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sábado, 21 de outubro de 2017

Normalopatia

Normalopatia*

George Gomes Coutinho **

Na última semana revisitei o caminho percorrido pelo neologismo “normalpatas”. Originalmente apresentado por Luiz Ferri Barros o termo foi apresentado para designar indivíduos com apego patológico ao conjunto de normas estabelecidas na sociedade, o que deriva tanto em uma percepção hipertrofiada das leis e afins quanto a uma idéia de “normalidade” distorcida. Em João Pereira Coutinho “normalpatas” adquire duas outras conotações: 1) “normalpatas” torna-se veículo para criticar a “normalização” e padronização dos sujeitos proposta pela psiquiatria; 2) melancolicamente redunda em uma justificativa para que preconceitos sejam inatacáveis e fiquem onde estão. Ou seja, Coutinho, ao fim e ao cabo, faz um uso a um só tempo crítico e conservador de sua apropriação da nova palavra. Este fato por si só já nos retira da assepsia da neutralidade. O entendimento humano e até mesmo o debate só aparentemente desencarnado sobre conceitos, termos e palavras jamais é desinteressado.

Dentre os caminhos de “normalpatas” há mais uma derivação, a que considero a mais produtiva: normalopatia. Tal como é discutida pelo ensaísta e professor titular de psicanálise na USP Christian Dunker, normalopatia é uma estrutura. Ou seja, não desconsiderando a adesão acrítica e quase fanática dos “normalpatas”, que se esforçam de maneira desmesurada em se apresentarem enquanto “normais”, há a pressão exercida pelo entorno sobre a subjetividade dos sujeitos. Na normalopatia nem só os “normalpatas” são os sofredores potenciais. Todos somos.

O que a reflexão de Dunker nos incita é a olharmos de forma desnaturalizada nossos padrões, normas, nosso zeitgeist (espírito-do-tempo). O que consideramos por normal e legítimo, aquilo que efetivamente se encontra na média comportamental aceita e concretizada nas ações e discursos, o que chamamos de ordem estabelecida, redunda em formas de se relacionar com os nossos arredores e implica em maneiras socialmente aceitáveis de sofrer e obter prazer. A normalopatia em que vivermos conforma o que temos de mais íntimo e profundo, nosso self, e o que há de aparentemente mais distante, as nossas instituições. O que inclui a política.

* Texto publicado em 21 de outubro no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 14 de agosto de 2016

O grande condomínio olímpico

O grande condomínio olímpico *

George Gomes Coutinho  **

No último ano Christian Dunker, professor titular em Psicanálise e Psicopatologia da USP, trouxe ao mundo a obra “Mal-estar, sofrimento e sintoma”, publicado pela Boitempo Editoral. O livro, extremamente ambicioso e potente em termos de correlações entre a teoria social e a psicanálise, apresenta como um dos seus grandes argumentos para interpretar o Brasil contemporâneo uma nova patologia social: a sociedade condominial.

Para Dunker, a sociedade condominial se caracteriza na prática como aquela dotada da criação de espaços artificiais privatizados e por vezes assépticos onde o controle repressivo, a homogeneização estética e social e a sociabilidade neurótica se encontram de mãos dadas. Encerrados em verdadeiras cidadelas adultos são infantilizados com a promessa, certamente impossível de se realizar, da supressão da complexidade diante do inevitável encontro com outro, o alter. O outro, em última instância, é todo aquele que não se enquadra nos parâmetros tradicionais e/ou desejáveis e nos lembra que neste universo não iremos conviver somente de forma entediante e previsível entre “meus iguais”. Este outro, ainda, traria o comportamento indesejável ou a crueza do real em sociedades que são, quer se goste ou não, plurais, complexas e, especialmente em nosso caso, francamente desiguais.  Nestes termos, shopping centers e condomínios são expressões de um mesmo fenômeno social.

Não é por acaso que o complexo olímpico carioca tem sido igualmente comparado a um shopping ou a um condomínio e seu funcionamento é análogo. Francamente repressivo, inclusive na batalha quase sem tréguas à liberdade de expressão e excludente quanto a todos “os não iguais” e sem o convite. Trata-se de uma grande área VIP. O objetivo é isolar o indesejável, o real, o imprevisível, como se assim fosse realizável. O grupo gestor local, o Comitê Rio 2016, se apresenta como o “síndico” ávido por considerar de forma autocrática o que pode ou não pode ser feito. Neste sentido, as manifestações visuais e pacíficas contra o governo interino foram inconstitucionalmente desbaratadas enquanto expressão do “real” não convidado. Afinal, o que é a Constituição de 1988 frente às leis soberanas e neuróticas de um condomínio?

* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 13 de agosto de 2016


** Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes