Mostrando postagens com marcador Ulrich Beck. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Ulrich Beck. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Covid-19 e conjuntura: Risco, catástrofe, percepção e tomadas de decisão – parte II


Covid-19 e conjuntura: Risco, catástrofe, percepção e tomadas de decisão – parte II
George Gomes Coutinho


“Chegaram totalmente impreparados ao seu encontro com a história (...)”

Antônio Scurati[1]


Foto do Centro de Campos dos Goytacazes, RJ, por George Coutinho em 25/03/2020


Na primeira parte desta reflexão, disponível aqui, apresentamos uma breve síntese[2] da proposta teórica de Ulrich Beck (1944-2015) que construiu em sua carreira as bases de sua profícua sociologia do risco. Para Beck não há propriamente uma pós-modernidade. O que temos é um processo, e é vital frisar que estamos falando de algo dotado de caráter processual, onde é possível observar a radicalização estrutural dos princípios modernizantes da sociedade nas últimas quatro ou cinco décadas, incluindo, por exemplo, tanto o encurtamento de distâncias (simbólicas e físicas) quanto o incremento de reflexividade.

Por obra da reflexividade há a ruptura da perspectiva de progresso unilinear e invariavelmente positiva. O incremento de reflexividade abre a percepção para o lado sombrio do progresso técnico-científico-industrial desnudando suas mazelas[3] dotadas de potencial irreversível e da possibilidade de tornar a vida humana até mesmo inviável. “Antropoceno” diriam alguns onde uma concepção cornucopiana de natureza e de produção se desmancham no ar.

Na modernidade radicalizada os Estados-Nacionais veem seus processos de tomada de decisão consideravelmente constrangidos na medida em que os riscos não respeitam necessariamente os limites fronteiriços tradicionais. A primeira versão de “Sociedade de Risco” de nosso autor, é importante notar, é apresentada ao mundo no longínquo ano de 1986 em plena conjuntura de uma tragédia cujos rebatimentos ameaçaram simplesmente parte da Eurasia. Falamos aqui de Chernobyl.

A descrição de uma sociedade auto-consciente de seus riscos e monitorando sistematicamente os mesmos envolve considerar, nas tomadas de decisão, o conjunto sofisticado de metodologias, dados, predições analíticas, modelagens matemáticas, etc.. Se a tensão entre leigos e especialistas é previsível neste cenário pelas linguagens e visões-de-mundo diferentes, Beck coloca que o sistema político não poderia seguir imune.

Em uma inspiração luhmanniana[4] lembramos que fazer política é tomar decisões tomadas de caráter vinculante. Portanto, a política é feita na sociedade, da sociedade e para a sociedade. Desta maneira, dadas as mudanças de caráter estrutural, Beck irá assinalar redirecionamentos sensíveis e qualitativos no modus operandi da política moderna[5].

Possivelmente compartilhando a clássica proposição weberiana acerca da modernidade 1.0[6], o parlamento seria o “centro da formação da vontade racional”[7] no âmbito político. Em outros termos: dada a heterogeneidade e complexidade das sociedades industriais, o que envolve assumirmos inclusive a diversidade de interesses e conflitos, os parlamentos são espaços que acomodam provisoriamente a natureza explosiva destas interações gerando sínteses, sempre imperfeitas, que redundam em decisões dotadas de caráter vinculante. O parlamento é o espaço por excelência da política em tempos normais, salvo os momentos onde lideranças extraordinárias se apresentam (Weber, 1997).

Na modernidade radicalizada os processos políticos não deveriam ignorar o incremento de reflexividade. Trata-se de ponto de não retorno. Disto deriva que mesmo nos processos de tomada de decisão no âmbito político a modulação técnico-científica se impõe. É fundamental ressaltarmos que na análise de Beck acerca da modernidade 2.0, não há atalho para o risco. Sendo o risco produto também do avanço do progresso industrial, seu caráter lusco-fusco de probabilidade e concretude constrange os atores políticos.

