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quarta-feira, 19 de junho de 2024

Silêncio dos “inocentes”: contorcionismo de “especialistas” para ocultar a base ideológica do aprofundamento dos problemas educacionais

 

Fonte: Depositphotos

* Jefferson Nascimento


Problemas das prescrições de sistemas de avaliação aplicados em larga escala


O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), assim como os sistemas de avaliação em larga escala, devem ser discutidos seriamente antes da adoção acrítica de suas recomendações, de comemorações ou lamentos acerca dos resultados. 

Marialuisa Villani, pesquisadora do International Network of Research on Reestructuring of Educational Professions (WERA/INRREP), e Dalila Oliveira, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), alertam que a estratégia brasileira de balizar políticas e investimentos educacionais em avaliações estandardizadas “[...] pode estar produzindo novos desequilíbrios e encobrindo problemas e dificuldades inerentes aos contextos locais que necessitariam atenção”. A situação se agrava pela retroalimentação das duas principais orientações: o PISA e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). O resultado é “[...] um processo de estandardização que influencia não somente as ações e escolhas de políticas educativas em nível federal, mas também nos estados e municípios” (Vilani e Oliveira, 2018, p. 1357).

O Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) é um conjunto de avaliações externa de larga escala composto pelas: Avaliação da Educação Infantil, Avaliação do 2º ano do Ensino Fundamental, Avaliação de Ciências Humanas e Ciências da Natureza para o 5º ano do EF e Avaliação de Ciências Humanas e Ciências da Natureza para o 9º ano do EF. Além das avaliações sobre os estudantes, fazem parte: o questionário eletrônico para Secretário Municipal de Educação, os questionários eletrônicos para Diretores de Escola, o questionário dos Professores da Educação Infantil e os questionários eletrônicos para Professores de Ensino Fundamental e Médio das áreas avaliadas.

O Saeb e as taxas de aprovação, reprovação e abandono, apuradas no Censo Escolar, compõem o Ideb. Porém, isso não quer dizer que a educação básica brasileira seja avaliada por duas perspectivas distintas. O Ideb foi concebido a partir da compatibilização das proficiências observadas no PISA, de modo que a nota 6,0 no Ideb corresponde à média dos países membros no exame da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Portanto, na prática, os dois sistemas padronizados de avaliação são concebidos a partir de fundamentos definidos pela OCDE. Eles se retroalimentam e orientam as políticas educacionais brasileiras desde os mesmos fundamentos teóricos, políticos e ideológicos.

A proeminência da OCDE retira do Estado brasileiro a soberania na formulação de políticas educacionais. Se, por um lado, a “caneta” continua com as autoridades políticas do Brasil; por outro, os pressupostos teóricos do quê e para quê se avalia, os indicadores decorrentes das avaliações e prescrições sobre possíveis “correções de rota” advém da organização, que é um ator transnacional. Essa perda de soberania nacional sobre a formulação de políticas educativas aumentou desde 2013, quando chegou ao Brasil o PISA Governing Board (PGB). A partir daí o Brasil participa da tomada de decisões sobre o PISA, mesmo não sendo membro da OCDE (Vilani e Oliveira, 2018).

Notem que o PISA não é apenas um instrumento de coleta de informações sobre a educação básica para subsidiar a decisão das autoridades brasileiras para políticas educacionais contextualizadas às questões nacionais. É um programa com background político e ideológico que orienta o desenho de políticas educacionais. A submissão do país a esse programa foi uma escolha política tomada nos anos 1990 e aprofundada, sobretudo, a partir de 2013. Escolha encabeçada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia vinculada ao Ministério da Educação e aceita acriticamente pelos níveis superiores dos governos brasileiros. A questão, portanto, não é a contrariedade intransigente à aplicação do exame e do debate sobre resultados; mas o necessário olhar crítico para a submissão ao programa que resulta na aceitação dos resultados como balizadores de políticas públicas educacionais que desconsideram as realidades locais de um país tão diverso.

Além disso, os fundamentos ideológicos que estimulam à adesão ao PISA são tão arraigados que levam à tomada de decisões empacotadas descontextualizadas dos diagnósticos da realidade social, econômica, cultural e geográfica dos estudantes afetados. 


E quais fundamentos ideológicos me refiro?

          Implicitamente, os debates na opinião pública querem fazer crer que essa avaliações constituem técnicas neutras de aferição de aprendizagem. Porém, o PISA nasce com uma clara orientação "do quê" e "para quê" avaliar. "É o paradigma do aprender a aprender que orienta e estrutura o conteúdo do PISA" (Rodrigues, 2018, p. 70). Ou seja, o exame incorpora o relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) de 1996, liderado por Jacques Delors, preconizando os chamados "Quatro Pilares da Educação".   

A leitura feita a partir dos relatórios emitidos pela autoridade responsável, a OCDE, indicam que os fundamentos e categorias ideológico/filosóficas do PISA nada mais são do que uma ramificação epifenomênica do escolanovismo – uma nova roupagem composta por um conjunto de pedagogias que formam o ideário chamado learning to learn, ancorando-se na ideologia da empregabilidade para enraizar a Teoria do Capital Humano nas reformas estatais da educação nos países da periferia do capital. Além disso, os elementos teóricos e ideológicos do learning to learn fundamentam os relatórios, mostrando a articulação e a relação dos critérios de mensuração do PISA para com as orientações das atuais políticas de formação docente para a educação mundial (Rodrigues, 2018, p. 77).

      Mais do que isso: ao demandar certas políticas educacionais existem objetivos políticos e ideológicos, não se trata de uma melhoria em abstrato, mas uma orientação politicamente consciente:

Os Estados da periferia do capital são orientados, portanto, a envolver suas reformas sob parcerias com o setor privado e com organizações não governamentais no intuito de prover não somente o conhecimento e o pessoal necessário ao processo produtivo em expansão, mas todo o quadro de valores que legitimam a atual sociabilidade e que mascaram a alternativa de mudança radical de um sistema cujo objetivo é formar indivíduos devidamente educados e condicionados a reproduzir um ambiente de dominação estrutural que é encarado como natural e imutável (Rodrigues, 2018, p. 76).

       Nada mais estratégico que ocultar os objetivos político-ideológicos para induzir a aceitação acrítica. É, portanto, necessário analisar o PISA questionando essa suposta tecnicalidade isenta de ideologia. Afinal, tais referenciais (Teoria do Capital Humano, pedagogias do aprender a aprender/learning to learn) estão vinculadas "[...] ao pensamento pós-moderno, contribuindo de forma nefasta para o processo de esvaziamento e vulgarização da profissão de professor" (Rodrigues, 2018, p. 78). Daí a aceitação do "notório saber" e da titulação por áreas de conhecimento sem considerar os apectos científicos das fronteiras disciplinares para a formação docente.

         O olhar sobre o PISA deve se basear na "desnaturalização" e no "estranhamento" daquilo que se apresenta como neutro. É o olhar que Charles Wright Mills nomeou de "imaginação sociológica", que é um dos objetivos da Sociologia na Educação Básica, negligenciada pelas políticas educacionais e reformas recentes.


O PISA e o “novo” Ensino Médio


O PISA foi uma das principais justificativas para a Reforma do Ensino Médio, que concebeu o chamado Novo Ensino Médio. Nele, o modelo de itinerários formativos promove um esvaziamento da concepção científica dos currículos, o aligeiramento da formação, a aceitação de docentes sem formação disciplinar específica e de professores supostamente dotados de “notório saber” nos componentes curriculares profissionalizantes. Como se não bastasse, a incorporação da educação profissional não se dá a partir de sólidos fundamentos científicos e do estímulo do senso crítico, se baseia na lógica do treinamento e do adestramento para a realização de funções no mercado de trabalho. 

Esse “novo” Ensino Médio retoma concepções pedagógicas utilitaristas, baseadas na Teoria do Capital Humano, atualizadas para a nova realidade: o fim da “sociedade salarial”. Desse modo, compatibiliza o desenvolvimento dos requisitos de empregabilidade com estímulo ao “empreendedorismo”. Os elementos socioeconômicos estruturais estão ausentes: não há mais comunidade, Estado, ação e lutas coletivas. Há o “indivíduo contra o sistema”, ainda que este não esteja claramente definido. Logo, ele conduz a uma orientação individualista que, além de adestrar para o mercado, glamouriza a responsabilização individual na luta pela sobrevivência. 

Apesar de compartilhar o fundamento ideológico pró-mercado das organizações transnacionais, como a OCDE e a UNESCO, as decisões políticas sobre a educação brasileira radicalizaram a lógica utilitarista e o esvaziamento do senso crítico a partir de 2016. Na prática, mergulharam mais fundo na implementação de políticas neoliberais/ultraliberais que os programas educacionais estavam propondo. O “novo” Ensino Médio, por exemplo, abandona a formação crítica de um modo exacerbado e nada indica uma mudança de orientação no curto-prazo: as fundações empresariais de educação conseguiram lugar de destaque no Ministério da Educação contando com a adesão da ex-Secretária-Executiva, Izolda Cela, e com a simpatia do Ministro Camilo Santana.



Plantando joio e esperando trigo ou “Silêncio! Deixe tudo como está”


A reação de jornalistas das grandes empresas de comunicação sobre o último resultado do PISA estão entre o cinismo (intencional) e o autoengano pela profunda incapacidade de reflexão. Dessa vez, se fazem de surpresos com o fato do Brasil ficar em 44° entre 57 países na avaliação sobre criatividade e, como se não bastasse, desassociam o resultado do rumo geral das políticas educacionais brasileiras, transferindo exclusivamente a aspectos individuais, familiares e, genericamente, ao excesso de uso das redes sociais.

Ora, os resultados educacionais se constroem a partir de causas múltiplas. Portanto, não é que esses fatores mencionados não tenham contribuído, mas é curioso que não apareça no debate o esvaziamento crítico do currículo oficial (por exemplo, a redução da carga horária de Arte, Filosofia, Ciências Humanas, etc.) e o efeito do espaço dado a grupos e debates que negligenciam a formação dos estudantes criando um currículo oculto acrítico, dogmático e instrumental (por exemplo, iniciativas como Escola Sem Partido). Isto é, a defesa do “novo” Ensino Médio e a conivência com ataques ao caráter científico e laico da educação pública agravam o cenário, apesar do silêncio dos “inocentes”. Agindo desse modo, não deveria causar espanto que o Brasil esteja empatado com Peru, Arábia Saudita, Panamá e El Salvador.

Vamos aos fatos: o conceito de criatividade avaliado no PISA é "a competência para se envolver produtivamente na geração, avaliação e melhoria de ideias que possam resultar em soluções originais e eficazes, avanços no conhecimento e expressões impactantes da imaginação". A prova envolve: a escrita, a expressão visual, a resolução de problemas sociais e a resolução de problemas científicos. [1] 

Considerando a redução de carga horária e o ataque à legitimidade da Arte, da Filosofia e das Ciências Humanas, é irreal esperar que seja regra (e não exceção) a proposição lógica de solução para problemas sociais e a capacidade de escrever textos coerentes e profundos a partir da apreciação e interpretação de imagens. Ademais, a conivência com o negacionismo científico (antivacinas, negacionistas climáticos, etc), a promoção do “palpite” e da “opinião”, o destaque a todo e qualquer influencer não parece compatível com a expectativa de solução a problemas científicos.

Logo, ocultar as consequências das escolhas exageradamente pró-mercado na formulação de políticas educacionais e no debate sobre educação cria apenas espantalhos. Como, por exemplo, as redes sociais e a Internet. Devo ponderar o óbvio: as redes sociais influenciam, sim, na formação e na socialização dos jovens, mas elas não são exclusivamente um problema brasileiro ou dos países com mau desempenho, bem como outros países passam por modificações nas relações familiares.

Não é trivial que a maioria das empresas de comunicação oculte que o relatório do PISA alertou também para insegurança alimentar, instabilidade emocional como fatores que atrapalham o desenvolvimento do pensamento criativo[2]. Há, portanto, problemas sociais, econômicos e emocionais agravados pelas crises de 2014-16 e pela pandemia. No entanto, tais problemas foram brutalmente intensificados pelos cortes de recursos para políticas e serviços sociais, como educação, saúde e seguridade social. Isso sem contar a necessidade de debater o custo por aluno da Educação Brasileira (não o montante total para a área ou percentual em relação ao PIB). Em grande medida, a decisão para retirar dinheiro das áreas sociais e proteger os recursos destinados ao sistema financeiro é reflexo da mesma ideologia excessivamente pró-mercado que orienta as políticas educacionais.

Romper esse silêncio sobre importantes elementos da avaliação implicaria admitir que a classe dominante e a elite política brasileiras foram longe demais até para os defensores mais racionais da lógica pró-mercado. O horizonte das políticas educacionais implementadas, sobretudo, após 2016 aponta para uma distopia do capital, para uma realidade que nenhum país minimamente civilizado deseja para si.


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* Jefferson Nascimento é doutor em Ciência Política, professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP) - campus Sertãozinho, membro no Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA) e autor do livro “Ellen Wood: a luta pela democracia e o resgate da classe” (Editora Appris). 


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Fontes:

Rodrigues, B. A.. O pisa e o problema da negação do conhecimento: uma crítica marxista ao discurso da educação para a cidadania global. 2018. 109f. - Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-graduação em Educação, Fortaleza (CE), 2018.

Villani, M., & Oliveira, D. A.. (2018). Avaliação Nacional e Internacional no Brasil: os vínculos entre o PISA e o IDEB. Educação & Realidade, 43(4), 1343–1362. https://doi.org/10.1590/2175-623684893

quinta-feira, 30 de maio de 2024

MBL, Brasil Paralelo e Fundação Lemann juntos na formação do trabalhador sem emprego

 

Foto: José Fernando Ogura/AEN

* Leonardo Sacramento


Por que a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo está usando vídeos do Brasil Paralelo e MBL?[i] Por que fundações de bancos e bilionários, como Fundação Lemann, Instituto Itaú Social e Instituto Ayrton Sena, se instalaram no Ministério da Educação? Qual é a relação do Brasil Paralelo e MBL com a Fundação Lemann, Instituto Itaú Social e Instituto Ayrton Sena? Qual é a relação entre revisionismo reacionário e neoliberalismo? Qual é a articulação de institutos da burguesia e “movimentos” da extrema-direita com as propostas de Educação Integral, Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e Novo Ensino Médio?

A esquerda defende uma formação ampla e humanista vinculada ontologicamente ao trabalho, às artes, à filosofia e à compreensão da realidade, ou seja, uma educação cujo princípio esteja no trabalho enquanto elemento que nos faz humanos. A classe dominante, em contrapartida, sempre impôs uma educação para o emprego, ou melhor, à adaptação ao emprego. Formar, à luz do taylorismo, do fordismo e do toytismo, o trabalhador produtivo. Contudo, estamos sob o neoliberalismo. A nova proposta educacional do capital é formar para o “não emprego”, pois não existem mais. Dessa forma, o neoliberalismo transforma educação integral em educação de tempo integral procurando preencher o tempo do jovem sem emprego com uma matriz distinta da formação parcializada sob a acumulação fordista/taylorista e/ou toyotista. A parcialidade não é mais suficiente.


