos ajuda a explorar as conexões entre o feminismo do século XIX e aspectos de variadas imaginações anticoloniais e anticapitalistas.

Vista em conjunto, a coletânea Clássicas do Pensamento Social nos apresenta autoras cujas biografias também podem ser lidas como trajetórias coletivas de mulheres intelectuais na virada do século XIX para o XX, com seus alcances e limites, bem como com os trânsitos – mais ou menos acidentados – entre a casa e a rua, mas também entre classes, países, debates teóricos e controvérsias públicas. Do mesmo modo, aponta para o amálgama entre imaginação feminista, demanda por diretos, ação política e a produção de ideias. Ao percorrer os trechos selecionados na coletânea, nota-se que este amálgama fez emergir uma teoria social que torna as noções de igualdade e diferença interdependentes, ainda que em tensão.

Se, historicamente, as mulheres permaneceram fora do tempo ou do acontecimento (Perrot, 2007: 9), num universo socialmente confinado e restritas a falar sobre os “momentos que não se narram, momentos que não se notam” (Souza, 2009:100), Verônica Daflon e Bila Sorj apontam que um tempo possui muitas histórias e que são variados os modos de experimentá-lo, reconstruí-lo e analisá-lo. Ou seja, contextos intelectuais são constituídos por controvérsias e disputas, sendo fundamental construir uma história das ideias e uma história intelectual das Ciências Sociais cujo repertório teórico e metodológico não tome mulheres intelectuais como sujeitos além ou aquém do tempo, ponto chave para afastá-las de noções como pioneirismo ou mesmo de uma política de representação que não desestabiliza cânones ou modos de falar e ensinar teoria social.

Clássicas do Pensamento Social contribui para colocar os ativismos, os escritos e as ideias dessas autoras em contexto, permitindo compreender como elas atuaram sobre os modos de investigar e refletir sobre a sociedade, bem como construíram conceitos e categorias de análise. A coletânea, portanto, nos ajuda a compreender, analisar e avaliar essas autoras como agentes que pertencem intelectualmente a seus tempos pessoais e sociais, participando ativamente dos espaços no qual as controvérsias públicas são travadas e os imperativos da inovação científica demandados (Castro e Chaguri, 2020).

Referências

CASTRO, Bárbara; CHAGURI, Mariana. (2020). Gênero, tempos de trabalho e pandemia: por uma política científica feminista. Linha Mestra, n.41, p.23-31. Disponível em: https://doi.org/10.34112/1980-9026a2020n41ap23-31

CONNELL, Raewyn. (1997). “Why is classical theory classical?,” American Journal of Sociology, 102, n. 6, p.1511-1557.

DAFLON, Verônica Toste; SORJ, Bila. (2021). Clássicas do pensamento social. Mulheres e feminismos no século XIX. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.

PERROT, Michelle. (2007). Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto.

SOUZA, Gilda de Mello. (2009). Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34.

WOOLF, Virgina. (2014). Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas.

sábado, 16 de março de 2019

Racismo, Universidade e as disputas pelos sentidos do mundo.



Racismo, Universidade e as disputas pelos sentidos do mundo.

Por Luciane Soares da Silva*

Existem textos que são escritos de uma única tacada. A conjuntura, a necessidade da denúncia são aliados na construção dos argumentos. Não se deve esperar para apresentar um posicionamento. Faço esta advertência, pois correrei um risco muito grande hoje. De qualquer forma, outros correram antes de mim.

No início dos anos 2000, em um Congresso com cientistas portugueses, discorria sobre ocorrências de delegacia envolvendo injúria racial após a Constituição de 1988. Fui interrompida por uma professora que, muito preocupada com o espanto do grupo de 11 pesquisadores, tentava defender a representação do Brasil como um paraíso racial. Quando a indagaram sobre as “cotas”, experimentei o primeiro momento constrangedor de inúmeros que veria ao longo de uma década: aos prantos, fez uma defesa pessoal de sua orientação racial democrática. De como era ter orientandos do CNPq negros.

Como pesquisadora formada no sul do país, vivi ao longo de 6 anos situações que muito recentemente são classificadas como “racismo” institucional. Desde piadas em bancas de seleção com personagens negros cômicos de filmes americanos até o questionamento da vocação para pesquisa. Sem contar as classificações obscuras em concursos nos quais a banca permaneceu olhando pela janela durante minha prova-aula e bocejando. Todos sabem como isto acontece, mas não é possível criticar um círculo de poder se você ainda tem a pretensão de ingressar em uma Universidade.