Beck tem uma perspectiva crítica desta fragilização da vontade política stricto sensu modulada pela ciência e por outros campos tecnificados. Para o autor, o acompanhamento crítico, público e transdisciplinar se coloca como via para a defesa em si da democracia cerceada por um possível futuro distópico de autocracias tecnificadas. Não se trata aqui de adesão ingênua ou apologética ao domínio científico, tal como em parte do senso comum mais cínico que faz a defesa das decisões “técnicas”, supostamente impolutas, e coloca de outro lado o âmbito político naturalmente decrépito e corrupto. Há mais problemas do que soluções no empoderamento dos grupos sociais que se apresentam enquanto agentes do progresso técnico-científico, sejam estes economistas, biólogos ou administradores.

Por outro lado Beck não é um reacionário. Ele não está aconselhando, de forma alguma, que se ignorem os diagnósticos e demais produtos do contraditório avanço técnico-científico. Ele está propondo é o amplo debate, nos moldes democráticos, e que a política também se informe de tais produtos e afins. Trata-se de apropriação crítica[8] onde a imaginação política não se torne raquítica. Mas, que também não enverede na irresponsabilidade de ignorar os fatos. Há a defesa de um equilíbrio fino, portanto, entre vontade política e avanço técnico-científico nos complexos processos de tomada de decisão na sociedade de risco.

De alguma maneira o autor descreve a fisionomia dominante da política por décadas em países cêntricos e periféricos onde novos movimentos sociais, instituições governamentais, ONG´s, empresas de consultoria, etc.. se apresentam como atores importantes para compreendermos as configurações das políticas públicas e do Estado. Banco Mundial, Greenpeace, WWF, Organização Mundial da Saúde, Freedom House, Eurasia Group, etc, não são nomes estranhos para quem acompanha o processo de criação, implementação e avaliação de políticas públicas de naturezas diversas. Estas organizações se destacam tanto por seu caráter transnacional quanto por materializarem e atuarem em recomendações, propostas e relatórios elaborados justamente por grupos dotados de alta qualificação, as autoridades do mundo técnico científico.

Trata-se de um fotografia do establishment. Com reservas e nuances podemos inserir Gerard Schroeder e Angela Merkel. Clinton, Bush Jr e Obama. Em nosso quintal FHC, Lula, Dilma e até mesmo Temer, O Breve. Mas, de lá até aqui decorreram mudanças eleitorais experimentadas fortemente nos últimos anos que são compreendidas como movimentos de crítica à globalização que caem no colo dos “perdedores” imediatos da classe trabalhadora, pobres e dotados de baixa qualificação. Mas, em paralelo pensamos que estes movimentos possam ser enquadrados também como um movimento de rebeldia contra o incremento de reflexividade que detectamos nesta modernidade 2.0. Falamos dos populismos de direita, e assim utilizamos a nomenclatura tal como empregada por Steve Bannon[9]. É neste cenário contemporâneo de disputa de narrativas políticas que a Covid-19 se depara e de onde já podemos detectar consequências trágicas nos processos políticos de tomada de decisão propriamente, tendo impactos diretos na vida e na morte de populações inteiras.

Continua...


[1] Citação retirada do texto “O fim de uma era” onde Scurati faz uma análise tão poética quanto sombria de Milão nestes tempos de pandemia. Uma das versões do texto em tradução para o português encontra-se em: https://vermelho.org.br/2020/04/05/o-fim-de-uma-era/, acesso em 06 de abril de 2020.
[2] Me concentrei propositalmente em determinados pontos da teoria para discutir os elementos que interessam para este ensaio experimental de sociologia e política. A teoria de Beck tem muito mais bifurcações do que os limites desse espaço poderiam dar conta.
[3] Beck já chamava a atenção para o problema dos “riscos desigualmente distribuídos” em uma sociedade de classes. Para a conjuntura do Covid-19 recomendo o texto “Corona vírus, desigualdade e sociedade global de risco” de Fabrício Maciel na mesma toada. O texto encontra-se disponível aqui: http://macielfabricio.blogspot.com/2020/04/corona-virus-desigualdade-e-sociedade.html.
[4] HELLMANN, Kai-Uwe. Aristoteles y nosotros. In: NAFARRATE, Javier (org.). Niklas Luhmann: La política como sistema. Mexico, D.F.: Universidad Iberoamericana, 2009, p.51-80.
[5] Irei utilizar neste texto dois momentos de Beck analisando as conexões entre política e sociedade de risco: tanto o clássico “Sociedade de Risco”, publicado no Brasil pela editora 34 em 2010 quanto “A política na sociedade de risco”, publicado na revista Ideias da Unicamp igualmente em 2010.
[6] WEBER, Max. Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída. São Paulo: Nova Cultural, 1997 (col. Os Economistas).
[7] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.
[8] Beck defende que a sociologia pode desempenhar um papel importante nesta tarefa de análise não-dogmática e produtiva do conhecimento técnico científico a ser consumido pela sociedade.
[9] Recomendamos as entrevistas de Bannon onde os termos “populista de direita”, “populismo nacionalista”, “nacional-populismo”, etc, são empregados como auto-designações tão legítimas quanto elogiosas. Por exemplo esta aqui para o El país republicada pelos colegas da Unisisnos: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/587807-bolsonaro-salvini-e-orban-sao-os-melhores-representantes-do-movimento-nacional-populista-entrevista-com-steve-bannon