A conjuntura neoliberal é complexa. A expectativa da geração mais nova de ultrapassar a renda dos pais, reproduzindo ao menos os seus empregos, em conformidade com o sonho da classe média dos Estados de Bem-Estar Social nos países centrais no pós-guerra, não existe mais. Há duas gerações, no mínimo, a renda cai em relação aos pais. Se antes setores específicos da classe trabalhadora tinham acesso à casa própria, emprego razoavelmente estável e um salário com bom poder aquisitivo, hoje se amontoam gerações de jovens sem qualquer expectativa de reprodução positiva de classe, resultando na ascensão de ideologias fascistas da extrema-direita sobre jovens homens e brancos, como o neonazismo.


Explicações simplistas trabalhadas nas redes sociais e deep web, como as que responsabilizam a imigração nos países centrais e as políticas afirmativas no Brasil, são propagadas abertamente como um falso paradoxo à esfinge do bom liberal que se utiliza do fascismo para aprovar reformas ultraneoliberais. Os banqueiros também disputam os jovens e, não paradoxalmente, na prática se aliam a movimentos de extrema-direita vinculados à essência de qualquer grupo neonazista, como o MBL e o Brasil Paralelo. O negacionismo é um método político. Somente é possível negar a exploração capitalista sob a hegemonia da acumulação rentista por meio da negação da História (materialismo histórico), transformando o indivíduo em senhor de si, ou como dizia Hayek, no indivíduo soberano, inclusive (por que não?) em oposição à soberania do Estado-Nação.


Para as fundações de banqueiros e bilionários, faltariam aos “pobres” estudo e educação para gerarem renda, ressuscitando preceitos apologéticos da Teoria do Capital Humano, agora insuflados pela Teologia da Prosperidade. Essa nova proposta dialoga com a defesa de uma escola bifurcada, uma para a classe trabalhadora e outra para a classe média tradicional e a burguesia, ao mesmo tempo que se aproxima de problemas urgentes da classe trabalhadora, como o afastamento do filho da violência. Logo, é eficiente politicamente.


A educação em tempo integral, a BNCC e o Novo Ensino Médio se fundamentam em teorias e propostas utilitaristas, solipsistas e fragmentadas, com a apresentação de proposituras anticientíficas que mitificam a realidade, como o empreendedorismo. Para tanto, fundamentam-se em uma lógica oficineira, na qual tudo pode ser conhecimento escolar por meio de uma transposição mecânica da ideologia empresarial para a classe trabalhadora (“pequeno patrão”).


Os professores não devem mais ter formação, pois devem ser polivalentes, práticos e com formação “fluída”, derivando uma enorme fragmentação da realidade que aliena ainda mais o aluno por tornar a miséria produto de suas escolhas.  


Ciência não existe mais. É um ensino negacionista. É o que explica a utilização de vídeos do Brasil Paralelo e MBL, uma vez que agora os conhecimentos não científicos são o parâmetro pedagógico ideal para a adaptação da classe à exploração neoliberal (precarização, somatização de doenças e ausência de perspectiva). Ocorre que não são apenas os vídeos. O golpe já foi dado.


A implosão das bases cientificas do trabalho pedagógico é legalizada e legitimada na BNCC e no Novo Ensino Médio. Essas duas medidas relativizam o conhecimento científico, tornando-o em saberes e competências a serem apreendidos pelo jovem em um mundo que seria informatizado e tecnológico. Se o Brasil passa por um processo de desindustrialização e desnacionalização de sua economia pouco importa, pois a tecnologia pensada e trabalhada é a do senso comum, é a das plataformas precarizantes como Uber e Ifood e de aplicativos de celular. Em outras palavras, é a radicalização de uma abordagem fetichista da tecnologia submetida à perspectiva do consumidor e do trabalhador precarizado formados pela ideologia do pequeno patrão.


O negacionismo historiográfico, histórico e sociológico é fundamental para os segmentos sociais dominantes porque naturaliza a posição que possuem, transmitindo a ideia liberal-escolanovista de que conseguiram o status em uma disputa aberta e justa sobre um sistema meritocrático que formou uma sociedade alicerçada na “hierarquia das capacidades”.[ii] O autoritarismo da escolha da profissão, por exemplo, se daria apenas se o Estado interviesse, jamais como produto das relações econômicas, sociais e políticas.


Assim, assiste-se à glorificação pelo ideário liberal das figuras do herdeiro escravista oitocentista e do bilionário salvador enquanto o mesmo ideário justifica a oposição à legislação trabalhista, às cotas e ao Bolsa-Família, refutando qualquer intervenção do Estado (autoritarismo), inclusive para salvamento de vidas em eventos ambientais e climáticos, como ocorre no Rio Grande do Sul.  


É aqui que entram o MBL e o Brasil Paralelo na jogada. Negação do papel do escravismo, do embranquecimento, da segregação e da desigualdade para a concentração de capitais e da propriedade privada reforça a ideologia da classe dominante que não pode mais disfarçar as mazelas do neoliberalismo, ao mesmo tempo que precisa naturalizar ideologicamente os seus capitais ocultando as suas origens e seus “pecados”. No limite, há a defesa da negação da exploração do capital sobre o trabalho, cuja defesa das mazelas do capitalismo em sua fase rentista fetichiza o indivíduo “selecionado e forte” (darwinismo social), transformando-as em currículo positivo ao jovem com uma educação adaptativa para o não emprego. Chamemos de fetichismo da meritocracia.


