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sábado, 22 de junho de 2024

SOBRE PRESTES, BRIZOLA E LULA - Breno Altman

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SOBRE PRESTES, BRIZOLA E LULA** 


Breno Altman***


A esquerda brasileira, em mais de cem anos, desde a greve geral de 1917, produziu somente três grandes lideranças nacionais, capazes de ter suficiente apoio para assumir protagonismo e comandar o país.

A primeira delas, a mais heroica, foi Luiz Carlos Prestes, principal figura dos levantes tenentistas. Seu período de real influência foi dos anos 20 até os 60. Chefiou a coluna que levaria seu nome, conduziu a insurreição de 1935, passou quase dez anos preso e, apesar da clandestinidade e do clima anticomunista da guerra fria, além dos graves erros cometidos por seu partido e por si mesmo, desempenhou papel de relevo até o golpe de 1964. Não é à toa que encabeçava a primeira lista de cassação da ditadura.

A segunda foi Leonel Brizola. Por seu papel na crise de 1961, quando era governador do Rio Grande do Sul e comandou a resistência que derrotaria o golpe militar em andamento contra a posse de João Goulart, vice do renunciante Jânio Quadros, transformou-se em referência central do trabalhismo, a partir de uma perspectiva nacional-revolucionária que levaria amplas frações dessa corrente, fundada por Getúlio Vargas, ao campo de esquerda. Era a grande alternativa eleitoral das forças populares para o pleito de 1965: em boa medida, a reação militar-fascista se deu para barrar sua caminhada. Desde o retorno do exílio, em 1979, foi perdendo protagonismo, particularmente após 1989, quando não teve votos para passar ao segundo turno das primeiras eleições presidenciais desde o golpe de 1964.

A terceira é Luiz Inácio Lula da Silva. Ao contrário de seus antecessores, chegou à Presidência da República. Filho do movimento operário e popular que emergiu nos anos 70, seu líder incontestável, logrou forjar base social e eleitoral para, pela primeira vez na história brasileira, levar a esquerda e um partido orgânico da classe trabalhadora à direção do Estado.

Antes que alguém reclame, a nominata não inclui Getúlio Vargas porque o mentor do trabalhismo não era nem nunca se reivindicou de esquerda. Sua trajetória é a de um chefe do nacionalismo burguês que, em seu segundo mandato presidencial, rompeu com os setores hegemônicos da classe à qual pertencia e deu curso a uma inconclusa transição para o campo anti-imperialista.

Tampouco inclui Jango, pelas mesmas razões.

Também Dilma Rousseff está fora dessa tríade. Mesmo eleita e reeleita presidente, sua ascensão, em que pese biografia de bravura e dedicação, é essencialmente expressão do projeto construído por Lula e o PT.

Retomando o fio da meada: apenas três protagonistas de esquerda em cem anos.  Não seria motivo suficiente para, apesar de críticas e discordâncias eventualmente procedentes, o conjunto das forças progressistas tratar esses personagens com a prudência devida aos nossos maiores patrimônios?

Mesmo que os listados tenham distintos alinhamentos ideológicos, é inegável seu papel comum, cada qual em um ciclo determinado, de simbolizar a esperança e a unidade do povo contra a oligarquia. Mais que isso, a possibilidade real de derrotá-la.

Dos três, apenas Lula segue vivo e em função.

Como os demais, é nossa dor e nossa delicia. Sofremos com possíveis vacilações e erros, lamentando e até nos revoltando contra certas decisões que parecem desastrosas, além de apoiarmos e aplaudirmos tudo o que fez de positivo. Mas, como cada um de seus antecessores, representa o que de melhor o povo brasileiro conseguiu produzir em sua longa luta emancipatória.

Por essas e outras, defender Lula contra os inimigos de classe é tão importante. A burguesia o ataca com tamanha intensidade exatamente pela esperança que representa junto à classe trabalhadora. Porque ele continua a expressar o caminho mais visível para os pobres da cidade e do campo se imporem sobre os interesses oligárquicos.

Quem não consegue entender isso, e se julga de esquerda, deixa-se paralisar pelo sectarismo, vira as costas para a história e, infelizmente, joga o jogo que a direita joga.

* Imagem disponível em: https://teoriaedebate.org.br/2023/04/14/a-esquerda-brasileira-e-a-questao-democratica-parte-2/, acesso em 22 de junho de 2024.

** Publicado no perfil do "X" pelo autor em 22 de junho de 2024: https://x.com/brealt/status/1804353404581327188. Republicado aqui no blog com autorização do próprio Breno Altman

*** Breno Altman é jornalista profissional. Fundou em 2008 o portal Opera Mundi. Neste ano de 2024 está lançando o livro "Contra o Sionismo" pela Alameda Editorial.

terça-feira, 28 de setembro de 2021

O que “Camarada”, de Jodi Dean, nos ensina sobre a desorientação da esquerda brasileira?


O que “Camarada”, de Jodi Dean, nos ensina sobre a desorientação da esquerda brasileira?

Paulo Sérgio Ribeiro

O mês de setembro testemunhou uma manifestação da extrema direita que tanto reflete a inviabilidade de Jair Bolsonaro na corrida presidencial como confirma que a base social do bolsonarismo adquiriu moto-próprio para rebaixar o teto da nossa imaginação política em um eventual cenário de vitória da esquerda (ou centro-esquerda) em 2022. Este apontamento aparenta ser consensual dentre analistas mais argutos da conjuntura nacional. Todavia, ao olharmos com maior relevo para o ato realizado em 12 de setembro e, mais recentemente, para a escaramuça envolvendo um ator com posicionamento coerente na construção de nossa democracia – José de Abreu – e a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP)[1], adentramos numa zona nebulosa da disputa de ideias que organiza o campo progressista.

O Movimento Brasil Livre (MBL) e o movimento “Vem pra Rua Brasil” convocaram atos contra Bolsonaro em São Paulo e noutras capitais prometendo reunir sem sectarismo diferentes atores políticos para tal ordem do dia. Porém, no seu principal palco, a Avenida Paulista, não foi surpresa o protesto ter sido uma deixa para o “Nem Bolsonaro, nem Lula”[2], reforçando pois o antipetismo como a corrente de opinião duradoura da fração protofascista dos setores médios, assim como um recurso sempre à mão para uma direita liberal travestida de “terceira via” em sua busca inglória por um presidenciável capaz de vocalizar a falsa simetria entre um democrata autêntico, Lula, e um indigente em todos os sentidos que a ditadura civil-militar nos legou.

Fato é que os atos de 12 de setembro foram um verdadeiro fracasso, servindo tão somente para devolver o MBL e o Vem Pra Rua à sua condição de idiotas inúteis do conservadorismo brasileiro, que, não obstante, continua sendo a esfinge que nos ameaça devorar. Se no dia 07 de setembro, os partidos da centro-esquerda e os movimentos populares puderam – com certas vacilações táticas, é verdade – contrapor-se à malta verde-amarela que se impôs em número expressivo na capital paulista, no dia 12 ocorreriam iniciativas que, no mínimo, demonstram ser distante a tão sonhada unidade de ação no campo progressista: a deputada estadual Isa Penna (PSOL-SP) e o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) emprestarem sua voz em um evento cuja estética e propósitos são inconciliáveis com a própria causa antifascista que seus partidos historicamente encarnam.

Não entro no mérito das motivações – verbalizadas ou não – de tais parlamentares. Afinal de contas, eles respondem a uma disciplina partidária e esta deverá ser aplicada pelas respectivas direções dos partidos. Em bom português: PSOL e PCdoB que assumam os seus “BOs”. Tento avaliar apenas como esse constrangimento evidencia um estado de desorientação (e de omissão?) da esquerda brasileira diante da tensão entre socialismo e liberalismo que perpassa as lutas pelo monopólio do poder social, ganhe tais concepções de mundo as roupagens que houver.

Ora, se a alegação de Isa Penna de que é necessária uma interlocução com pessoas comuns de perfil direitista mesmo em manifestações públicas da extrema direita[3] e de Orlando Silva, que atribuiu aos seus críticos a pecha de “gabinete do ódio” da esquerda[4] pareça, em princípio, razoável por figurar uma tentativa de construir pontes a partir dos valores de uma esquerda que aceita com resignação a centralidade da luta institucional, há em suas posições a premissa equivocada de que a disputa por hegemonia corresponda à busca de uma linha média entre adversários que não são apenas adversários, mas inimigos intransigentes na luta de classes.