São esses os inconvenientes que o professor José Jorge de Carvalho ousou denunciar ao tomar posição no “caso Ari”. Arivaldo Alves foi reprovado em uma disciplina obrigatória do curso de doutorado no departamento de Antropologia da Unb em 1998. Algo inédito nos 20 anos de existência daquele programa. Lembro de José Jorge na UFRGS contando quantos professores negros tínhamos na Universidade. Um deles era meu orientador, cabo–verdiano. Não lembro de outros durante o tempo que estive lá. E não creio que haja um número muito representativo em 2019. José Jorge indagava se tínhamos os dados sobre evasão nos cursos das principais Universidades. Por que concentrar-se em 20% de reserva de vagas?

Naquele ano, um muro amanheceu pichado na frente da faculdade de Direito na João Pessoa com a frase “Negro, só se for no RU, cotas não”. A referência era ao restaurante universitário, no qual comi por seis anos e o local em que, de fato, podíamos ver os não brancos. As “cotas” foram atacadas, livros foram escritos com vários argumentos sobre a dificuldade da classificação racial, sobre importar um problema que não existia no Brasil. Lembro de estudantes defendendo a meritocracia.

O Brasil de 2019 é bem diferente daquele. As primeiras turmas de UERJ e da UENF (pioneiras na política de ação afirmativa) já estão formadas e desmentem hipóteses iniciais sobre desempenho de cotistas. As Federais também sofreram o impacto das políticas e é possível perceber maior heterogeneidade quanto a cor em alguns cursos. Se olharmos para o corpo docente das Universidades, vemos algo curioso: alunos não brancos e de classes trabalhadoras ingressam em cursos de doutorado. Mas se realizarmos um levantamento nos últimos dez anos nos concursos públicos, veremos que segue o mesmo padrão de cor de décadas anteriores.

Quais as hipóteses para este fenômeno? Tenho amigos formados na UFF, USP, UFRJ, UFMG, UFRGS, UERJ, UFBA... por pesquisadores reconhecidos internacionalmente, com uma biografia de dedicação à pesquisa, com formação na Europa, Estados Unidos, com publicações nas melhores revistas. Como explicar seu desempenho em concursos? Um ponto: creio que as ações afirmativas não servem como resolução para desigualdades estruturais com base em cor. Mas sabemos o peso do reconhecimento pelo título conferido no século XXI para aqueles cujas famílias não têm uma única pessoa com ingresso no ensino superior.

Mas me parece que a entrada na carreira docente representa o passo que não demos. Representa a discussão de uma outra epistemologia científica, o deslocamento concreto dos objetos de observação (tanto na área de saúde como na geografia ou no urbanismo). Se temos como professor um homem negro, residente na Maré e que estuda favelas (e de fato, ele existe com estas características), alteramos um ponto nos discursos sobre um dos temas mais interessantes na ciências sociais brasileiras. Outro lugar de observação, outra forma de entrada em campo, outras possibilidades teóricas e políticas.

Creio que todos têm um acordo formal sobre isto. Como temos acordo sobre a necessidade de combater o racismo. Mas o que temos hoje é um outro tipo de reserva de vagas: aquelas que definem os sentidos do mundo. E que, ao definirem, estabelecem os lugares de poder. E, como conseqüência óbvia, a forma da distribuição dos recursos e da reprodução nos termos estudados por Pierre Bourdieu. Não é apenas uma questão de escolha teórica. Longe disto. Há também o uso do discurso dos estudos culturais, dos estudos de gênero e outros como forma de autoconsagração. Atuação magistral no campo da retórica. Mas que não se aplica às regras de seleção dos novos professores. O fato concreto é que não há nenhuma disposição para alterar este quadro e basta dar uma olhada nos resultados de concursos recentes para confirmar este texto.

Melhor seria se permanecessem as cátedras. É uma ironia. Mas pouparia muito sofrimento aos que entram em concursos com 50 candidatos e aceitam regras que jamais os incluirão. Que sequer explicarão a diferença de décimos que os colocou em segundo lugar (estas explicações nunca poderão ser dadas, pois democratizariam o processo). Quanto a mim, que furei o bloqueio sem qualquer obtenção de justiça em nenhum destes lugares, seguirei na disputa pelos sentidos do mundo. Porque não se pode acreditar em uma ciência sem dissenso e fenotipicamente homogênea. Eu estive prestes a dedicar este texto a quatro professores ... mas percebi que seria injusto não completar a lista. E o texto já está longo demais. Além disto, não faz mais diferença.

* Socióloga. Professora Associada à Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Chefe do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (LESCE/CCH/UENF) e Presidenta da Associação de Docentes da UENF (ADUENF).