Antes do negacionismo biológico e físico, que negam a vacina e o formato do planeta, o negacionismo histórico, historiográfico e sociológico foi, por anos, arma de luta da classe dominante usada por grupos que se popularizaram com forte financiamento do capital e auxílio dos algoritmos das plataformas privadas de bilionários estrangeiros. Legitimado, o negacionismo entrou no currículo articulado no Ministério da Educação por fundações de direito privado ligados a bilionários objetivando naturalizar a acumulação rentista.


A atuação desses grandes bancos não pode ser entendida como normalmente se apresenta, na qual estaria circunscrita em ganhar recursos de secretarias e ministério e isentá-los no imposto de renda. São aspectos absolutamente marginais do trabalho das fundações de bilionários. Muitas vezes, a atuação desses institutos não possui qualquer transferência de recursos públicos.[iii] Não faz sentido pensar com essa variável mecanicista, pois nenhum setor acumula mais do que bancos e rentistas por meio da isenção de lucros e dividendos e das exorbitantes taxas bancárias e de juros. O interesse está na formação do trabalhador neoliberal.


É que se percebe nas propostas do governo do Estado de São Paulo, possuidor da rede que mais avançou em tais políticas em virtude de sua aplicação ininterrupta por 30 anos. Reproduzimos no presente texto uma proposta da aula de “liderança” da rede estadual para alunos do ensino médio. As três primeiras fotos são da aula de “liderança”, tratando um conceito não científico, a resiliência. Aqui o aluno é preparado para suportar o não emprego e convencido a entender a realidade a partir de sua vida e “escolhas”.

 

Foto 1

 

Foto 2

 

Foto 3


A autora utilizada (foto 2), Diane L. Couti, é uma coaching (jornalista) que escreveu um artigo denominado How Resilience Works na Havard Business Review. Não há qualquer citação de dado científico no pequeno artigo, o qual é jornalístico e panfletário. As referências da jornalista são frases de CEOs de grandes empresas em que é destacado um pensamento do CEO Dean Becker: “Mais do que educação, mais do que experiência, mais do que formação, o nível de resiliência de uma pessoa determinará quem terá sucesso e quem fracassará. Isso é verdade no adoecimento de câncer, é verdade nas Olimpíadas e é verdade na sala de reuniões”. Qual é o parâmetro científico dessa besteira normalmente proferida por coachings?


A conclusão da aula (foto 3) exige que os alunos passem a aplicar o que aprenderam, a “resiliência”, encarando “a realidade” e buscando “sentido” para “improvisar”. A realidade, produto das relações de produção, da exploração e da desigualdade, é mistificada porque deve ser apreendida para ser encarada, ou melhor, aceita como ela é para ser suportada. Não existe mais a aprendizagem, a compreensão e a análise. A improvisação, por sua vez, é uma figura de linguagem malfeita para que o aluno “se vire”.


As três fotos seguintes mostram o que seria a aula de sociologia.

 

Foto 4


Foto 5


Foto 6


 

Concatenada com a aula de “liderança”, os alunos são convencidos na aula de sociologia a acreditar que “ansiedade” e “depressão” são frutos do “consumismo” porque viveriam em uma “sociedade de consumidores”. Aqui se tem literalmente a ideia apregoada por qualquer think tank neoliberal que não existiriam classes sociais, mas apenas indivíduos consumidores, na qual a sociedade não possuiria qualquer dimensão coletiva por estar submetida aos gostos dos consumidores e à precificação das mercadorias em relação de oferta e demanda cuja variável determinante seria o consumo. Logo, quem tem poder é o consumidor em detrimento da cidadania emanada da Constituição de 1988 (políticas sociais), do trabalhador e do movimento político.


Nega-se a existência de classes, racismo, especulação imobiliária, concentração de terra, acumulação de capitais, exploração etc. Mesmo conceitos mais amenos, como gentrificação, são expelidos do material didático. A aula de sociologia dialoga com a aula de “liderança” na medida que exige ao aluno praticar um novo comportamento adaptativo e adaptável à “realidade”, com “condutas éticas frente aos desafios da sociedade de consumidores”. Se há alguma luta, é como consumidor, escolhendo não consumir produtos de empresas “que prejudicam seus empregados, a sociedade ou o meio ambiente”. O pronome possessivo “seus” dando direito de propriedade à empresa não foi um erro. 


Se o aluno enquanto indivíduo conseguir superar o “consumismo” por meio do poder da mente (charlatanismo), ou seja, não querer consumir o que é convencido (sugestionado) por meio de propagandas de grandes complexos industriais-financeiros desde que nasceu, não terá “depressão” e “ansiedade”. A lógica implícita é a de uma aula de autoajuda, não ornando com os dados mais básicos: o grupo social que mais comete suicídio é o de trabalhadoras negras, aquelas que, comprovadamente, possuem menor renda, piores trabalhos, menor consumo e, por conseguinte, o que o material chama de “consumismo”. O material irresponsavelmente estabelece uma relação criminosa de causa e efeito entre consumo e depressão, na qual a depressão poderia ser evitada com um consumo “responsável” (sic!).