Admitir tal intransigência em sua positividade, claro, requer senso de proporção diante do efetivo poderio que seus contendores disponham. Definitivamente, este atributo da vocação política faltou a José de Abreu ao fazer um “retuíte” de uma mensagem violenta endereçada a Tabata Amaral, que também se fez presente na Avenida Paulista em 12 de setembro. Não há como negligenciar as implicações éticas de um homem intimidar uma mulher. José de Abreu fez merda e não tardou a reconhecê-lo ao afirmar, em entrevista concedida à pedagoga e ativista feminista Lola Aronovich, que pedirá desculpas publicamente à Tabata Amaral[5].

Por óbvio, Tabata Amaral não teria por que deixar por menos. Não só notificará o ator na Justiça[6] como maneja desde então o incidente para fazer de um problema concreto – o machismo dentre homens de esquerda – o mote para investir em um discurso vazio: superar a “polarização” entre centro-esquerda e centro-direita que, conjugado ao imperativo moral da denúncia da violência política calcada no sexismo, torna-se um belo estilingue para a direita liberal que se apropria dos clichês das lutas identitárias para dar um verniz civilizatório à sua agenda regressiva.

Doravante, creio ser um desserviço enxergar nesse episódio um tamanho maior do que ele tem por dois motivos autoevidentes:

1.   José de Abreu nunca esteve à venda e não precisa ser pautado moralmente por uma preposta do capital financeiro que comove a esquerda “namastê”;

2.   Em relação a esta circunstancial oposição de direita ao Governo Bolsonaro, a realidade brasileira subverte a máxima de Carl Schmitt: o inimigo do meu inimigo nem sempre é meu amigo.

Dada a impossibilidade de seguir cegamente a máxima schmittiana, podemos lembrar aqui das lições de Jodi Dean[7] sobre uma relação política que tenha por fundamento a camaradagem. Para Dean, qualquer um, mas nem todo mundo, pode ser camarada:

 

A noção de que qualquer um, mas nem todo mundo, pode ser um camarada reforça o modo pelo qual “camarada” dá nome a uma relação que é, ao mesmo tempo, uma divisão. A camaradagem tem como premissa a inclusão e a exclusão: qualquer um, mas nem todo mundo, pode ser um camarada. Não é uma relação infinitamente aberta ou flexível: trata-se de uma relação que pressupõe divisão e luta. Existe um inimigo. Mas, ao contrário da descrição clássica de Carl Schmitt do político em termos da intensidade do antagonismo entre amigo e inimigo, a camaradagem não diz respeito ao inimigo. O fato do inimigo, da luta, é a condição ou o cenário da camaradagem, mas não determina a relação entre os camaradas. Camaradas são aqueles que se encontram do mesmo lado da divisão. Em relação a essa divisão, eles são o mesmo. Sua condição comum é a de se encontrar do mesmo lado. Dizer “camarada” é anunciar um pertencimento, e a condição comum de estar do mesmo lado (DEAN, 2021, p.106).

 

Isa Penna, Orlando Silva e José de Abreu cometeram erros, mas não tenho por que deixar de reconhecê-los como camaradas. Já a misoginia que se volta contra Tabata Amaral  sem dúvidas, execrável  não a torna necessariamente uma “aliada” na longa luta travada contra os donos do poder.



[1] Folha de S. Paulo. “Se encontro na rua, soco até ser preso”, retuitou José de Abreu. Edição de 24/09/2021. Disponível aqui.

[2] El País. O Brasil que não quer Bolsonaro nem Lula consegue um apoio tímido nas ruas. Edição de 12/09/2021. Disponível aqui.

[3] Revista Fórum. Isa Penna: Não tenho nenhuma ilusão de construir uma nova sociedade com o MBL. Edição de 11/09/2021. Disponível aqui.

[4] Diário do Centro do Mundo. Orlando Silva defende Tico Santa Cruz e reclama de “dois” gabinetes do ódio. Edição de 13/09/2021. Disponível aqui.

[5] Fala Lola Fala. Live com Zé de Abreu sobre seu machismo. Disponível aqui.

[6] Isto é. Tabata Amaral decide notificar José de Abreu na Justiça após publicação. Edição de 22/09/2021. Disponível aqui.

[7] DEAN, Jodi. Camarada. Um ensaio sobre pertencimento político. São Paulo: Boitempo, 2021.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Quem me colonizou? ou: os ouvintes de Rude Cruz

 

Fonte: MPLAFER.net.

Quem me colonizou? ou: os ouvintes de Rude Cruz*

* Publicado originalmente em Revista Contemporartes.

Esther de Souza Alferino[i]

Chamarei este escrito de uma tentativa ensaística de traduzir o que foi minha criação religiosa. Acredito que tentativa ensaística é um termo generoso demais para o que virá a seguir, mas não consigo encontrar nada melhor no momento. Outra coisa que pode estar passando pela mente do leitor é por que minha criação religiosa teria alguma relevância para alguém além de mim mesma. Tentarei justificar, e peço a generosidade do leitor, pois é a primeira vez que escrevo algo que se pretende acadêmico assim, em primeira pessoa, e ademais, para falar de mim mesma.

Eu nasci e cresci crente, evangélica, protestante, os nomes eram variados durante a minha infância, e ainda são. Mas eu não faço parte daqueles que têm uma história de conversão recente na família, eu sou a quarta geração de pessoas nascidas protestantes históricas. Originalmente presbiterianos, mas quando eu cheguei já metodistas. Isso remonta dos primeiros anos do século XX, primeiros mesmo, bem no começo do século, quando meus bisavós maternos, Palaio e Adelia, se converteram em alguma igreja presbiteriana, talvez da zona rural, talvez já na área urbana de Itaperuna, não sei exatamente. Minha avó materna, Drucila (nome peculiar, porém bíblico) nasceu em um lar cristão protestante, e foi assim que ela criou seus oito filhos que permaneceram vivos, duas meninas morreram ainda bebês, não sei se chegaram a ser batizadas, porque tanto a igreja presbiteriana quanto a metodista batizam crianças, bem diferente de outras tradições protestantes, e essa é uma das coisas que no senso comum pouco se sabe.

Mas por que tudo isso teria alguma relevância para além do meu núcleo familiar? Eu acredito ter, porque o Brasil não foi e não é apenas uma colônia portuguesa católica. Há quem tenha sido colonizado de outra forma, por outros, e isso também faz parte da História, com “h” maiúsculo que nos forma enquanto nação.

Pierre Bourdieu (2002), o sociólogo francês, escreveu sobre o estudo de trajetórias nas Ciências Sociais, em uma tentativa de afastar tais estudos do conceito de biografia presente no senso comum, onde a vida segue um curso linear, em uma sequência de acontecimentos que obedecem ordem lógica e cronológica. Para uma análise sociológica, Bourdieu propõe que o pesquisador organize os fatos de maneira inteligível, e que o agente pesquisado seja considerado em sua totalidade, sujeito com nome próprio, que perpassa por diferentes campos. Mas nesse caso a pesquisadora sou eu, e a trajetória é a da mina família, seria isto possível?

Já Paulo Renato Guérios (2011) traz o conceito de história de vida, onde o sujeito pesquisado oferece sua própria perspectiva, geralmente por meio de uma entrevista concedida ao pesquisador.

Cada ator histórico participa, de maneira próxima ou distante, de processos de dimensões e níveis variáveis, do mais local ao mais global. Não existe portanto hiato, menos ainda oposição, entre história local e história global. O que a experiência de um indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma modulação particular da história global. Particular e original, pois o que o ponto de vista microhistórico oferece à observação não é uma versão atenuada, ou parcial, ou mutilada, de realidades microssociais; é […] uma versão diferente. (REVEL, apud. GUÉRIOS, 2011, p. 16).

Recorrendo à citação acima, e, mais uma vez, contando com a generosidade do leitor, arrisco aqui propor uma apresentação do meu contexto religioso familiar, em uma tentativa de, com isso, gerar uma reflexão sobre o Brasil que vai além do catolicismo, em sua formação. Não teremos aqui espaço para uma análise aprofundada do que estou chamando de colonização protestante histórica do Brasil do século XIX e início do XX, mas o objetivo deste escrito ensaístico é de provocação, para que se possa pensar em análises aprofundadas de trajetórias de vida, no sentido bourdiesiano, de sujeitos que não foram catequizados por jesuítas, franciscanos, ou qualquer outra ordem enviada ao país para salvar nossas almas, mas que foram catequizados por calvinistas, wesleyanos, arminianos, e que também compõe o Brasil profundo, o Brasil rural, o Brasil urbano desorganizado, do interior e das capitais, que fazem parte de gerações que nunca rezaram uma Ave Maria sequer.

