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quinta-feira, 6 de abril de 2023

Sobre o morticínio em Blumenau - Luis Felipe Miguel

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Sobre o morticínio em Blumenau**


Luis Felipe Miguel***


O morticínio na creche em Blumenau nos encheu de horror e tristeza, mas não necessariamente de espanto. 

Infelizmente, o Brasil está se tornando um país em que esse tipo de atentado é quase corriqueiro.

Não é possível nem imaginar a dor das famílias que perderam aquelas crianças. E, sobretudo, não é possível aceitar uma situação em que um pai ou uma mãe manda seu filho para a escola sem ter certeza de que ele voltará para casa.

A direita já anuncia as "soluções" de sempre. Uns falam em aumentar as penas - como se o perpetrador de um crime desses se guiasse por um cálculo racional. 

Ou em armar os professores - perpetuando um clima de paranoia e fazendo do país um bangue-bangue, com uma escalada ainda maior de violência como resultado previsível.

Não faltou nem quem propusesse ampliar a vigilância sobre as escolas - com efeito negligenciável na segurança, mas grande sobre a autonomia dos docentes.

Nada disso é solução, é claro. Penso que são necessárias medidas urgentes, mas também de prazo mais longo.  Algumas - as de curto prazo - com caráter mais repressivo. Outras visando as origens do problema.

No curtíssimo prazo, é preciso reforçar o policiamento próximo às escolas e implantar dispositivos de alarme para situações de risco.

(O governo federal anunciou a liberação de R$ 150 milhões para reforçar a ronda escolar em todo o Brasil. O valor será repassado para estados e municípios.)

É preciso também ampliar o monitoramento da internet, onde as ações são gestadas e incentivadas.

(O governo federal também anunciou a criação de uma força tarefa emergencial com este objetivo.)

Uma vez que estes discursos têm migrado da deep web para espaços como TikTok, é importante responsabilizar as plataformas.

São negócios bilionários que se eximem de qualquer regulação pela sociedade. Mas precisamos definir o que queremos delas. E, talvez, tomar coletivamente a decisão de refrear seu domínio sobre nossa sociabilidade.

Alguns órgãos de imprensa têm tomado a decisão correta de não divulgar nome e foto do assassino - afinal, o desejo depravado por fama é um componente essencial neste tipo de ataque. Mas não é toda a imprensa. Valeria legislar sobre o tema.

(A busca de notoriedade como motivo para o crime foi turbinada pelas redes sociais, mas não surgiu com elas. Como exemplo: em 1972, Arthur Bremer deixou de balear Nixon, como queria, porque quis trocar de roupa para a ocasião e perdeu a chance; teve que se contentar em atingir George Wallace, o governador segregacionista do Alabama. Anotou em seu diário que estava decepcionado, pois não teria repercussão na Europa e na Rússia.)

Medidas de curto prazo são importantes, mas é preciso também pensar sobre as raízes mais profundas dos ataques. O que faz alguém chegar a esse ponto?

Há todo um caldo de cultura de apologia da violência - do culto às armas à ideia de que o desprezo pela vida é algo "transgressor".

(Estudos apontam que são meninos recém-chegados à adolescência os  capturados por esse tipo discurso. É preciso enfatizar o vínculo entre a construção de uma "masculinidade" hoje fragilizada e a epidemia de violência, para adotar políticas efetivas de saúde mental.)

Como se o desprezo à vida não fosse, no final das contas, definidor do sistema capitalista em que vivemos.

Esta glorificação da violência é central na extrema-direita. O que vemos nas escolas anda junto com o avanço dos  discursos de ódio, neonazismo etc. Nem é preciso dizer em quem votou o assassino de Blumenau.

Um deputado indicou um torturador notório como seu herói pessoal - e não só não foi punido como se elegeu presidente. Creio que isso resume muito da história.

Agora, todos fazem seus lamentos hipócritas nas redes sociais.

Não adianta. Cada um que contribuiu para a degradação do debate político no Brasil; cada um que aderiu, por estupidez, convicção ou oportunismo, ao avanço de um extremismo perverso; cada um que reforçou os estereótipos mais vulgares do machismo - são todos, em menor ou maior medida, culpados pela espiral de uma violência gratuita, aberrante, própria de uma sociedade muito doente.


* Van Gogh, "Prisoners round", 1889. Disponível em: https://www.mutualart.com/Article/The-Sadness-Will-Last-Forever--Van-Goghs/A713E9002A6E4245, acesso em 06 de abril de 2023.

** Publicado originalmente no perfil do Facebook do prof. Luis Felipe no dia 06 de abril de 2023. Reproduzimos aqui com a autorização do autor.

*** Professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). É autor de  "Democracia e representação: territórios em disputa" (Editora Unesp, 2014), "Dominação e resistência" (Boitempo, 2018), dentre outros. Lançou no primeiro semestre de 2022 o seu  "Democracia na periferia capitalista" pela Autêntica Editora.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

É possível conversar com um reacionário?


É possível conversar com um reacionário?