A entrada do Brasil Paralelo e do MBL é uma consequência coerente do negacionismo neoliberal. Na prática, tais movimentos de extrema-direita já estão na educação brasileira há alguns anos, especialmente no Ministério da Educação, representados oficialmente por Fundação Lemann, Instituto Itaú Social e Instituto Airton Sena. É uma proposta de educação para o não emprego amparada exclusivamente pelo negacionismo científico como método didático-pedagógico e matriz curricular nacional. É a expressão da vitória do neoliberalismo.

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*Leonardo Sacramento 
É professor de educação básica na rede pública de Ribeirão Preto e pedagogo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, atualmente pesquisa a relação entre movimentos conservadores e liberalismo. É autor dos livros Universidade Mercantil: um estudo sobre a relação entre universidade pública e capital privado (Appris, 2019), O Nascimento da nação: como o liberalismo produziu o protofascimo brasileiro (2023, Editora IFSP) e Discurso sobre o branco: notas sobre o racismo e o apocalipse do liberalismo (2023, Alameda). 


[iii]A Fundação Lemann defendeu o acordo de cooperação entre o MEC (Ministério da Educação) e a ONG MegaEdu, financiada pelo grupo ligado a Jorge Paulo Lemann. Em nota publicada na 2ª feira (25. set. 2023), a fundação diz que a parceria ‘não envolve nenhum tipo de transferência de recursos’”. Disponível em https://www.poder360.com.br/educacao/fundacao-lemann-defende-parceria-de-ong-com-o-governo/#:~:text=A%20Funda%C3%A7%C3%A3o%20Lemann%20defendeu%20o,tipo%20de%20transfer%C3%AAncia%20de%20recursos%E2%80%9D.


quinta-feira, 23 de junho de 2022

"Tutto nel mondo è burla"

Fonte: Metrópoles.

"Tutto nel mondo è burla" 

Milton Lahuerta* 

Roberto Schwarz nos deu uma chave analítica definitiva quando colocou no centro da interpretação da sociedade brasileira a escravidão, agregando à violência que lhe é constitutiva o favor e as relações de dependência pessoal que ela gera. Orientada por Marx e inspirada em Antonio Cândido da "Dialética da malandragem", a reflexão de Schwarz possibilita uma abordagem que permite tratar de nossa miséria ideológica e das ambiguidades do liberalismo, sem cair em armadilhas culturalistas moralizantes, mas procurando apreender a determinação social das ideias e dos valores. Lança luz assim sobre a debilidade da ordem normativa e sobre aquilo que se convencionou chamar de "jeitinho brasileiro" (Roberto da Matta), para caracterizar a cultura política que vige no país e tratar de nossa imensa dificuldade de estabelecer regras impessoais e de efetivar a universalização da lei. No mais das vezes, diante de um ilícito, a tendência inicial é a de nos mostrarmos extremamente rigorosos e de exigirmos punição exemplar para quem o pratica, até que isso envolva alguém com quem mantemos relações pessoais ou admiramos. Nessas situações, é comum a manifestação de uma espécie de "moralidade elástica" que faz com que uma parcela expressiva dos brasileiros seja extremamente leniente com os "seus" e absolutamente rigorosa com os "outros", com os "diferentes". Esse mecanismo ideológico é constitutivo de nossa cultura política e nos permite compreender a debilidade da ordem normativa no país, traduzida no bordão que diz que aqui "tem lei que pega e lei que não pega" e pelo culto da malandragem como estilo de vida e expressão do "caráter nacional".

Essa pequena introdução se justifica em face das reações daqueles que insistiam no "mantra" de que "não tinham bandidos de estimação" e que agora mostram-se totalmente coniventes com relação ao ex-ministro da Educação e aos "pastores" que foram detidos pela PF. É notório que Milton Ribeiro, que não passa de um "homem sem qualidades", foi indicado pelo (des) presidente para cumprir rigorosamente suas ordens e para agradar sua base de apoio evangélica, em seus delírios pseudo moralistas. Há que se notar porém que, diferentemente do que parece num primeiro momento, estamos diante de uma situação na qual os verdadeiros "bandidos", mais até que os pastores salafrários e o ex-ministro metido a pistoleiro, com Ciro Nogueira no comando, articulam-se com prefeitos, transformando as gordas verbas do FNDE num meio de encher os bolsos -- os seus e o dos aliados. O nome disso é desvio de função e apropriação indébita do Fundo Público. E sem sombra de dúvida pode ser enquadrado como um caso de corrupção em larga escala e de formação de quadrilha. O problema é que o chefe dessa quadrilha é justamente o (des) presidente, que orientou o ex-ministro pistoleiro a dar um atendimento especial aos "pastores" salafrários, com quem, inclusive, ele se encontrou dezenas de vezes no palácio do governo. Como medida para tentar se blindar e para manter o "discursinho" de que em seu "governo" não há corrupção, o (des) presidente decretou 100 anos  de sigilo sobre esses seus encontros com os "pastores" e, depois de dizer que "queimava a cara" pelo ex-ministro, jogou-o aos leões como se tudo tivesse ocorrido por falha exclusiva dele!

Haja "moralidade elástica" para seus apoiadores continuarem a justificar tanto descalabro! 