quarta-feira, 22 de abril de 2020

O que sugerir numa hora dessas? – dicas em quarentena



Prólogo


Esta é uma carta com sugestões para a quarentena que fiz para meus alunxs de Ciências Sociais na UFF-Campos dos Goytacazes. A demanda me chegou pela galera do Centro Acadêmico Gisele Reis, o CAGIR para os mais íntimos.


O texto foi publicado originalmente no perfil do Centro Acadêmico no Instagram: @cagir_cs. Podem seguir lá! O pessoal vai gostar :)


Quanto aos textos, os mesmos encontram-se disponíveis no seguinte link: https://drive.google.com/open?id=13nsb35L6n8csTYG9nBjc12OnTgU7cd-f 



O que sugerir numa hora dessas? – dicas em quarentena


George Gomes Coutinho





Caríssimxs estudantes,


Como estão vocês? Suas famílias? Seus queridxs? Amores? Amigxs? Pets? (use a ordem que melhor se encaixar para você e ignore quando for o caso).


Por aqui tudo sob controle.  Como devem saber muitos de nós prosseguimos em nossas rotinas no trabalho em home office. Inclusive o home office não é exatamente uma novidade dada a inexistência de gabinetes de trabalho na UFF-Campos.


Posso afirmar que o trabalho dxs docentes do Departamento, o que envolve pareceres, artigos, preparação de aulas, estudos, etc.., invariavelmente é feito em casa mesmo onde dividimos nossa atenção com família, queridxs, amores, amigxs, pets (não nesta ordem de atenção em todos os momentos).


Este trabalho de bastidor, aquele que não é visível, persiste turbinado pela conjuntura.


Mas, há a ausência inegável e sentida dos encontros dos grupos de pesquisa, das reuniões, das aulas... De tudo aquilo que constitui o nosso habitat concreto que todxs compartilhamos e onde criamos afinidades, desavenças, disputas, solidariedade... Enfim, na rua José do Patrocínio 71, entre paredes de alvenaria ou de contêineres, que nos esbarramos e nos co-influenciamos (uns com os outros, uns contra os outros). Torço sinceramente que possamos todxs compartilhar esses espaços em breve. Para ontem.


Até porque o momento em que forem permitidas as aulas presenciais será o sinal evidente do término da travessia do deserto que todxs nós estamos fazendo por agora.


Sem mais delongas... Vou para as minhas dicas.




Começo em algo para ouvir: o podcast Xadrez Verbal. Eu o recomendo para quem tem interesse em política internacional. Até porque, vamos e convenhamos, parte da cobertura de política internacional da grande imprensa é muito pobre (vocês entenderão ouvindo o podcast). Para além disso, Átila Iamarino, epidemiologista que se tornou figurinha fácil em tempos de pandemia na mídia, tem se colocado como comentarista residente no Xadrez. Então, aqui temos epidemiologia séria em perspectiva comparada e vocês poderão compreender bastante, em termos factuais, como se pode construir uma análise verdadeiramente abrangente sobre um problema sério de caráter transnacional. E sem o caráter transnacional não entendemos a conjuntura Covid-19.