Paulo Sérgio Ribeiro

A indagação inspira-se, por óbvio, no livro da filósofa Márcia Tiburi: Como conversar com um fascista?[1] Tal como Tiburi, bebemos uma certa dose de ironia na resolução deste enigma sob o risco iminente de sermos por ele engolidos em caso de insucesso. Sendo assim, uma maneira de não nos perdermos em meio às sombras do Brasil pós-golpe é selecionar bem as categorias de análise. Opto, pois, pelo termo “reacionário” ao invés dos já consabidos e populares “bolsonarista”, “bolsominion” ou, simplesmente, “minion”, todos estes vocalizados como sinônimos de “fascista”. Não que tais expressões não tenham lá sua serventia em momentos de posicionamento na luta política, mas, para fins de pensar a comunicação entre divergentes, é oportuno ceder a vez a um exercício de escuta do “outro” enquanto depositário de uma subjetividade que ele próprio não consegue dar conta e que, por sua vez, indispõe-no a qualquer forma de vida que ponha em xeque sua miséria humana: a instrumentalização política de afetos primários como o ódio.

Firula conceitual? Não, pois o comportamento político não espelha necessariamente uma dicotomia entre progressistas e conservadores descrita em um manual de ouro, mas gradações sutis entre tais pólos. Sendo isto plausível, nós, progressistas, a despeito de tudo o que nos singulariza e antagoniza, temos de tomar para si a tarefa (inglória para alguns, impossível para outros tantos...) de estabelecer alguma maneira de repactuar limites com indivíduos e grupos cujo “estar no mundo”, por assim dizer, revela concretamente o que se convenciona por reação: anular os efeitos de uma mudança qualquer. Trata-se de uma tarefa sensível tanto na esfera pública quanto na esfera das relações íntimas de afeto. Talvez, mais gravemente na última, dado o sofrimento moral acumulado após tantas decepções com quem, um dia, já fora destinatário(a) de nossos sentimentos mais gregários.

Esta nossa tão universal necessidade de afiliação nunca se viu tão desmentida por escrúpulos atribuíveis, quiçá, a uma necessidade subjetiva de identificar-se (e comprometer-se) com a sorte do gênero humano em sua inteireza. Afiliação não se realiza sem pagar tributos à necessidade de poder e, cedo ou tarde, teremos de lidar com o ônus de navegar o mesmo mar dos que militam pela reação sem, todavia, abrirmos mão da bússola histórica que nos mostre uma rota consciente no entrechoque das correntezas que arrastam a todos.

Tomemos um exemplo: a reação ao lockdown decretado pela prefeitura municipal de Campos dos Goytacazes-RJ, minha cidade natal, com início para segunda-feira (18/05/2020)[2]. O reacionarismo manifestou-se na convocação, por parte de grupos de extrema-direita organizados localmente, de um protesto contra o lockdown no espaço que condensa toda a potência do que seja um ato público em solo campista - a Praça São Salvador – e no lugar que, por definição, corporifica a instituição do direito – a Câmara de Vereadores ou, precisamente falando, suas escadarias.

Qual é a “pauta” desses grupos? Basicamente, o retorno a uma vida civil cujo verniz liberal são incapazes de simular com suas patriotadas vazias. Ora, na tradição liberal bem compreendida, a autolimitação do Estado é um ato de vontade do soberano que busca assegurar, através da não interferência na esfera da consciência e da iniciativa econômica, a autonomia civil de cada um(a). Contudo, na crise de saúde pública de alcance global ocasionada pelo Covid-19, o ajustamento íntimo de cada um(a) a novas rotinas torna imperativo que o Estado lembre aos seus cidadãos (com uso do poder de polícia, se necessário) que eles também têm de observar a autolimitação em nome de um bem primário – a vida.

A violação da ordem pública pelos meus conterrâneos reacionários é sintoma de uma irracionalidade que tanto reflete a negação da ciência quanto dela se retroalimenta. Ora, a ciência é uma prática social que tem em seu horizonte o exercício da dúvida sistemática na comprovação de relações de causa e efeito sobre os fenômenos. Admitir-se em erro não é, para um(a) cientista profissional, propriamente um motivo de aflição, mas uma exigência ética ao demonstrar um fato passível de exame geral. Ora, se é factível que o contágio ocorre em velocidade exponencial e que não há outra medida ao nosso dispor, exceto o isolamento e distanciamento sociais como meios de abreviar o período de quarentena e mitigar os custos da recuperação econômica pós-pandemia é, no mínimo, inconsequente o lobby da Câmara dos Diretores Lojistas (CDL) na agitação suicida dos verde-amarelos de plantão.

Por que é tão improvável um(a) reacionário(a) admitir que possa estar errado(a) sobre suas próprias motivações? O rechaço ao sistema político como prova de “isenção” ante os jogos políticos tradicionais é produto de afeições que, para um certo segmento da população que transcende divisões de classe, caracterizam um estado de desamparo diante das mudanças de posição e de status advindas com a incipiente mobilidade social verificada nos governos de centro-esquerda – gestão federal do Partido dos Trabalhadores (PT) – sem, todavia, terem sido revertidos os condicionantes estruturais da desigualdade socioeconômica reproduzida pelo racismo de classe e de cor e, não menos, pela misoginia.