* Milton Lahuerta é professor de Teoria Política na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara. É autor de inúmeros artigos, capítulos de livros e coletâneas nas áreas de pensamento social brasileiro, sociologia dos intelectuais e teoria política. Publicou, em 2014, o seu "Elitismo, autonomia, populismo - Os intelectuais na transição dos anos 1940" pela editora Andreato.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Divulgação - "Abraço"

 


O Cine Darcy convida a assistir ao filme "Abraço", dirigido por DF Fiuza, que retrata os desafios dos educadores brasileiros e, sobretudo, a coragem das trabalhadoras da educação do Estado do Sergipe na organização de sua categoria profissional numa época de destruição institucional e negação de direitos.

Exibição: 11/10/2021.

Acesso: https://www.facebook.com/watch/?v=953616712169769

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Em plena expansão da variante Delta, crianças campistas serão enviadas para “covidários” presenciais


Em plena expansão da variante Delta, crianças campistas serão enviadas para “covidários” presenciais*

* Publicado originalmente no Blog do Pedlowski.

Marcos Pedlowski

Em plena disseminação da perigosíssima variante “Delta” no Brasil, eis que como pai estou sendo praticamente forçado a recolocar o meu filho em aulas presenciais que estão sendo impostas pela rede particular de ensino de Campos dos Goytacazes, sob os auspícios da gestão do prefeito Wladimir Garotinho (PSD).

Essa predisposição de jogar roleta russa com a saúde de de milhares de crianças vem acompanhada de um “termo de responsabilidade” que coloca sob os pais toda a carga em caso de algum filho adoecer com COVID-19.  Esse termo de responsabilidade recaindo sobre as costas dos pais é um atestado de incapacidade das escolas cujos proprietários sabem que não têm como garantir a perfeita higienização dos ambientes escolares ou, tampouco, impedir que crianças sejam crianças e passem a ter a interação física que as faz crianças.

O interessante é que a maioria das escolas certamente está reinserindo os seus estudantes/clientes dentro das escolas sem que os profissionais de educação estejam pelo menos com a primeira dose da vacina.  Essa seria uma obrigação mínima para a retomada da presença das crianças nas escolas, mas nem isso a Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes cuidou de colocar como obrigação dos proprietários como condição para a retomada das aulas presenciais. E friso novamente: em plena disseminação da variante Delta!

A consequência disso que narrei é que as crianças campistas não estão sendo retornadas para escolas, mas para covidários. Quero apenas ver como ficarão os proprietários e os gestores públicos que estão permitindo que isso venha a ocorrer quando os primeiros surtos ocorrerem. Adianto que de minha parte não haverá sossego para os que estão operando essa transformação.

E eu pergunto para que está se fazendo isso? Pela preocupação com a aprendizagem das crianças ou para a retomada das receitas geradas quando as crianças estão presencialmente nas escolas (agora transformadas em covidários)? 

domingo, 21 de fevereiro de 2021

O servidor público não é seu inimigo


O servidor público não é seu inimigo

 

Paulo Sérgio Ribeiro & Renata Saul*

 

Vivemos em tempos de pandemia da Covid-19, acumulando perdas materiais (muitos perderam parte do salário; outros tantos, emprego), afetivas (quantas pessoas não pranteiam familiares, amigos?) e, por vezes, temos perdido a força para retomar uma postura cidadã diante dos absurdos que assolam nosso país desde a pandemia, que não é um problema exclusivo do Brasil, vide sua escala mundial.

 

Tivemos toda sorte - ou azar, pelo infeliz trocadilho - de descrédito sobre a gravidade da pandemia, a contar o volume de desinformações chancelado por autoridades públicas e formadores de opinião que, na mídia corporativa, mantêm-se auxiliares do negacionismo cientítico. No Brasil de Bolsonaro, a ciência e o conhecimento têm sido alvo de ataques e, a despeito do posicionamento de autoridades na comunidade científica - biólogos, infectologistas, cientistas sociais etc. -, nossos governantes (com honrosas exceções) resolveram subestimar a crise sanitária e isto nos custou e tem custado muito.

 

Efetivamente, não temos um plano nacional e tampouco articulação dos entes federativos – com exceção do consórcio experimentado na região Nordeste[1] - para atravessar esta conjuntura com a necessária racionalidade.

 

Não há plano para a imunização em massa, não há plano para a retomada econômica nem ações e programas consequentes no âmbito da justiça redistributiva para as categorias profissionais essenciais e/ou grupos vulneráveis durante e após a pandemia.

 

Confessamos que, a princípio, o título deste texto seria “O professor não é seu inimigo”, uma vez que a co-autora é docente, focalizando a situação dos(as) professores(as), sejam das escolas particulares ou públicas, posto serem eles(as) sujeitos(as) à críticas, quase sempre desconexas da realidade intramuros das escolas brasileiras, por estarem trabalhando em casa, com acesso à Internet ou através do envio de material didático, tal como ocorre na maioria das escolas públicas.

 

Contudo, seria omisso de nossa parte desconsiderar que somos servidores públicos de esferas de governo distintas – a co-autora, servidora pública municipal; o co-autor, servidor público federal – e, por conseguinte, que o trabalho remoto desempenhado por ambos responde a desafios próprios à sua circunstância. Se o assim o é, o que nos aproxima na tempestade que turva a visão de uma margem segura para as nossas desiguais embarcações?  