Daqui, deste lugar de quem viveu essa outra colonização que neste espaço me proponho a brevemente narrar, recorro a Gilberto Velho (1978), para, mais uma vez salientar que o que está diante dos nossos olhos, neste caso, as famílias crentes há gerações, não estão necessariamente sendo vistas com curiosidade sociológica.

O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico mas, até certo ponto, conhecido. No entanto, estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismos como fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente. (VELHO, 1978, p. 126, grifos do autor).

Dito tudo isto, irei reproduzir abaixo um texto originalmente publicado em meu blog pessoal, espaço onde escrevo livremente sobre qualquer tema que me cause inquietação. Manterei o texto exatamente como foi publicado em 17 de novembro de 2020, às vésperas de minha defesa de mestrado, com todos os termos não ortodoxos, pois acredito que mantê-lo assim será a maneira mais fidedigna de contemplar o ser que sou, em todos os meus aspectos e por todos os campos pelos quais circulo. Ser social, que carrega nome próprio, ser biológico, ser individual, ser histórico, ser político.

O texto foi escrito em contexto de eleições municipais, de indignação com o campo político com o qual me identifico ideologicamente, o campo da esquerda progressista, e sua incapacidade, na minha visão, de dialogar com colonialidades outras, que não as suas próprias.

Quem me colonizou? ou: os ouvintes de Rude Cruz[ii]

Acho que estou finalmente na última semana da escrita da minha dissertação de mestrado, e, depois de uns longos minutos encarando a tela com as páginas já escritas, eu fiquei querendo pensar em outra coisa por um momento. A questão é que eu não sei mais no que pensar. Não faço a menor ideia. Eu estudo o que estudo já há alguns anos, com diferente recorte, diferente objeto, mas com a mesma temática: os crentes pentecostais brasileiros.

Eu poderia agora pensar no resultado das eleições de domingo, eu poderia pensar na pandemia que não sei quando nem se vai acabar um dia, poderia pensar que sexta-feira tenho análise, e que tenho muita coisa pra falar, como sempre tive, minha vida é um eterno falar demais, poderia pensar, sei lá, que está ventando muito e parece que vai chover. Mas eu não consigo tirar da minha cabeça que dentro de alguns dias vou defender as páginas que escrevi como se estivesse lutando pela minha vida. É exagerado e dramático, mas eu sou exagerada e dramática, dizem que é culpa do meu signo, o que me faz pensar por uma fração de segundo que meu aniversário é mês que ve4m e que em poucos dias o sol vai entrar em sagitário, e eu não faço ideia do que isso significa, mas vou aceitar a culpa dele pelo meu exagero e drama.

Eu poderia pensar em tudo isso que já falei, mas ainda assim estaria pensando nos crentes pentecostais brasileiros, porque esse país não funciona mais da mesma forma e isso também tem a ver com eles, e nas eleições de domingo eles foram em peso votar e porque tudo isso faz parte de quem somos enquanto nação, e eu pareço uma obcecada (talvez eu seja) e não retiro essas pessoas de nenhuma equação. Acho que o fato de que vou tentar ser “dotôra” logo depois da defesa do mestrado, e que vou seguir querendo analisar os pentecostais brasileiros tem a ver com tudo isso. Imagina minha ousadia de querer ser doutora?! Se eu fosse o resto do mundo estaria rindo da minha cara agora, mas eu não sou o resto do mundo, então vou dar ao mundo minha cara a tapa pra estar nesse lugar também, o lugar dos doutores, o lugar que me parece tão claramente não ser meu, mas que eu vou teimar em tentar. Ao menos tentar. Talvez isso também seja culpa de sagitário, sei lá.

Hoje cedo eu li um texto do Anderson França[iii], esse também sagitariano desajustado, tão diferente de mim, mas que me traduz em tantos momentos. Ele nem sabe que eu existo, mas ele me traduz. Ele falava sobre a colonização, não a dos portugueses (que inclusive ele vê melhor agora em seu exílio em Portugal), mas a colonização missionária protestante, que dá à pessoa crente outra visão de mundo, de país. Eu também sofri essa colonização. Não foi a Europa católica que me colonizou, mas foi a ética protestante, a doutrina histórica britânica, os europeus reformados que formaram minha identidade de colonizada. Eu sei muito pouco sobre o Brasil católico, assim como pontuou Anderson. Eu sou fruto de uma mistura de metodistas e presbiterianos, daqueles roxos mesmo, que levam os cânones junto da Bíblia e do hinário, claro. Eu nunca rezei um terço, não sei bem o que é um rosário. Lá em casa a gente cantava Vencendo vem Jesus, e nunca fizemos sinal da cruz. Eita, rimou, que cafona.

A minha forma de ser colonizada no Brasil, na América Latina, é muito estranha aos outros. É tão estranha que as outras esferas da sociedade ignoram que não fomos colonizados da mesma forma, e que, portanto, não pensamos nem agimos da mesma maneira.

Assim como os colonizados pelos televangelistas pentecostais estadunidenses, gente empreendedora, liberal na economia e conservadora nos costumes, que trouxe pra esse país não apenas o dom de línguas e o batismo no Espírito Santo, mas também a Teologia da Prosperidade e a linguagem de mercado. Eles também colonizaram, especialmente os pobres, especialmente os sem perspectiva e sem amparo estatal, especialmente os marginalizados, excluídos, da roça e do subúrbio, da favela e dos rincões distantes aonde ninguém vai. Não deixam nem os índios em paz.

Esse país não aprendeu a lidar nem com aquela ética protestante que não existe mais, será que vai aprender a lidar com o colonialismo neopenteca[iv] que oferece argumentos e recursos discursivos para uma expectativa de mudança de vida que os partidos políticos não são mais capazes de oferecer? Será que as exxxquerdas[v] tão limpinhas e desinfetadas vão saber falar com a tia do reteté[vi] ou com a avó que acorda cantarolando Céu lindo Céu? Até agora parece que não.

Eu não sou neta de bruxa nenhuma que não conseguiram queimar, eu sou neta de crente, mulher plantadora de igreja[vii], que equilibrava a criação de oito filhos com seu evangelismo simples e direto, mas muito eficaz. Não tente trazer os signos gramaticais das Laranjeiras[viii] pra quem foi colonizado de outra forma. Parem de achar que as pessoas são burras e bitoladas, que coisa mais feia e irritante.

Eu ando de saco cheio dessas exxxquerdas mais acéticas que os puritanos, ouvindo João Gilberto, mas também a nova MPB, claro, sem saber quem foi Luís de Carvalho, e nunca ouviu Rude Cruz, porque essas coisas de crente pra cima deles não, isso é lavagem cerebral. Ahhhh gente, faz favor, vai fazer a lição de casa, vai aprender o que é esse país e entender que ele vai muito além das nossas leituras eruditas.

Eu ando de saco cheio, mas a culpa deve ser do meu signo, assim o jovem místico me entende melhor.

Referências Bibliográficas:

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J; FERREIRA, M de M (Orgs) Usos e abusos da história oral. Trad. Glória Rodriguez, Luiz Alberto Monjardim, Maria Magalhães e Maria Carlota Gomes. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 183 – 191.

GUÉRIOS, Paulo Renato. O estudo das trajetórias nas Ciências Sociais: trabalhando com as diferentes escalas. In: Artigos, Campos 12(1): 9 – 29, UFPR, 2011.

VELHO, Gilberto. Observando o familiar. In: NUNES, Edson de Oliveira. A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 1 – 13.


[i] Cientista Social pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro

[ii] Disponível em <https://estheralferino.wixsite.com/meusite/post/quem-me-colonizou-ou-os-ouvintes-de-rude-cruz>

[iii] Anderson França é um escritor e ativista brasileiro, atualmente exilado em Portugal por receber ameaças de morte de grupos de extrema-direita brasileira.

[iv] Termo informal de tratar os neopentecostais, deixando claro que não há aqui intenção pejorativa.

[v] Termo informal e jocoso de falar do campo político de esquerda brasileiro, como forma de autocrítica, já que a autora se identifica como pertencente a este campo.

[vi] Termo comumente usado dentro do pentecostalismo brasileiro. Para mais informações consultar <https://seer.ufrgs.br/debatesdoner/article/view/96166>

[vii] Temo comumente usado no meio protestante para se referir a pessoas evangelizadoras, que iniciavam novas igrejas, geralmente chamadas de congregações.