O código de virilidade exibido em protestos de rua contra as instituições de direito e de justiça, sob o pretexto de questionar as medidas de restrição às liberdades públicas em um cenário de pandemia, apenas evidencia o desejo um tanto caricatural de volta a uma “normalidade” que, nada mais é, do que o estado de sítio mal disfarçado de pessoas – em sua maioria, homens e pequeno-burgueses – que veem o seu lugar no mundo ameaçado por mudanças que não compreendem.

O ressentimento decorrente desta invalidação da existência social da fração proto-fascista da classe média – o “tio do churrasco” que perdeu a graça; a vivandeira de quartel saudosa do “milagre econômico” para o 1/4 de sempre; o(a) concurseiro(a) que clama por Estado mínimo – serve de referencial ao conservadorismo moral das camadas populares que não têm outro recurso senão a severidade nos costumes como forma de distinção social que, por convicção sincera e deveras inútil, mimetiza o moralismo hipócrita das classes que, por arrivismo ou simples desprezo ao lumpenproletariado que explora, dita quem vive e quem morre com o falso dilema traduzido em “salvar a economia ou preservar vidas”.

Daí, não é surpreendente que a tempestade perfeita esteja longe do fim e que sua nuvem mais pesada paire sobre a planície fluminense confirmando o quão lenta pode ser a história entre nós campistas.



[1] Cf. TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista? Rio de Janeiro: Record, 2018.
[2] Jornal Folha da Manhã, edição de 18/05/2020, disponível (aqui).

sábado, 6 de outubro de 2018

TRE-RJ no Instituto Federal Fluminense

Prezad@s,

Nesta semana em que salas de pesquisa dos colegas da Geografia foram reviradas na UFF-Campos dos Goytacazes, RJ pelo TRE-RJ em busca de "material político partidário ilegal" do PSOL, mesmo que nada houvesse e fosse consequência de mais uma das covardes denúncias anônimas que circulam na cidade, agora vemos o mesmo modus operandi ocorrendo no Instituto Federal Fluminense. Nada havia lá ou cá, na UFF e no IFF nas operações que menciono.

Antes de prosseguir, gostaria de dizer que contextualizo a atuação do braço local do TRE-RJ. Campos dos Goytacazes é uma cidade marcada pelo clientelismo desde a Era Glacial. Contudo, causa perplexidade e indignação a truculência, a violência simbólica e física e os abusos em Instituições que, tal como parte dos agentes do TRE-RJ, sempre se posicionaram historicamente em franco enfrentamento às más práticas da política local.

Sendo assim, reconhecendo o histórico de Instituições Republicanas como a UFF e o IFF, só posso arriscar uma hipótese a ser testada. A polarização política tirou do armário grupos que jamais, e digo jamais, tiveram qualquer aprendizado para o diálogo democrático e tampouco apreço pela democracia. Não são capazes de exercer o fino da arte que deve ser o guia ético de toda e qualquer democracia: o convencimento pacífico e, em caso oposto da impossibilidade de convencimento mediante o uso público da razão, a aceitação das diferenças em uma sociedade complexa e diversa como a nossa. Trata-se, por hipótese, de instrumentalização do aparato jurídico coercitivo, não obstante as possíveis boas intenções dos agentes do TRE-RJ envoltas em arbítrio e truculência, para coibir, calar e perseguir adversários políticos dada a miséria e mediocridade discursiva que os gorilas 2.0 em nossos tempos costumam aderir. Em última instância, cabe o alerta: o que está em jogo não é a defesa das boas práticas na disputa no mercado eleitoral, algo que todos nós defendemos. O que está sendo atacado é o próprio Estado Democrático de Direito e nada mais. E, o muito grave, por um braço do Estado que deveria justamente ser defensor intransigente dos valores do Estado Democrático de Direito.

Sobre os "denunciadores anônimos", as semelhanças com o colaboracionismo francês na Segunda Grande Guerra, onde cidadãos franceses pró-autoritarismo nazista denunciavam judeus, homossexuais, comunistas e tudo o que mais não coubesse no rótulo "'cidadão de bem" não é simples coincidência em minha perspectiva. Seja na Psicanálise ou na História, as lições não aprendidas se reiteram indefinidamente... até que sejam definitivamente solucionadas! O que é recalcado sempre retorna a assombrar o cérebro e os corações dos vivos.

Sem mais delongas, reproduzo relato que foi atribuído à professora Ana Poltronieri, coordenadora do curso de Licenciatura em Letras do Instituto Federal Fluminense. O relato refere-se ao dia de ontem:

Hoje, dia 05 de outubro de 2018, no final da tarde, a justiça eleitoral de Campos dos Goytacazes esteve no IFFLUMINENSE campus Campos Centro inspecionando os cursos de Licenciatura em Letras, em Teatro, em Geografia e em Ciências da Natureza. O motivo da visita dos fiscais da justiça eleitoral a esses cursos foi uma denúncia de que havia material político e manifestações de apoio e de repúdio de professores a determinados candidatos. 

Na minha longa carreira de magistério na educação básica e na superior, eu nunca passei por um momento tão triste e sombrio.  As salas onde damos aulas foram revistadas, assim como as coordenações, principalmente a de Geografia. Os fiscais da justiça eleitoral nos disseram que houve uma denúncia. Mais uma vez, a coragem de denunciar se faz por meio de um sujeito indeterminado, ou seja, não tem nome nem cara. Delatores, unam-se. Mostrem a cara. Sejam corajosos.  Que dia triste! 

Pai, afasta de mim este “cale-se”.  

Ana Poltronieri, coordenadora acadêmica do curso de Licenciatura em Letras do IFFLUMINENSE campus Campos Centro.


sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Tudo novo de novo? - Breves reflexões sobre a ação coletiva

Tudo novo de novo?* - Breves reflexões sobre a ação coletiva**

George Gomes Coutinho ***

Quando eu elaborava meu primeiro trabalho acadêmico dotado de algum fôlego, no caso minha primeira monografia na UFF/Campos no início deste século, tive a afortunada experiência de ser orientado pelo professor José Luiz Vianna da Cruz, uma das rochas fundamentais da sociologia e dos estudos sobre desenvolvimento regional entre nós. Muita água correu no Paraíba do Sul desde então. O professor José Luiz, daquela relação formal entre orientador e orientando de graduação, se tornou posteriormente meu amigo, colega de Departamento de Ciências Sociais e prossegue sendo um interlocutor/conselheiro. Tanto é que hoje em dia ouso chamá-lo simplesmente de “Zé” em uma demonstração singular de respeito e carinho que tenho por ele.

Voltando ao início deste século, minha monografia tinha por tema os movimentos sociais na universidade pública. O Zé, do alto de sua experiência, me apresentou uma questão logo no início de nossos trabalhos formulada de maneira simples e objetiva. Afinal, se estávamos falando de movimentos sociais, o que os move? Se a pergunta era sintética e elegante, a resposta (ou as respostas) me levou a trafegar pelas águas turvas das noites em claro. A pergunta do Zé tocava realmente no que era fundamental. Quais seriam os “móveis” da ação coletiva? Arrisco dizer que de lá pra cá parte de meus trabalhos foram tentativas de responder a essa pergunta de forma direta ou indireta e certamente parcela do conhecimento sistemático sobre a política enquanto fenômeno se estrutura nos arredores dos dilemas da ação coletiva.

Na conjuntura atabalhoada em que vivemos Aluysio Abreu Barbosa em uma conversa telefônica amistosa decidiu reencarnar a pergunta do Zé trazendo para o nosso contexto. Senti na pele que de fato as grandes questões não desaparecem. Elas se atualizam de acordo com as especificidades de cada momento histórico. Aluysio inclusive não me colocou “pouca coisa”. Ele nota, de forma correta, que os grandes movimentos coletivos brasileiros ocorridos desde o arrefecimento da ditadura civil-militar até 2015, perpassando o Fora Collor de 1992 e o junho de 2013 nas regiões metropolitanas do país, não são tudo farinha do mesmo saco. De fato não são. Todavia, vamos tentar ver o mínimo estrutural que os aproxima e o muito que diferencia estes grandes movimentos que tem a rua por cenário. Causando estranheza ao leitor, justamente o que os assemelha e os distancia envolve responder a pergunta do Zé: quais os móveis?

Teoricamente, de Karl Marx (1818-1883) a Mancur Olson (1932-1988), o que move grupos e classes que engendram ação coletiva, o “grande móvel”, é o interesse. É justamente o que aglutina e torna possível a ação coletiva e associativa dos sindicatos, movimentos sociais tradicionais, grupos de pressão, movimentos de massa, etc.. Seja a Associação Nacional de Rifles da América, o Greenpeace, O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo ou o pessoal da Tradição, Família e Propriedade. Coloquei exemplos tão discrepantes não tanto para causar desconforto ao leitor. Apenas quis demonstrar que estes grupos, a despeito do seu posicionamento no espectro político, se são de esquerda ou direita, progressistas ou conservadores, todos se agrupam em prol de algum interesse comum e compartilhado. A associação “reduz custos” que seriam simplesmente impossíveis para um indivíduo isolado e a ação coletiva visa permitir que se alcance um objetivo ou um conjunto de objetivos.

Antes de prosseguir, venho declarar minha discordância sobre a morte da política ou o que seria um processo de despolitização no Brasil contemporâneo. Eu concordo que exista um arrefecimento da política tradicional sem dúvida, algo que está na raiz da crise da democracia representativa no mundo. Não por acaso partidos, seja aqui ou na Europa, apresentam um déficit de legitimidade considerável entre seus eleitores. Porém, a política envolve tomar decisões dotadas de caráter vinculante como diria o alemão Niklas Luhmann (1927-1998). Portanto, se a morte é inevitável para tudo o que é vivo, a política é inescapável para todos(as) que vivem em sociedade. Decisões que tem impacto coletivo, seja sobre os parâmetros curriculares do Ensino Médio ou regras de tributação, são da natureza da política. Porém, há a mudança de agendas, novos temas emergentes e das formas de se fazer política, algo que retomarei adiante.