 

Talvez, o que nos vincule seja um esforço de Sísifo[2] para navegar contra a ideologia neoliberal que cimenta uma perspectiva do serviço público própria ao individualismo possessivo. Individualismo possessivo: tomar uma comunidade escolar como objeto exclusivo de sua fruição enquanto indivíduo que se quer desimpedido em sua ação no mundo, isto é, sem que os vínculos sociais daquela comunidade escolar com a realidade extramuros interfiram nos seus interesses imediatos e nas exigências caprichosas de sua idiossincrática personalidade.

 

O recorte de classe das “famílias” que exercem pressão pelo retorno às aulas presenciais chega a ser caricato. Algumas delas, que há não muito tempo se mostravam simpáticas ou até entusiastas do “home schooling”, agora clamam pela função social da educação escolar, a despeito dos evidentes riscos de reunir crianças e jovens em uma pandemia sem controle, alegando supostos prejuízos duradouros ao seu desenvolvimento humano.

 

Excelsa realização do nosso capitalismo periférico: reduzir a questão do desenvolvimento às afeições espontâneas de pais, mães e responsáveis cujo “tempo livre” – um recurso desigualmente distribuído entre as classes sociais – não pode ser violado, deixando em suspenso uma visão de sociedade na qual a proteção da infância e da juventude não seja tragada pelo “estado de natureza” desvelado pela pandemia: todos, impulsionados pelo seu desejo irrefreável, veem-se com direito a tudo, sem quaisquer garantias de que a vida alheia – a começar pela dos(as) professores(as) e demais educadores(as) - seja poupada nessa dinâmica fratricida.   


Questiona-se por que o retorno às aulas presenciais não se dá, se mesmo sem vacinação, os profissionais da saúde e os que estão em atividades de apoio trabalharam sem vacina. Os policiais trabalham, ainda que sem vacina. O comércio funciona, ainda que sem vacina e por aí vai. Toda sorte de insultos, principalmente voltados ao(à) professor(a) da escola pública, é proferida. Mas quando evocaram o argumento de tantos outros servidores permanecerem trabalhando desde o inicio da pandemia e sem nem ao menos um cronograma de vacinação, começamos a atentar para outra perspectiva: como a lógica da exclusão (e não do exercício da cidadania plena e do Estado de bem estar social) se alojou entre nós. Não lutamos pela ampliação de direitos, mas por retirá-los das categorias profissionais que conquistaram, parcialmente, um mínimo de dignidade. Não se trata de privilégios, mas sim de reivindicar condições de segurança para o exercício de sua função pública.

 

Quando pensamos no risco que seria para a co-autora que vos escreve e para todos que a cercam estarem em uma escola não imunizada e alguém trouxe a questão de que os policiais continuam trabalhando e não imunizados também, o primeiro pensamento que nos ocorreu é o de quão cruel é a situação daquele servidor público.

 

O Governo Bolsonaro, na medida em que já tinha sido anunciada a existência de um conjunto de vacinas em fase final de testagem, deveria ter elaborado o plano de vacinação de toda população, mas, ao invés disso, vimos o presidente e demais autoridades públicas se valerem do negacionismo científico, da xenofobia contra os chineses e de bravatas calhordas contra a população. Chamamos de heróis nossos profissionais da saúde, mas não confirmamos uma inflexão no investimento alocado no Sistema Único de Saúde (SUS). Dissemos que os policiais estão em risco, mas não ponderamos a vacinação destes em nossas preocupações diárias. Comparamos shoppings lotados a escolas, mas não aceitamos o fechamento do comércio, porque a economia irá “ruir” e, por tabela, não admitimos que ações sociais (Bolsa Família, auxílio emergencial) desconcentrem renda e poupem vidas.

 

E, doravante, com frases de efeito vazias, sem fundamento crítico algum, vemos o Estado ser dilapidado porque estamos com raiva das categorias que compõem o “chão de fábrica” do serviço público, mas não percebemos o quanto de cidadania nos é privada a cada dia com a vigência da Emenda Constituição nº 95, que congela/sucateia investimentos públicos em educação, saúde, segurança e demais pastas que viabilizam a coesão social em um território no qual a nação perde substância ao converter-se num mero amontoado de gente.  

 

E daí, não é mesmo? A saúde mental do meu rebento e o estilo de vida que pais e mães de classe média nele projetam em primeiro lugar! Com assombro, assistimos à entronização do “indivíduo” na modernidade tardia, atomizado socialmente, incapaz, pois, de mediações mais realistas entre seus interesses ideais e as condições materiais dos cidadãos de cujos serviços prestados depende.

 

O deserto do real é aqui e agora e a nós, servidores(as) públicos(as), cabe suportar o peso do mundo esculpido com as ruínas do mundo pós-guerra e, não menos, quem reclama um Estado para chamar de seu desprovido de um senso de solidariedade genérica para com aqueles que habitam além do microcosmo de sua propriedade privada.


* Socióloga, Mestra em Cognição e Linguagem e Educadora.


[1] CONSÓRCIO NORDESTE. Ações de combate à pandemia. Disponível (aqui). Acesso em 21/02/2021.

[2] Sísifo: personagem da mitologia grega condenado a empurrar uma grande rocha para o topo de uma montanha e que, ao fazê-lo, testemunhava a inutilidade do seu esforço com a rocha descendo morro abaixo, levando a empurrá-la novamente em um ciclo sem fim.