[viii] Bairro do Rio de Janeiro conhecido por reunir pessoas do campo político de esquerda, em especial do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

domingo, 11 de abril de 2021

“Flores nas encostas de cimento”: o silenciamento e a tomada dos crentes de esquerda na política.

Fonte: Mídia Ninja.


“Flores nas encostas de cimento”: o silenciamento e a tomada dos crentes de esquerda na política*.
 

 

“E se as luzes nos roubassem as estrelas
E nosso brilho só nos mostrasse
A silhueta do que poderíamos ser
(…)
Para clarear o meu tormento
Como flores nas encostas do cimento”

 

(Marcelo Yuka)

 

* Publicado originalmente em Mídia Ninja. 

Fabio Py

Não é fácil traçar uma linha sobre qualquer grupo social religioso. É ainda mais difícil desenhar uma linha sobre um grupo sociorreligioso tão grande como os evangélicos, os quais nas últimas décadas cresceram e contabilizam 31% da população brasileira. Uma pesquisa dos estudos demográficos vem chamando a atenção dos analistas porque apontam que por volta de 2032, os protestantes-evangélicos devem se transformar no maior grupo religioso do Brasil. Esse dado vem causando certo alarme nos meios intelectuais, pois se tem a impressão de que essa parcela da população seja parte de uma nova formação talibã, ou seja, uma massa de religiosos dotados de pouco pensamento crítico e que obedecem como zumbis às lideranças religiosas persecutórias a pluralidade democrática.

Para problematizar essa descrição sobre o setor, produzida principalmente por setores das elites e/ou intelectuais, selecionei dois novos mandatos políticos de vereadores, que unem as experiências evangélicas e as pautas de crítica ao sistema capitalista. Antes de aprofundar este tema, farei uma breve recuperação histórica para ampliar a análise sobre a questão dos vínculos dos protestantes-evangélicos com os setores da esquerda, pois existe uma densa “operação de esquecimento, silenciamento” (Pollack) da memória do setor com os movimentos de questionamento da vida.

A operação de silenciamento das Revoltas Camponesas na origem dos evangélicos

Algumas correntes dos memorialistas entendem que as memórias coletivas são concebidas pelos sujeitos de forma aleatória, a partir dos sonhos, como uma apropriação psicologizante dos pensamentos sociais. Michael Pollack contraria tal concepção ao indicar que “os debates e as percepções das memórias fazem parte dos debates das lutas sociais, das intrigas das classes, podendo até causar uma longa operação de silenciamento tanto de memórias como de setores sociais” (1989, p.17). Assim, o silenciamento/esquecimento é uma operação complexa articuladora tanto do passado, quanto das lutas sociais que mobilizam e ocultam ideias e memorias na atualidade. Portanto, pode-se dizer que ainda hoje existe um processo de interdição de certas memórias sobre a origem dos protestantes-evangélicos. Os próprios analistas mais técnicos caem na artimanha montada pelos líderes (religiosos midiáticos) que se arrogam porta-vozes dessa religião, como o pastor Silas Malafaia e o bispo Edir Macedo.

Na verdade, é do interesse desse grupo hegemônico o silenciamento da memória inicial (e contínua) de protesto social dos evangélicos, que buscam, com isso, se notabilizar. Por isso, indico que o setor protestante-evangélico de hoje é muito mais complexo no Brasil que os gritos de Silas Malafaia buscam silenciar e os dízimos/ofertas pedidos por Edir Macedo e Valdomiro Santiago buscam extorquir.

Para tratar dessa complexidade, busco trazer à tona um movimento que foi devidamente “silenciado”, na origem: as Reformas Europeias, dos séculos XV e XVI. As Reformas foram encadeadas em várias geografias, de forma plural:  na Germânia levado pelo monge Martin Luther;  na Suíça liderado por Zwinglio; em Paris, por  João Calvino; O rei Henrique VIII, na Inglaterra. Todos esses movimentos, nas suas diferentes gradações, invariavelmente foram ligados ao poder, aos reis, às monarquias.

Contudo, existe uma reforma esquecida, que foi a mais perigosa, numerosa e justamente não ligada às elites: as Revoltas Camponesas. Na verdade, essas Revoltas foram um amplo movimento popular levado pelos trabalhadores do campo de todos os cantos da Europa. Naquela época, até trabalhadores que vinham da África e da Ásia se revoltaram contra o “Antigo Sistema Feudal” europeu. O movimento transpassou as geografias de toda Europa, do Leste para o Norte. As Revoltas Camponesas uniram variadas lideranças de diferentes regiões, tais como: Thomas Muntzer, Georg Blaurock, Conrad Grebel, Agatha Trezel, John Miliandick, e Félix Manz. Assim, uma grande rebelião camponesa varreu a Europa questionando a divisão das terras dos reinos, seus revoltosos experimentavam as experiências religiosas das glossolalias, não aceitavam a conexão das elites com o cristianismo, e por isso, se rebatizavam nos rios. Eles foram chamados de “anabatistas” – que numa tradução simples seria o “novo-batismo”.

As Revoltas questionaram a ordem europeia a partir das mazelas dos trabalhadores espoliados no continente. É claro que foram completamente massacrados pelos reis, contudo, se parte dos derrotados foram mortos, degolados, e a outra parte promoveu novas demografias, principalmente, no leste europeu. O que gostaria de destacar sobre as reformas camponesas é a amplitude do movimento, que foi numericamente o maior movimento das Reformas com alto caráter reivindicatório. Infelizmente, no entanto, as reformas camponesas foram propositadamente esquecidas. Essa “operação esquecimento” (Pollack, 1989) no Brasil é recorrentemente reafirmada pelas elites intelectuais (ligadas ao positivismo e ao elitismo acadêmico), que desacreditam o amplo movimento popular religioso do início da modernidade, bem como pelos próprios líderes das grandes corporações cristãs familiarizados com o poder, pois temem a memória perigosa dos camponeses. Então, existe um duplo interesse hegemônico na manutenção do “silenciamento da memória” das Revoltas Camponesas justamente por sua força como amplo movimento evangélico popular anti-sistema.

União espiritual das Revoltas Camponesas e as teologias progressistas

Assim, ao apagarem as Revoltas Camponesas como parte das Reformas Europeias produziram um “esquecimento” que ajuda na simplificação política do setor evangélico como conservador ou de pouca crítica social. Por isso, para se opor a esse complexo silenciamento simplificador do setor, discuto agora os grupos de esquerda evangélicos atuais. Existem protestantes-evangélicos ligados às Teologias da Libertação, à Teologia da Missão Integral, à Teologia Feminista, às Teologias Negras. Todos movimentos teológicos que representam o questionamento às ordens religiosas e ao modo de vida cristão.

Esse conjunto de teologias insubmissas ajudaram nas últimas décadas a formar diferentes grupos de evangélicos atentos as lutas sociais, que hoje, chegaram a cargos no poder político. Portanto, busca-se na sequência do artigo pontuar dois políticos eleitos na última eleição (2020), que se sentem irmanados pelas Revoltas Camponesas, e se reconhecem como evangélicos de esquerda, são eles: Wiliam Siri, do PSOL do Rio de Janeiro, e Elenizia Matta, do PT de Goiás. Passamos agora a destacar essas duas importantes trajetórias políticas.


  • Wiliam Siri, sua trajetória político-religiosa de Campo Grande para a Câmara de Vereadores

William Carlos Brum Bispo, mais conhecido como William Siri, é membro da Igreja Presbiteriana do Recreio (na cidade do Rio de Janeiro). Contudo, seu histórico na igreja evangélica é antigo. Quando tinha dois anos de idade, seus pais se converteram na Igreja Metodista Wesleyana- vertente pentecostal dos metodistas, e passou a frequentá-la com a sua família. Por isso, se considera “praticamente nascido no lar evangélico”. Lá pelos dez anos migrou para a Igreja Maranata, em Campos Grande. Ficou nessa outra estrutura pentecostal até seus 20 anos, quando passou a conhecer outras igrejas, e há quatro anos ele se estabeleceu na Igreja Presbiteriana do Brasil, no Recreio.