Prosseguindo, se os interesses demarcam a ação coletiva para gregos, troianos e baianos, não podemos ignorar a modulação fornecida pelos valores, visões-de-mundo, ideologias, elementos simbólicos, etc.. Neste ponto TFP e MST tem obviamente posicionamentos inconciliáveis sobre a questão agrária por exemplo. As agendas dos movimentos, a maneira pela qual os interesses se particularizam e dão robustez para a operacionalização da ação, são obviamente distintos. Contudo, temos momentos em que estes movimentos, de natureza mais particularizada, transcendem seu público de adeptos e simpatizantes atingindo a sociedade como um todo. A pauta originária de um grupo torna-se uma pauta consensual entre diversos grupos e classes. Olhemos para o movimento “Diretas Já” na longínqua década de 1980.

Nas “Diretas” o contexto explica. Se a ditadura civil-militar jamais foi um consenso total na sociedade brasileira, o que redundou nos movimentos de resistência insurrecionais (luta armada) e civilistas (atuação nas instituições), é impossível não reconhecer que um regime que durou 21 anos não tenha gozado de legitimidade entre amplos setores da população. Todavia a ressaca produzida pelo “Milagre”, o cenário de hiperinflação galopante e pauperização, tornou o descontentamento incontrolável. Inclusive a atuação da grande mídia oligopolista, até então entusiasta de primeira hora ao golpe de 1964, deu sua contribuição e reverberou o processo de perda de legitimidade dos militares no poder.  Neste ponto da história o que era um movimento perene em prol do retorno dos ritos democráticos de uma contra-elite minoritária (partidos de esquerda, intelectuais e artistas), se tornou um movimento de massa que transcendeu classes e grupos. Só o amplo consenso formado explica em um mesmo palanque gente como Ulisses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva.

O movimento da “Diretas” foi um movimento de massa cujo interesse era o de reinstituir a normalidade democrática. Considero equivocado considerar a “Diretas” um movimento de esquerda, embora que atores tradicionais deste espectro político, o que inclui sindicatos, partidos e movimentos sociais, tenham dado suporte inegável ao que vimos no Brasil na década de 1980. Os atores tradicionais auxiliaram na fisionomia do movimento de massas inclusive pelo acúmulo de expertise em se manterem organizados, a despeito de terem atuado durante boa parte do século XX na ilegalidade ou semi-legalidade. Igualmente forneceram um discurso, muitas vezes contundente, expresso em palavras de ordem onde a crítica da situação econômica era absolutamente oportuna para o momento.

Também o “Fora Collor” na década de 1990 mantém alguns dos aspectos que citei acima:1) transcende a crítica de uma contra-elite minoritária; 2) encontra apoio e reverberação da mídia oligopolista; 3) é dotado de uma fisionomia de esquerda pelo protagonismo de certos atores tradicionais, embora que o consenso naquele momento quanto ao impeachment tenha abarcado diversos grupos sociais para além do espectro político mencionado. 

A questão é que o mundo mudou muitíssimo de lá para cá. A chamada “revolução informacional”, que se potencializa a partir do final da década de 1990, já inclui novas formas de comunicação e interação na sociedade. Ao mesmo tempo tivemos os anos do lulismo neste século XXI, onde os atores tradicionais da esquerda ingressaram nas instituições e tanto passaram a ser “vidraça” quanto tiveram sua atuação contestatória consideravelmente diminuída. Afinal, movimentos e partidos tornaram-se governo. Nesse ínterim novas pautas ganharam ainda mais corpo e possibilitaram o protagonismo de atores que não se sentiam plenamente contemplados pelos movimentos tradicionais de esquerda. Esse diagnóstico não é meu, boa parte da literatura sobre movimentos sociais aponta para esta questão. Aqui, dentre as novidades, falo do movimento ambiental, feminista, movimento negro, grupos LGBTT, etc.. A natureza, este agente difuso, ganha porta-vozes humanos. Jessé Souza (1960), sociólogo brasileiro, ironicamente chama este grupo de “classe média de Oslo”, brasileiros que adotam uma agenda ambiental e de sustentabilidade digna dos nórdicos.  E os afetos e a expressividade adquirem uma enorme relevância onde o clássico problema das diferenças materiais entre as classes sociais passa a ser secundário. Não por acaso o filósofo francês Luc Ferry (1951) aposta que a intimidade, as relações afetivas, é um tema amplamente mobilizador neste século XXI.

Um outro ponto, ao qual não canso de lembrar, é o da fadiga das democracias representativas liberais no mundo todo na nossa conjuntura. Devo este diagnóstico ao sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017). A alta financeirização das economias nacionais, processo que se inicia na década de 1970, torna os governos reféns diretos da pauta fornecida pelas grandes instituições financeiras. Em suma: o que prometem nas campanhas eleitorais não é efetivamente realizado inclusive por constrangimentos e acordos que moldam os orçamentos governamentais. Parte da crise de legitimidade da social democracia européia é explicada por este fator. Na esteira da fragilização dos partidos social democratas, os partidos tradicionais moderados sofrem por inércia. Portanto, a crise da democracia representativa liberal é seguramente também uma crise dos partidos e lideranças tradicionais, um problema que não é só brasileiro.

O junho de 2013 no Brasil se insere neste macro contexto absolutamente complexo. Não foram os atores tradicionais de esquerda que organizaram os movimentos. Pelo contrário. Em várias cidades brasileiras estes atores foram até mesmo hostilizados. Naquele momento muitos analistas ficaram atônitos. O que houve?

Junho de 2013 foi um dos maiores testes da capacidade de aglutinação coletiva das novas formas de comunicação e interação. Como vimos, é inegável o barulho causado. Naquele momento o slogan “Vem Pra Rua” ou o Movimento Passe Livre sintetizam uma pauta reivindicatória que envolveu desde o seu estopim, no caso a revogação do aumento do preço das passagens urbanas, até a crítica ao uso de dinheiro público para as grandes obras que seriam necessárias para a realização dos mega-eventos vindouros. Tanto a Copa do Mundo quanto as Olimpíadas do Rio estavam na lista de prioridades do Estado brasileiro.

Notem que por mais que tenham se apresentado como “movimentos pulverizados”, haviam pautas reivindicatórias que apontavam tanto para o direito de mobilidade urbana quanto implicavam, mesmo que de forma um tanto inábil, na tentativa de influir no processo de tomada de decisão sobre os orçamentos governamentais. Em contraposição ao investimento nos mega-eventos os manifestantes clamavam, mesmo que sem muita precisão, por mais investimentos em saúde e educação. Neste ínterim, até pelo caráter inovador, os grupos políticos tradicionais não conseguiram interlocução ou mesmo captar as demandas apresentadas, dotá-las de objetividade política.

Ali abriu-se uma caixa de Pandora. Os métodos de mobilização, até então jamais vistos no cenário tupiniquim, foram depois largamente utilizados. Inclusive há semelhanças de métodos com o que ocorreu aqui e na Primavera Árabe: redes sociais, novas formas dinâmicas de interação, etc..

Cabe notar que os movimentos da chamada “nova direita” no Brasil se utilizaram depois fartamente tanto da estética de mobilização dos grupos de junho de 2013 quanto até mesmo de nomenclaturas e slogans. Afinal, o “Movimento Passe Livre”, o MPL, de alguma inspirou o “Movimento Brasil Livre”, não por acaso MBL. O slogan “Vem Pra Rua” tornou-se um movimento homônimo.

Nesse ínterim uma pletora de questões aflorou. Trata-se de uma constelação de fatores. Aqui a frustração econômica causada pelo término da era das commodities implicou uma enorme dificuldade de manutenção das políticas econômicas e sociais do lulismo continuadas por Dilma Rousseff. Este é um ponto crucial para entendermos a insatisfação que gerou os movimentos de massa pós-2013. Para além disso os movimentos da “nova direita” passam a vocalizar demandas e perspectivas de grupos da sociedade que até então não encontravam representantes dotados da capacidade de síntese necessária e com enorme habilidade em utilizar as redes sociais. Não quer dizer que não existissem as visões-de-mundo mais conservadoras. Apenas não haviam encontrado grupos que vocalizassem esses sentimentos difusos.

Nesse ínterim, já desde ação penal 470, o “mensalão”, a grande mídia monopolista engrossou de forma sistemática a narrativa que associou o Partido dos Trabalhadores de forma inequívoca, por vezes quase exclusiva, ao fenômeno da corrupção. Por outro lado, no âmbito da política tradicional, Dilma lidou diretamente com um governo dotado de capacidade decisória limitada e um Congresso Nacional rebelde liderado por Eduardo Cunha.

O que tornou os movimentos de massa diferenciados não foi tanto o uso das táticas de comunicação novas já experimentadas em 2013. O que há de novo é o conteúdo apresentado e pela primeira vez desde a redemocratização a ausência de atores ou pautas usualmente apresentadas pela esquerda tradicional. Até 2013 encontrávamos pautas de reivindicação inclusivas, de ampliação direitos. De 2013 em diante não houve sequer a fisionomia de esquerda. Neste ponto do diagnóstico concordo plenamente com Aluysio que me chamou a atenção para este fato.

Contudo é difícil dizer, conforme afirmei anteriormente, que a “política morreu”. Outros grupos, dotados de alta capacidade de negociação jamais arrefeceram. As mudanças que vivenciamos de 2016 para cá na legislação social são obra de grupos que se não redundam em grandes movimentos de massa, até pela natureza silenciosa com que atuam, são tão ou mais eficientes no diálogo com o sistema político tradicional. São grupos de pressão dotados de alto poder de fogo oriundos das 6 mil famílias que concentram boa parte da riqueza nacional. Promovem uma ação coletiva menos visível dado o convencimento promovido pelo dinheiro. Neste sentido na atual conjuntura é desnecessário inflar grandes movimentos da nova direita nas ruas e lidamos com uma contra-elite, pelo flanco esquerdo, profundamente fragilizada e carente de legitimidade.

O que ficará disso tudo? Como já disse Wanderley Guilherme dos Santos (1935), um dos decanos da ciência política brasileira, “o futuro não é materialmente verificável”. O que temos certeza é que a revolução informacional das últimas décadas, se modificou o cotidiano das nossas sociedades, não poderia ter efeito muito diferente nas mobilizações coletivas. Estas, tal como outrora, permanecem guiadas por interesses sendo este o móvel aglutinador. Todo o restante sobre o amanhã ainda “não decantou”. Aguardemos.  Porém, os “móveis” da questão do Zé prosseguem.