No campo das leituras eu irei me concentrar em 4 pontos: sociologia do risco, Estado de Exceção, crise das democracias e Bolsonarismo.


- Sociedade de Risco: é o Ulrich Beck mesmo. O alemão falecido no ano de 2015 deixou uma abordagem que alertava sobre o quanto os Estados-Nacionais teriam dificuldades concretas para produzirem a regulação de seus próprios territórios e relações no processo de radicalização da modernidade. Questões ambientais, riscos com energia atômica, financeirização, são faces concretas das demandas colocadas por nossos tempos. Podemos acrescentar também aí as pandemias....


- Estado de Exceção: texto que é velho conhecido de quem fez Política IV comigo. Descortina já no pós-11 de setembro a fragilização dos direitos civis e explicita os mecanismos de exceção inseridos na arquitetura das constituições liberais (por exemplo o Estado de Sítio). Texto fundamental para lembrar que nas democracias representativas deve-se dormir com um olho aberto e outro fechado. Neste momento, aqui e alhures, os direitos civis encontram-se sob mira a partir da utilização justamente destes mecanismos constitucionais;


- Crise das democracias: inseri aqui Castells, Mounk, Runciman, Levistsky, Ziblatt... Diferentes perspectivas sobre a democracia representativa liberal contemporânea, sua crise e aquela sensação de que “tudo que é sólido continua se desmanchando no ar”. São descrições que explicam a fisionomia do sistema político que encontrou o Covid-19;


- Bolsonarismo é um fenômeno social e político com profundo impacto nos processos de tomada de decisão de indivíduos, gestores públicos, agentes de mercado, etc.. As ações no contexto da pandemia em solo brasileiro se colocam neste pano-de-fundo: ou adesão acrítica ou adesão parcial ou enfrentamento. Para entender o fenômeno penso que textos da Isabela Kalil e da Rosana Pinheiro Machado podem ajudar a entender esta “ambiência” onde decisões políticas são tomadas, desditas, gritadas.. e nos fazem arrancar cuecas e calcinhas pela cabeça quase que diariamente nesta república dos tweets.


Até breve e cuidem-se bem!


Referências Bibliográficas:

                                       

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade; São Paulo: Editora 34, 2010.
CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2018.
LEVISKY, Steven & ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2018.
KALIL, Isabela Oliveira. Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro. (Relatório de Pesquisa).
KALIL, Isabela Oliveira, MORETTO, Márcio & ORTELLADO, Pablo. Pesquisa no ato “PT nunca mais”. (Relatório de Pesquisa).
RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia, 2018.
MACHADO, Rosana Pinheiro & SCALCO, Lucia Mury. Da esperança ao ódio: juventude, política e pobreza do lulismo ao bolsonarismo. In: Cadernos IHUideais. São Leopoldo, Unisinos, Ano 16, n.278, vol.16, 2018.
MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.





segunda-feira, 30 de março de 2020

Covid-19 e conjuntura: Risco, catástrofe, percepção e tomadas de decisão – parte I


Covid-19 e conjuntura: Risco, catástrofe, percepção e tomadas de decisão – parte I


George Gomes Coutinho

O sociólogo alemão Ulrich Beck (1944-2015) dedicou parte de sua vida construindo, tal como um Gaudi, sua própria catedral[1] teórica. Sob o que chamaremos de “sociologia do risco” está o ambicioso projeto, em idas, vindas e reconsiderações, que objetivou diagnosticar sociologicamente elementos constitutivos de nossa sociedade contemporânea, detectar o que a caracteriza e por qual razão a mesma guarda traços de radicalização dos princípios norteadores valorativos e institucionais da modernidade clássica[2].


Resumidamente Beck, assim como outros sociólogos que produzem da década de 1970 para cá[3], em sua sociologia de fôlego macroscópico observa os traços de continuidade com esta maneira de viver que se constrói em maior velocidade a partir do século XVI. Mas, detecta e reforça também as descontinuidades, o que inclui, dentre outras tantas variáveis[4], destacar o caráter de maior porosidade das fronteiras dos Estados Nacionais, justamente esta construção macro-institucional tipicamente moderna. Embora sem dúvida o que chamamos de “globalização” encontre seus primeiros movimentos no ocidente desde as Grandes Navegações[5], fenômenos como o terrorismo, a crise climática, a volatização do capital financeiro, dentre outros, tornam as delimitações nacionais dotadas de dramática fragilidade nas últimas décadas. Somente por esta parte da análise podemos ver o quanto há de demagógico, má fé ou auto-ilusão nos nacionalismos que abundam pelo mundo na década de 2010.