Logo, Siri tem longa trajetória entre os pentecostais. Sua vinculação com o PSOL começa em 2015, antes, porém participava de encontros do PSB embora não fosse filiado ao partido. Na entrevista ele narra como entrou no PSOL: “No PSB conheci o deputado federal Glauber Braga, e depois, em 2015, pela morte do Eduardo Campos, o PSB apoiou o Aécio Neves. E, aquele grupo resolveu sair, nós fomos para o PSOL”. Em termos das eleições diretas, em 2016 e 2018, conseguiu uma boa margem de votos, mas não se elegeu (ficou como terceiro suplente). Também, entre 2017 a 2018 foi assessor do Glauber Braga (PSOL), e depois, entre 2019 à 2020, passou a trabalhar com o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL).

Tal como os revoltados camponeses do passado, William Siri entende que existe uma conexão do cristianismo com a realidade. Afirma que o cristianismo tem toda a “questão espiritual, envolvendo o evangelho, mas o cristianismo também tem a política, na dinâmica de como tratar o outro, o próximo (…) A vida é política! As escolhas que vamos fazendo são políticas. Acho que é isso, é o combate à desigualdade, à injustiça”. O vereador vai mais adiante nos desafios do cristianismo absolutamente político que “é todo mundo ter o que comer! Todo mundo ter dignidade (…) bem estar, vida digna. Essa é a conexão do cristianismo com a política na raiz”. O vereador sintetiza seu mandato sobre o paradigma da dignidade, que é uma base do cristianismo. Para ele, o cristão deve se “conectar com a política raiz, que é de luta por justiça e dignidade para todos e todas de forma irrestrita”, o que no território da periferia da cidade é “todo mundo ter acesso à cultura, ao desenvolvimento, acesso à saúde de qualidade (…) Essas pautas têm total conexão com os ensinamentos de Jesus”.

O mandato coletivo do jovem vereador Siri se liga politicamente à espacialidade da Zona Oeste, onde fica o bairro em que mora, isto é, em Campo Grande. Afirma “nossa cidade é maravilhosa, mas na Zona Oeste, Campo Grande, Bangu, Guaratiba, Realengo, tem uma desigualdade enorme. São mais de 2 milhões de pessoas com muita desigualdade, muita miséria”. Assume seu mandato sobre o prisma de colocar “a discussão da produção da desigualdade, da pobreza, de ter educação, ter transporte digno que aqui é, sobretudo, sucateado”.

O vereador diz ainda sobre a espacialidade que vive: “tem uma área rural muito grande na Zona Oeste (…) estou trabalhando todas as questões ambientais, saneamento básico, que não tem aqui”. Portanto, com o mandato, Siri busca inverter a lógica das gestões e das elites urbanas que olham a cidade a partir do centro. O desafio de sua política “é de um olhar de cidade, a partir do subúrbio”, assim, sua proposta é de se colocar junto aos trabalhadores urbanos que não moram nos centros, mas principalmente, nos cinturões periféricos distantes, como os moradores da Zona Oeste.

Diferente dos grandes nomes da Bancada Evangélica do Congresso Nacional, o vereador não teve apoio de qualquer instituição religiosa, pois “não é a favor”. Ao contrário das pautas das grandes corporações evangélicas, sua atividade religiosa se liga ao coletivo que ajuda a construir o “Tudo Numa Coisa Só”, na Zona Oeste. O coletivo tem 12 projetos, como um pré-vestibular comunitário, e se notabiliza a partir de uma atividade de impacto ecumênico que é a Caminhada pela Liberdade Religiosa. O vereador, diferente dos evangélicos apologéticos exclusivistas, circula em “outras religiões”, e por isso, acha importante não ter apoio institucional de qualquer grupo religioso, considerando “completamente errado. Não condiz!”.

Ao fim da conversa, o vereador conclui que busca dar visibilidade as pautas da Zona Oeste que tem “2 milhões de pessoas que tem dons, e justamente a falta de investimento dificulta as pessoas a se desenvolvem, desperdiçando talentos, vocações (…) mas o que não falta aqui são pessoas extraordinárias”. Portanto, luta para que os moradores da região “tenham acesso à cultura, a terem mais equipamentos culturais, que são apenas 26 equipamentos culturais, enquanto a Zona Sul são mais de 200 (…) e o que tem aqui é sucateado, é um descaso muito grande”. Contudo, o grande gargalho da população da Zona Oeste é a “questão do transporte público que dificulta o translado para o trabalho”, fazendo com que a população gaste horas no dia nos trajetos.


  • Elenízia da Mata, trajetória político-religiosa na defesa do serrado e a luta contra o machismo estrutural

Outra persona política irmanada a partir das Revoltas Camponesas, é Elenízia da Mata. Formada em Letras pela UEG, com MBA em Gestão do Terceiro Setor e especialização em Direitos Sociais pela UFC, Elenízia pertence a Igreja de Cristo. Nascida num lar evangélico, seu pai é pastor da Assembleia de Deus, onde ficou até os 18 anos. A partir dali, foi para a Igreja de Cristo, uma denominação pentecostal independente da cidade de Goiás, iniciada em 1986, pelo pastor Raimundo Aires e a bispa Rosa Heide. Migrou para essa igreja “para ampliar o diálogo do cristianismo com a vida” – embora mantenha relação com pessoas da Assembleia de Deus.

A vereadora entrou no PT oficialmente em 2003, embora já participasse das suas atividades antes. Ligou-se ao partido no movimento de pessoas de esquerda da cidade que tentavam abrir espaço para disputar com as antigas oligarquias. Hoje ela é da direção do partido, e justifica: “acho super importante ser uma mulher na disputa por narrativas dentro dele”. Para ela, a função “do cristão e da cristã primar pelos princípios básicos chamados pelo nosso grande líder, que é Jesus Cristo. Ou seja, zelar pelas pessoas, pelos pobres, pelas viúvas. O cristão deve servir aqueles e aquelas que são mais vulneráveis”. Diz ainda que o cristão na sociedade deve “cuidar de quem está preso, quem tem fome, quem não tem roupa, com os desvalidos”, destaca. A vereadora completa: “a política é um instrumento oficial para execução desse chamado”.

Elenízia esteve à frente do Centro Especializado de Atendimento à Mulher, ligado à prefeitura de Goiás, com função de trabalhar com mulheres na condição de violência doméstica, e na prevenção da violência. Esse projeto foi considerado uma das melhores iniciativas nas gestões de municípios do Brasil. Segundo Elenízia, “ajudou a fortalecer meu nome, porque você exercer um cargo público de excelência (…) por ser de esquerda e uma mulher cristã a princípio causou muito estranhamento”. A vereadora consegue unir a vivência na Igreja ao trabalho de luta pelos direitos das mulheres diretamente quando promove atividades sobre violência de gênero nas igrejas da região. Esse projeto foi até aprovado pelo conselho de pastores de Goiás.

A vereadora é atenta também as questões da ancestralidade. Pouco antes da eleição, teve atuação na territorialidade do Quilombo Alto Sant’Anna “tanto na organização da comunidade, de dados para o relatório para o reconhecimento da Fundação Palmares, quando na organização que deu personalidade jurídica ao movimento” – sendo umas das lideranças do movimento negro na organização do “Fórum de Igualdade Racial, que já existe enquanto coletivo”. Ela se orgulha de participar do projeto de Mulheres Coralinas: “um projeto para mulher, com mulheres que se captou recurso da extinta Secretaria de Políticas Públicas para mulheres, ligada à presidência da república”.

Assume que seu mandato está “pautado na luta antirracista, principalmente, pelo viés da questão da segurança para as mulheres”. Por isso, se atenta para a “geração de trabalhos, oportunidades e tanto de empoderamento de espaços de poder para as pessoas mais vulneráveis, que em geral são as pessoas pretas, em geral são mulheres, então isso está interligado”. A vereadora reconhece a vinculação do cristianismo com o socialismo, que se dá “a partir do Reino de Deus, que é sobretudo pautado no reino de justiça, pautado na equidade, no cuidado com aqueles que são mais frágeis, com aquelas pessoas que estão marginalizadas, com aqueles e aquelas que tem fome e sede de justiça”.

Ela não deixa de destacar a conexão do cristianismo com seu partido. Pois ele é formado por “trabalhadores, por aqueles e aquelas que tiveram a vida impactada pelos poderosos e que decidiram pela insurgência pela luta de seus direitos”. Seu mandato defende a “vida segura das mulheres (…) e que tenha delegacia especializada”, e, se propõe trabalhar com os agressores, pois que “se entenda que o machismo estrutural atravessa os corpos dos homens agressores”. Por fim, é sensível a questão da geração de renda para o “setor negro da sociedade, pois a questão do racismo institucional impede a inclusão econômica também (…) assim também tratar da questão da geração de renda pautada em economia solidária”.