* Uma confissão tardia, sincera e necessária neste 03 de dezembro de 2017. Tomei de empréstimo o título do "cantautor" brasileiro Paulinho Moska. Moska lançou em 2003 o disco e a canção "Tudo novo de novo" que inspirou diretamente a forma como batizei esse texto. Se todos somos um pouco ladrões, e creio que somos, espero que a minha condição de réu confesso pelo menos amenize a pena vindoura.

** Texto publicado originalmente  em 24 de novembro de 2017 no blog "Opiniões" do jornalista Aluysio Abreu Barbosa. O blog "Opiniões" é parte do grupo Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ. Disponível em: http://opinioes.folha1.com.br/2017/11/24/origem-da-serie-ruas-do-brasil-resumida-por-george-gomes-coutinho/


*** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

sábado, 11 de novembro de 2017

Butler: a bola da vez

Butler: a bola da vez*

George Gomes Coutinho **

A vinda da filósofa norte-americana Judith Butler (1956) no Brasil provocou reações que causariam perplexidade a qualquer habitante de uma comunidade que se pretenda civilizada. Afinal, a professora de Berkeley veio exercer seu papel de intelectual profissional. Butler não recomendou o estupro ou ameaçou alguém de morte. Não a vi fazendo apologia a torturadores. Não chutou uma imagem católica em rede nacional e tampouco teria ameaçado depredar terreiros de umbanda. Ela veio apresentar e discutir idéias, no formato de palestras, algo que seria tão natural quanto andar para frente nas democracias consolidadas. Mas, aqui a recepção contou com protesto na rua e o rechaço assinado por 360 mil pessoas contra sua presença.

O conceito de gênero, o grande tema da autora, nem penso que teria sido a única motivação da histeria de parte da direita totalitária brasileira. Na verdade, suspeito que Butler foi a bola da vez. Virão outros e outras caso não ocorra uma mudança cognitiva e valorativa em certos grupos. Explicarei minha perspectiva.

Lendo depoimentos em sites de notícias dos que consideram Butler persona non grata, destaco um que li no UOLNotícias em 07 de novembro na matéria assinada por Janaina Garcia: “Pouco importa se é a Judith Butler, porque ela poderia ser qualquer outra coisa". Diante disso me ocorreu imediatamente uma cena do documentário de 2012 “O Guia Pervertido da Ideologia” do também filósofo Slavoj Žižek (1949). Na cena, uma propaganda nazista alertava contra as “idéias degeneradas” propagandeadas por insidiosos judeus que colocariam em risco a família e o modo de vida alemão. Charles Chaplin (1889-1977) e Albert Einstein (1879-1955) aparecem na propaganda como exemplos de judeus igualmente “degenerados” e perigosos.

O que une Chaplin, Einstein e Butler no contexto de intolerância nazista ou no Brasil contemporâneo odiento? Os três personagens, muito diferentes entre si, corporificam representações de mundo que simplesmente não deveriam existir e precisam ser eliminadas na ótica de determinados grupos. São “portadores de idéias”. E idéias são desconfortáveis sempre que revelam algo oculto ou indesejado acerca das justificações que visam manter o status quo.

* Texto publicado em 11 de novembro de 2017 no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Normalpatas

Normalpatas* 

George Gomes Coutinho **

Os conceitos são instrumentos de análise por vezes sintéticos e sempre discursivos que tentam reduzir a real complexidade de um fenômeno para explicá-lo. Só não são estáticos. Tem sua origem, desenvolvimento e metamorfoses. Em sua estrada podem se tornar mais precisos, ganham nuances e, em alguns casos, até mesmo negam seu significado original. Vejamos o caso de “normalpatas”.

Luiz Ferri Barros, fundador da sociedade de Psicóticos Anônimos de São Paulo, em 1999 lançou pela editora Imago o seu “Os Normalpatas, não matei Jesus e outros escritos”. Barros provavelmente é o pai do termo “normalpatas”. Em seu livro, entre ironias, reflexões densas e bom humor, ele definiu os “normalpatas” como aqueles que excedem os limites daquilo que a própria sociedade determina por “normalidade”. Mais cristãos que Cristo seriam estes os heróis encarnados da moral idealizada e beatos devotados da lei. Porém Barros observa acidamente que os “normalpatas” não são tão retos quanto pretendem demonstrar. Só não sofrem o estigma daqueles que seriam usualmente chamados de loucos.

João Pereira Coutinho, escritor português e doutor em ciência política, apresentou em 2009 no jornal Folha deSão Paulo sua interpretação do que seria o “normalpata”. O caminho de Coutinho envereda na crítica ao “Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder” (Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais em tradução livre). Doravante chamaremos o manual de DSM e o autor dialogou com a quarta versão do texto.