Dando prosseguimento, neste momento já podemos entrar no conceito de risco[6]. A própria institucionalização e especialização da ciência, um dos marcos interpretativos modernos, redunda nas ciências do risco, o que inclui a epidemiologia tão massivamente discutida na imprensa em nossos dias de quarentena. O risco envolve compreender os perigos latentes e inerentes ao desenvolvimento de nossas sociedades industriais e globalizadas. Seja o risco climático, o que envolve o monitoramento tanto da camada de ozônio quanto do derretimento das geleiras polares, ou o acompanhamento minuto a minuto da dinâmica do mercado financeiro. Contudo, risco envolve um diálogo com o futuro, com o porvir. Riscos são mensurados, dentre outros recursos, a partir de modelagens estatísticas, exatamente tal como tem sido divulgado amplamente na conjuntura do Covid-19 a famosa curva epidemiológica e o jargão, que se tornou popular, de “achatamento da curva”.


E, claro, muitos dos riscos ignoram solenemente as fronteiras dos Estados Nacionais. Era assim antes e assim é neste momento.


O monitoramento dos riscos objetiva evitar catástrofes de diferentes ordens. Por catástrofe Beck (2015) define a presentificação do risco. Em outros termos, os esforços de alta monta empreendidos pelas ciências de risco na elaboração de predições e alertas em prol de evitar tragédias, o que inclui em última instância frear a extinção da espécie humana dependendo da extensão do problema que estamos falando, visa, paradoxalmente, descumprir seus próprios cenários futuros. Digamos que o risco é calculado para que não se decante no real no formato de catástrofe. Deste paradoxo Beck já alertava para uma tensão entre leigos e especialistas. Pelo caráter abstrato das predições, que ambicionam justamente evitar que as mesmas se concretizem no formato de catástrofes, por vezes os riscos encontram questionamentos diversos, incredulidade, etc.. Há uma tensão entre saber especializado e as visões-de-mundo de leigos.


Em outros termos, o risco nem sempre obtém reconhecimento. Ou, se assim quisermos, os riscos nem sempre obtém dignidade aos olhos de seus intérpretes.


A partir desta tensão compreendemos, por exemplo, o caso de igrejas como a Schincheonji na Coreia do Sul que atuaram como as principais disseminadoras do Covid-19 naquele país. Igualmente podemos situar nesta tensão entre leigos e especialistas a resistência de diversos grupos sociais, e aqui estou supondo a não adesão aos princípios e valores vigentes na comunidade científica dentre estes grupos, em acatar as predições de risco que já circulavam pelo mundo a partir da detecção da epidemia na província de Wuhan na China.


Continua...



[1] Antoni Gaudi (1852-1926) iniciou em Barcelona a construção da Basílica da Sagrada Família no ano de 1882. A previsão do término da obra virá, segundo estimativas, no ano de 2026. Mais informações a respeito em: https://en.wikipedia.org/wiki/Sagrada_Fam%C3%ADlia, acesso em 30/03/2020.


[2] É importante notar esta é uma tomada de posição ante diagnósticos que indicavam o fim da modernidade desde a década de 1960.


[3] Incluindo nomes de alguma maneira próximos do próprio Beck como Anthony Giddens e Scott Lash.


[4] Beck analisa mudanças no campo da subjetividade, da recepção da ciência, da reprodução do capital, etc..


[5] Vide Harvey em sua “Condição Pós Moderna” lançada no Brasil pela Loyola em 1992.


[6] Para o debate conceitual que farei me apoio em “Sociedade de risco mundial -  em busca da segurança perdida”, lançado por Beck originalmente no mercado editorial alemão no ano de 2007 e em 2015 em Portugal pela Edições 70.