Novas lideranças evangélicas de esquerda e a inspiração popular

Portanto, a força política de William Siri e Elenízia Matta se possibilita a partir de suas experiências sociais e religiosas junto às suas espacialidades que permitem agremiar lutas na defesa do despossuídos e aos que sofrem violência junto aos seus mantados políticos populares. Ambos são impulsionados por um cristianismo mais humano atento às dores e às mazelas. Com este artigo, selecionei as trajetórias politicas desses dois crentes, que são novas faces de políticos evangélicos de esquerda que não se ligam à Bancada Evangélica, à Frente Parlamentar Evangélica e ou a qualquer estrutura Evangélica dos grandes evangelistas. Também, apontei que a expansão evangélica avança nos territórios brasileiros formando também pessoas que pensam um cristianismo mais encarnado, insubmisso. Assim, Elenízia da Matta, mulher, pentecostal, negra, direto do cerrado brasileiro, e William Siri, do Sudeste, periférico da Zona Oeste do Rio de Janeiro se inspiram na memória dos camponeses que lutaram contra o peso dos poderosos do mundo europeu do seu tempo. Um dado interessante é que tanto Siri quanto Elenízia passaram a infância e a adolescência nas comunidades pentecostais que se multiplicaram pelo Brasil. Nada mais pulsante e popular no Brasil contemporâneo.

É a partir do amplo território das periferias brasileiras que ambos se identificam com os movimentos de esquerda evangélica que sofrem diariamente um processo de “silenciamento/apagamento” do passado e no presente. Mas, que humanizam as lutas no setor, lutando por justiça, de forma antirracista, feminista, pelo acesso à moradia, à justiça ambiental e pelo transporte dos trabalhadores. Nesse sentido, suas personas inspiram e são icônicas nas suas geografias mesmo quando ao inverso do senso comum que desacredita em qualquer conexão dos evangélicos e as diferentes gradações das esquerdas. Sim, ambos mostram que a simplificação histórica do setor protestante-evangélico só ajuda aos coronéis da fé, reafirmando a barganha fundamentalista.

E, como destacado aqui, essa “operação de silenciamento” e simplificação despreza propositadamente a origem das Revoltas Camponesas, para também, apagar da memória figuras como o pastor Guaracy Siqueira, metodista que participou da Revolta Constitucionalista de São Paulo de 1932, depois se tornaria Deputado Federal – se dizia socialista cristão. Essa operação também silencia os grupos evangélicos trabalhadores rurais, nas Ligas Camponesas, nas décadas de 1950 e 1960, liderados pelo advogado/deputado batista-presbiteriano Francisco Julião. Também, forçam o esquecimento das juventudes presbiterianas, batistas, metodistas, luteranas e anglicanas que lutaram contra a Ditadura civil-empresarial-militar no Brasil.

O que pretendo dizer é que o setor evangélico nunca foi uniforme em termos políticos e sua vinculação com as direitas é uma conclusão apressada. Ocorre assim desde a formação dos protestantes-evangélico nas Reformas Europeias um complexo exercício das elites religiosas de “operar o silenciamento” dos setores descontentes, subversivos dos crentes que questionavam o status quo. E, hoje, parte das esquerdas evangélicas se inspiram nos movimentos dos camponeses revoltosos que buscaram se libertar das amarras dos reis, orando, rezando, falando em línguas, se organizando para lutar por moradia/terras, contra as elites religiosas do seu tempo e sobretudo por justiça social.

É verdade, que muito se repete sobre não generalizar os protestantes-evangélicos. Contudo, acredito que se deva dar um passo a mais. Não basta o alerta pela não generalização do setor, mas, a partir da memória “esquecida” dos camponeses revoltados contra o Antigo Regime, deve-se dizer para não se subestimar os crentes. Sim, porque é uma constante das elites e dos mais letrados desprezar aqueles que seguem limpando os ladrilhos, os vasos, os que são explorados pela servidão dos tempos pandêmicos. Pois, a população evangélica, no Brasil, é parte contundente das camadas populares. Logo, o desprezo pelo setor, se resvala no preconceito de classe e no racismo direcionado às populações negras das periferias.

As mesmas elites e os mais letrados que cismam em cortar as flores, ou então, desprezá-las ao nascerem nas encostas cimentadas. William Siri e Elenízia Matta são flores que aparecem no cinza opaco das encostas, mas que dão luz e beleza, e mostram força ao rompem com o cimento. Ambos conjuntamente são um anuncio da primavera. E, ela, o bom Marcos nos ensinou que é inevitável.

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sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Jovens evangélicos de esquerda: potência de novos rostos da política brasileira

                                                                                                                                                                                                                                                  Fonte: Mídia Ninja (aqui).


Jovens evangélicos de esquerda: potência de novos rostos da política brasileira*

 

Eis que faço uma coisa nova;
agora está saindo à luz;
porventura não a percebeis?
Isaías 43, 19

 

Fábio Py

 

* Publicado originalmente em Mídia Ninja (aqui).

 

A população brasileira tem aproximadamente 210 milhões de pessoas, dessas, se estima, que em 2020, existam 65,4 milhões de evangélicos, segundo Instituto Datafolha. Logo, o país tem 31% de evangélicos, sendo o setor religioso em maior expansão nas últimas décadas. Por conta da ascensão populacional, existe um somatório de impressões sobre o setor. Muitas delas causadas pela força midiática das igrejas de grandes figurões televangelistas, como a Igreja Universal do Reino de Deus, a IURD, do magnata Edir Macedo, a Igreja Mundial do Poder de Deus, de outro magnata, Valdemiro Santiago, ou então, a Assembleia de Deus Vitória em Cristo (a ADVEC) do estridente milionário Silas Malafaia. Na verdade, os evangélicos hoje pagam pela impressão de serem meros súditos dessas figuras emblemáticas, como se essas grandes estruturas fossem as majoritárias ou se seus fiéis fossem simples massa de manobra hipnotizadas dos pastores. Contudo, na prática, se sabe que a maior igreja do setor é a Assembleia de Deus, seguida pelas Igrejas Batistas, ambas igrejas muito comunitárias, pouco centralizadas, que nutrem baixas pretensão em termos políticos.


A suposta falta de autonomia e criticidade dos 65,4 milhões de evangélicos é algo a ser refutado, até porque, por trás dela se encontra uma intensa malha do racismo à brasileira. Sim, existe uma noção, que paira a partir do senso comum, de que o sujeito evangélico não seria dotado de pensamento, de racionalidade, de agência. Essa especulação está relacionada à outra concepção preconceituosa, a de que pobres (que formam a maioria dos evangélicos) têm pouca formação crítica. Essa linha tem forte conexão com o pensamento acadêmico e elitista nas grandes metrópoles brasileiras que defende que religiosos não exercem o pensamento crítico, muito menos, os religiosos das camadas populares. Assim, o imaginário coletivo é que os “crentes” seriam os pobres, os periféricos (as) e pretos (as), dotados de pouca inteligência. Um cinturão de pessoas desmioladas, simples manobra de suas lideranças. Logo, não existiriam evangélicos fora do espectro do conservadorismo das direitas.


Esse desenho não passa de uma caricatura mal pintada sobre o setor, e para tensionar esse conjunto de impressões e de falácias preconceituosas e racistas, apresento quatro candidaturas evangélicas em São Paulo e no Rio de Janeiro, de homens e mulheres que se configuram no viés mais crítico das esquerdas. Eles e elas, que são jovens lideranças, mobilizados quase sempre por diferentes razões do pensamento antirracista brasileiro, habitam as periferias e se alocam no fenômeno dos evangélicos progressistas. Tais jovens vêm trabalhando para denunciar pastores como Malafaia, Macedo e Feliciano, qualificando-os como “fariseus”, “falsos crentes” que vivem um cristianismo hipócrita. Ao mesmo tempo, a partir desses jovens candidatos à vereância, se coloca em perspectiva o equívoco político da generalização dos evangélicos como “conversadores”, ou de dotados de pouca crítica, ou alienados. Ao contrário, suas posturas políticas nos mostram que a sobrevivência deles e dos demais trabalhadores e trabalhadoras das periferias urbanas e a organização das igrejas dos bairros populares é algo absolutamente político. Assim, passo às quatro vozes potentes dos jovens evangélicos de esquerda, dois homens e duas mulheres, de dois partidos, o PSOL e o Rede Sustentabilidade.


1. Candidatos evangélicos progressistas de São Paulo


Apresento a primeira candidata, Keitchelle Lima, do PSOL de São Paulo, moradora de Brasilândia. Ela faz parte da Marcha das Mulheres Negras e é integrante do Educafro, ONG. Keit, como é conhecida, trabalhou em 2018, na Bancada Ativista, mandato coletivo que o partido elegeu em 2018 à Assembleia Legislativa de São Paulo. Religiosamente ela é cria da Assembleia de Deus desde o Recife, e segue frequentando até hoje em São Paulo. Sua trajetória política se inicia na escola pública, que estudava na Brasilândia, quando se “tornou ativista na luta contra desigualdade (…) se aproximando da política institucional a partir da própria Educafro, instituição que ajuda a construir há mais de dez anos”. Se filiou ao PSOL porque, segundo a candidata, é o partido que tem o projeto de cidade igualitário.


Embora, seja cria da Assembleia de Deus, não firma sua candidatura a partir disso, mas faz questão de afirmar com todas as letras a laicidade do Estado. Pela via de sua candidatura como projeto político popular, se compromete “em dialogar com as pessoas cristãs, sobre o projeto de cidade e de mundo que acredita”. Sem qualquer apoio das igrejas institucionais, busca suas bases com as pessoas da periferia que cristãos, em sua maioria. Por isso, Keit afirma a tônica plural e popular de sua candidatura “O Estado é laico, mas precisamos dialogar com ‘geral’. Precisamos dialogar com a galera evangélica (…) porque para mim, não é sobre o outro, é sobre mim, é sobre minha mãe, é sobre minha tia”.


No fim da entrevista, feita pelo aplicativo, Keit faz a provocação: “A esquerda se perdeu por falta de diálogo com as pessoas evangélicas. E eu não acredito numa política onda não há diálogo”. Assim, se política é uma arte do diálogo com todo mundo, logo, “quero saber quais as propostas das pessoas por uma cidade mais democrática, mais justa, mais inclusiva”. Por meio do diálogo a partir da periferia, se diz incomodada, como cristã, quando “alguém se diz ser seguidor de Jesus e, ao mesmo tempo, apoia leis e comportamentos que tirão a humanidade, o direito de viver plenamente de qualquer ser humano, não passa de um hipócrita”. Instiga ao dizer que “A Bíblia não é um aval pra geral destilar seu preconceito, não dá pra aceitar usarem a Bíblia como disfarce para o preconceito”.


Também de São Paulo, há outra candidatura singular do setor evangélico de esquerda, a de Vinicius Lima, integrante da Igreja Batista de Água Branca. O pastor da denominação é seu tio, Ed René Kvitz, e ele desenvolve o projeto SP-Invisível, cujo objetivo é assistir pessoas em situação de rua. Vinicius nunca teve cargo político, contudo, afirma que exercitou a política a partir da escuta. Sua escolha pela luta partidária é pelo ativismo que já exerce, e não, pela via institucional. É filiado à Rede Sustentabilidade, e fez a escolha pela legenda pela “questão do afeto, nada pragmático, pensando em cadeiras, nada”. Assume as pautas do partido como a “ideia de sustentabilidade”, pois, para ele, se conecta a “ideia de o Evangelho ser inteiro: meio ambiente, ser humano, corpo, alma, espirito, essa dignidade que tem de estar em todo ser humano”.


Vinicius entende que o “cristianismo e política se misturam não em termos de Estado. Não no sentido da Constituição e a Bíblia. Não no sentido de Igreja e Câmara Municipal. Mas, a minha fé me incentiva a servir ao próximo. E, ao cuidar do lugar que estou, ao cuidar das pessoas que vivem na cidade, principalmente as excluídas”. Segue o tom crítico às megacorporações evangélicas: “eu acredito que essa deve ser a relação de cristianismo e política: não dos festivais evangélicos que dão isenções para as igrejas, que fiscalizam o corpo das pessoas, que querem controlar seus corpos”. Sua proposta política é “pensar a cidade, para pessoas que não são considerados cidadãos – as pessoas em situação de rua. Porque a cidadania liberal-burguesa é excludente. Uma cidadania que pede CPF, para as pessoas te atenderem, poderem ter acesso a tal benefício”.


Vinicius é incisivo no questionamento sobre a postura da classe média para com a população de rua: “Como que a gente pensa políticas públicas para pessoas que nem são vistas como cidadãos?”. Logo, munido desse cristianismo integral “que pensa o homem e mulher como um todo” indica que o “O Estado vê as pessoas em situação de rua, com um problema, um problema estético. Pois existem pessoas assim em frente ao meu shopping (…) Tirem elas daqui”. Logo, firma sua campanha eleitoral nas denúncias das pessoas em situação de extrema vulnerabilidade social.


2. Candidatos evangélicos progressistas do Rio de Janeiro


No Rio de Janeiro, também há dois jovens candidatos (as) evangélicos de esquerda concorrendo à vaga de vereador. A primeira é a Iza Vicente de Macaé, integrante da igreja batista, candidata à vereadora no noroeste Fluminense, pela Rede Sustentabilidade. Ela vem de uma família simples. Herdou a sensibilidade para as causas políticas da mãe: “ela tinha muita consciência política, quando a gente vivia episódios de racismo, quando questionava a qualidade dos serviços públicos nos dava noção do coletivo”. Na sua vivência evangélica, participou “muito de ações sociais, movimentos de caridade e isso acabou entrando na minha rotina, então para mim é muito normal, ir para mutirões, ações de distribuição de alimentos, minha adolescência foi muito atrelada a isso, e também, a participar de grêmio da escola”.


De acordo com Iza, a participação nas ações sociais foram uma chave, pois mostraram que existiam questões mais densas e mais estruturais do que as ações assistenciais podiam resolver. “Quem vai resolver a questão do saneamento? Quem vai resolver a questão da mobilidade urbana? Da moradia? Da educação”. Por isso, diz ela, voltou-se à política: “nós procuramos caminhos para tornar a vida das pessoas melhores, e pensar um bem comum”. Encontrou-se na Rede Sustentabilidade, pois o partido tem a figura de Marina Silva que também é cristã, preta, e faz “um trabalho exemplar de defesa do meio ambiente”.


Sua vinculação ao partido se dá pela questão do meio ambiente e do combate ao racismo. Sua atividade política se relaciona em termos práticos com ações de ONGs, em projetos da Universidade, também junto à própria igreja metodista, com seus ministérios de ação social. A atividade na igreja da Iza “sempre esteve atrelada ao serviço ao mais pobre, que é algo que faz parte da ação do cristão no mundo, se preocupar com o combate com a pobreza, só que essa preocupação pode ser também política”. Iza admite que “a religião cristã influencia muito na política, contudo, a gente pode fazer isso de uma forma muito mais qualificada, temos que saber das nossas origens, sabe que o legado da Reforma também é da separação de Igreja-Estado”.


Iza desenvolve seu raciocínio ao afirmar que “é importante conhecer nossa história para não repetir essa ordem vigente de domínio, de imposição através do Estado, da legislação, de valores que não podem ser impostos para as pessoas”. Ela defende de forma muito interessante que o debate do cristianismo e a política deve ser “qualificado”, pois se está aumentando o número de evangélicos no Brasil, “significa que vão ocupar todos os locais”. Logo, não se pode correr desse debate, e para ela, deve-se fazer isso, pela via da Reforma Protestante da afirmação da separação Igreja e Estado. Dito isso, defende que a participação evangélica na política é absolutamente legitima. Só não é legitima se “é para ser um despachante de luxo das grandes igrejas”. Nessa linha crítica da relação direta de religião e igreja, afirma que não vai “representar apenas os evangélicos, mas representar a defesa dos direitos sociais, o que também vai ser bom para os evangélicos porque em sua maioria são pobres, são mulheres, mulheres negras”.


Outro candidato evangélico de esquerda do Rio, é Wesley Teixeira, do PSOL de Duque de Caxias. Wesley tem uma trajetória política no trabalho como assessor de Flávio Serafini, Marcelo Freixo e da Monica Francisco, todos políticos do PSOL. Ele é filho de pastor da Igreja Evangélica Projeto Além do Nosso Olhar, localizada no Morro do Sapo, em Duque de Caxias. Uma comunidade de fé, que é uma das milhares dissidências da Igreja Assembleia de Deus. Sua “trajetória política inicia no movimento estudantil no grêmio do Colégio Estadual Irineu Marinho, e assim, começou a lutar pelo passe-livre e luta pela educação”. Na sua caminhada de reconhecimento político percebe que “a luta do povo periférico que trabalho é constante, logo, a luta deve ser constante em todas as épocas”. Por isso, entende que o político não é apenas exclusividade das lutas eleitorais, mas “de todo momento da existência humana”.


Suas referências na política institucional são os políticos Chico Alencar e Marcelo Freixo. Eles que são “figuras lutadoras por direitos e contra corrupção e que foram decisivos para escolha da entrada no partido na cidade”. Wesley participou também da coordenação da união de estudantes, coordenador de pré-vestibular popular, e de um jornal comunitário. Logo, tem em si uma longa trajetória de lutas mais ligada aos movimentos sociais populares da cidade de Caxias e visa “representar as centenas de trabalhadores e trabalhadoras periféricos da região”. Wesley posiciona que “a relação do cristianismo e a política, tem relação pelos seres humanos, pois todos eles são seres políticos, porque tem relação com a mediação das nossas relações”. Para ele, então o “cristianismo está dentro da experiência humana, dentro das experiências de um Deus que se fez humano (…) logo, não tem como fazer uma leitura bíblica fora da sua realidade, pois ela está dentro da história”.


Nesse sentido ao evocar o ato de historizar a experiencia da leitura bíblica busca sair dos parâmetros do fundamentalismo que tragou o seguimento evangélico. Segue dizendo que para ele o “estado é laico, não posso abrir mãos dessa defesa (…) e assim, é importante a defesa pela liberdade religiosa”. Assim, para ele “não pode ocorrer a imposição de uma fé sobre as outras, de doutrinas, dogmas, sobre o estado sobre a lei”. Mas, o cristianismo “na instancia humana, não impositiva, pode trazer a reflexão de uma busca por humanidade, valoroso para a sociedade”. Wesley tem uma trajetória junto ao movimento negro, que “passou 500 anos resistindo, nos últimos anos obteve muitas vitórias, o acesso à universidade, colocando a gente como protagonista, do debate da político”. Assim, percebe que os acessos às universidades permitiram “que não falem por nós, mas que nos mesmos possamos falar da nossa realidade. Ao mesmo tempo, nosso povo segue apartado da política tentando trabalhar, trazer comida para dentro de casa”. Nesse sentido, Wesley identifica sua candidatura aos “milhares de trabalhadores e trabalhadoras urbanos da cidade de Caxias que diariamente vão para outras partes do estado do Rio de Janeiro trazer o pão diário para sua família”.


Enfim, Wesley, como candidato cristão, reconhece a “legitimidade na fé”, inspirada no fazer político a partir da teologia negra, com figuras como James Cone, Martin Luther King, Ronilso Pacheco, Henrique Vieira, pastora Cacá e Ariovaldo Ramos. Está preocupado em compor uma “nova síntese que passe pelo povo a esquerda e o movimento negro é muito importante”. Para ele, esses envolvimentos estão, sobretudo, muito dispersos. Eles merecem ser mais relacionados traçando uma política prática de igualdade (típica das esquerdas) devem ser “melhor conectadas aos trabalhadores e trabalhadoras do Rio que são as populações pretas”.


Os corpos da síntese que já brotou


Clara Mafra, celebre antropóloga da religião, escreveu em 2011, que o “cinturão das periferias dos grandes centros urbanos do Brasil foram tomados pelos evangélicos”. Se é assim, está na nossa frente um turbilhão de dificuldades. Pois, essas periferias urbanas são formadas sobretudo pelos crentes, concebidos pela elite e mesmo pelas esquerdas, como conservadores, preconceituosos, uma versão brasileira do Talibã. Tal como foi visto, essas candidaturas de jovens mostram justamente o contrário. Mostram que estão absolutamente conectados às lutas populares que se apresentam nas suas geografias. Assim, percebo que a face evangélica é muito mais diversa, plural do que a caricatura construída pela esquerda dinossauro e/ou os acadêmicos positivistas racistas das universidades. Esses evangélicos periféricos estão despontando em candidaturas que partem de sua vivencia das Igreja contudo, não se fixam nela, não fazem sua fim. Não tem os traços dos fundamentalismos, mas sim, são sensíveis as articulações antirracistas da população periférica que sente diariamente a falta de política públicas do Estado brasileiro. Mais até: se vê hoje uma proeminência de candidaturas das mulheres pretas periféricas pois, sobretudo a vida delas, é política. São elas as que mais sofrem a chicotadas do Estado e dos patrões.


Por isso, é importante construir tais sínteses tão evocadas pelo jovem candidato Wesley. Sínteses que se unam ao movimento negro e às pautas de direitos típicas das esquerdas. Ao mesmo tempo, perceber a força das candidaturas que se colocam no diálogo com todos e todas, sem se esquecer de onde está se partindo, como a candidatura da Keit de Brasilândia. Também, numa candidatura à vereância que traga as questões dos moradores de rua, como do Vinicius e o engajamento por Direitos Humanos prol por políticas publicas como da Iza Vicente. Assim, temos novos rostos e corpos preocupados com as políticas. São evangélicos e evangélicas que querem despontar no setor fazendo oposição a Bancada Evangélica, pesado braço do fundamentalismo das megacorporações evangélicas. Nesse sentido, o que está ocorrendo é uma nova incidência política de um novo setor disposto a colocar o pé na porta e ocupar os espaços da política oficial brasileira.


Nada mais justo, pois, o setor evangélico já compõe grande parte da população economicamente ativa do Brasil, logo, esses representantes mostram mais detalhadamente as faces evangélicas, distantes dos grandes pregadores Feliciano, Malafaia e Macedo. Assim, no país, em 2020, brotam uma variedade de candidaturas jovens evangélicas engajados nas lutas tão caras ao Evangelho, de justiça, como a luta antirracista, com a ecologia e com a paridade de gênero em direta oposição ao setor evangélico mais institucional, com suas relações eletivas com as pautas de conservadoras. Essas jovens faces trazem à tona e reforçam as vinculações já existentes do setor com as lutas de promoção humana no Brasil.


Sobre isso, vale a pena lembrar de Francisco Julião, batista-presbiteriano, que lutou pela organização das ligas camponesas. Lembra-se de Gernote Kirinus, Werner Funchs, Carlos Dreher, Leonildo Gaede, Roberto Zwesth, Gunter Wolff e Milton Schwantes, todos luteranos, que ajudaram na organização dos movimentos sociais rurais como o MST. Também do potente Ronilso Pacheco, pastor batista, na luta contra a prisão racista de Rafael Braga. Vale reverenciar a trajetória de Ras André Guimares e Lis Guimares, poderoso casal metodista, que luta, a partir do Degasi, contra o pecado do racismo. Na mesma tônica no Recife, destaca-se também o trabalho fundamental da batista Vanessa Barbosa na luta contra o racismo e a violência contra as mulheres, e de Jackson Augusto, com seu canal Afrocrente, ambos pelo Movimento Negro Evangélico. E, também, não se pode deixar de falar de Nancy Cardoso Pereira, pastora metodista em incansável luta contra o latifúndio e o machismo no Brasil.


Assim, essas candidaturas só reforçam a face que sempre existiu, e que grande parte das vezes foi silenciada, a face dos evangélicos-protestantes que estão preocupados com os trabalhadores e trabalhadoras, que denunciam o racismo, lutam contra o feminicídio, contra o latifúndio. Eles e elas sobretudo representam leitura distinta do mundo cristão das grandes corporações evangélicas preocupadas com o proselitismo e seu lucro. Lutam potentemente contra as mazelas humanas causadas pelo capitalismo à brasileira e do racismo tão entranhando na colônia que se chama Brasil – que chamamos por vezes de pais.


Bibliografia:


GRABOIS, Pedro. Devir minoritário no ‘devir-evangélico’ do Brasil. UniNomade Brasil, 2018. Em: http://uninomade.net/tenda/devir-minoritario-no-devir-evangelico-do-brasil/.


MAFRA, Clara. O problema da formação do ‘cinturão pentecostal’ em uma metrópole da América do Sul. Interseções, 13, 2011, p.136-152.


PACHECO, Ronilso. Teologia negra: o sopro antirracista do espirito. Brasília: Novos Diálogos: 2019.


PY, Fábio. & PEDLOWSKI, M. A atuação de religiosos luteranos nos movimentos sociais rurais do Brasil (1975-1985), Tempo, 2018.

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