De fato o DSM-IV classifica uma enorme gama de comportamentos como “desordens mentais”, o que inclui até mesmo assaltar a geladeira, e projeta uma noção de indivíduo asséptica e padronizada. Cria um molde de “normalpatas” sem alma. O autor português defende legitimamente a diversidade humana contra esta padronização. Mas, ele pesa a mão conservadora: em defesa da diversidade as intolerâncias, preconceitos e afins seriam uma resposta subversiva e autêntica contra a padronização. No final Coutinho apenas defende a dominação mais a seu gosto do que a da medicina.

* Texto publicado em 14 de outubro no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 20 de agosto de 2017

Unite The Right e a direita

Unite The Right e a direita*

George Gomes Coutinho *

A pequena cidade de Charlottesville, situada no estado da Virgínia nos EUA, adquiriu incontestável relevância na mídia mundial de uma semana para cá. Resumidamente, uma marcha intitulada “Unite The Right” (doravante Unir a Direita) agrupou grupos como a Ku Klux Klan, supremacistas brancos em geral e neonazistas norte-americanos para protestar contra a retirada de uma estátua do general confederado Robert E. Lee. Para além da inegável comoção causada pela violência explícita e as reações de perplexidade diante do racismo expresso pelos partícipes do movimento “Unir a Direita”, o choque diante das cenas que remontam à tragédia da Alemanha hitlerista causou vertigem no imaginário político. E entre nós no Brasil politicamente polarizado muita besteira foi ventilada.

Antes, cabe advertir que “direita” e “esquerda” são conceitos classificatórios que decerto reduzem a complexidade diante do fenômeno que querem situar. Mas, nem por isso são denominações inúteis.

Voltemos com uma questão após a advertência: a direita não é um bloco coeso, tal como a esquerda também não é. Há dissensos, reinterpretações, disputas, etc.. As diferenças de posicionamentos de um determinado grupo sobre uma série de temas e problemas coletivos, o que inclui as possíveis soluções, é o que explica o posicionamento mais para a ponta “extrema” ou para o “centro” no espectro político. Contudo, o que une todos em um mesmo lado é a defesa compartilhada e consensual de uma diretriz ou valor essencial. Só assim é possível situarmos em um mesmo lado do espectro político um gigante intelectual da estatura de José Guilherme Merquior (1941-1991) e Jair Bolsonaro (1951). Ambos de direita no que tange a defesa inegociável da propriedade privada.

Todavia, liberais ortodoxos ou progressistas, fascistas, democratas cristãos, etc.,  divergem sobre todo o restante: políticas sociais, direitos humanos, respeito às minorias, porte ou não de armas. Sequer o livre mercado é uma pauta pacífica. Assim, uma direita hidrófoba, autoritária e racista é plenamente factível. Charlottesville apenas nos lembrou disso.

* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 19 de agosto de 2017.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 8 de janeiro de 2017

O suicídio como síntese da sociedade

O suicídio como síntese da sociedade* 

George Gomes Coutinho **

A virada de 2016 para 2017 nos brindou com mais uma tragédia. O assassinato de uma família seguida do suicídio do próprio autor em Campinas, SP. Em um breve diálogo com um amigo que milita na medicina o diagnóstico psiquiátrico foi sintético: um surto psicótico. Um outro reforça o ato como crime passional. Porém, irei me ater ao “testamento” do suicida/assassino.

Cartas de suicidas são fundamentais para compreendermos o incompreensível. Permitem trafegar pelo consciente, aquilo que se apresenta como o conjunto de motivações explícitas e, de maneira menos óbvia, vislumbrar as entrelinhas sombrias da psique de quem decide como último ato tirar a própria vida. E a carta de Sidnei Ramis de Araújo, o “homem de bem”, diz muito mais sobre a nossa sociedade do que se pode supor. Vivemos em uma sociedade pautada pela vingança. Um ato individual pode ser uma síntese cristalina de um momento histórico.

A pauta política apresentada pela carta apresenta o seguinte conjunto de elementos nada estranhos para quem costuma ler os comentários nos sites das grandes agências de notícias: 1) A repulsa das práticas que defendem direitos humanos, embora que sem estes não seja possível o Estado Democrático de Direito; 2) O moralismo como valor inquisitorial onde se identifica a corrupção como o grande elemento a explicar a débâcle brasileira contemporânea; 3) O ódio especialmente direcionado para a classe política sedenta por “riqueza e poder”, embora não se encontre ninguém deste grupo social dentre os 10 mais ricos do Brasil; 4) A misoginia. Neste último ponto, em uma breve análise de conteúdo, a palavra mais utilizada na carta foi o adjetivo “vadia” no singular e no plural. Isto depois de pronomes e artigos inocentes.

Sidnei acreditava representar os “trabalhadores honestos” e em nome destes partiu para seu ato derradeiro. Vingou seus representados disparando contra uma família que também era sua. Dentre os mortos, no total de 13 pessoas, incluindo o próprio assassino, somam-se 09 mulheres. As tais odiadas “vadias”. O ato materializa em violência concreta a violência simbólica tolerada no espaço público e vista como “direito de opinião” por seus porta-vozes. Sidnei aprendeu de maneira exemplar o discurso de ódio que lhe ensinaram. O problema é que ele não foi o único.

* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 07 de janeiro de 2017


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes