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segunda-feira, 7 de setembro de 2020
segunda-feira, 25 de março de 2019
Padrões de beleza, violência simbólica, cabelos e representatividade
Publicado originalmente em Prensa de Babel (aqui).
Padrões de beleza, violência simbólica, cabelos e representatividade
Por Renata de Souza Francisco*
Como a maioria das meninas negras que nasceram na década de 80,
fui apresentada desde muito nova aos vários métodos de tortura capilar. Tortura
sim! Porque hoje entendo tudo que estava por trás daqueles alisantes infernais
que queimavam meu coro cabeludo, ardiam meus olhos e era motivo de choro e
sofrimento em minha casa a cada 2 ou 3 meses. A hora de cuidar do cabelo era o momento
mais traumático do meu dia.
Cresci odiando pentear os cabelos. Achava que um dia meus olhos se
assemelhariam a de uma oriental. A força e os rabos de cavalo feitos em meus
cabelos eram extremamente apertados. Tudo em nome de não deixar nenhum fio se
rebelar e mostrar que de fato eu não tinha cabelos lisos. Meu cabelo era quase
assunto do Código Penal, como costumavam dizer popularmente. Era o cabelo
bandido: ou estava preso ou armado. Logo, era perigoso em qualquer das suas
formas de apresentação.
À medida que fui crescendo, incorporei o argumento irrefletido, do
senso comum, de que o cabelo alisado se justificava por ser mais fácil de
cuidar e uma alternativa “legal” ao cabelo bandido, afinal meu cabelo era
classificado como o cabelo ruim, o cabelo de pico, o cabelo duro e outras
coisas do gênero.
Há mais ou menos dois anos atrás, resolvi não mais alisar meus
cabelos. E, junto com essa decisão, veio uma enxurrada de questionamentos e uma
leve crise existencial. Além de questões existenciais, tive uma profunda crise
de representatividade. Onde estão as mulheres negras de cabelo natural
bem-sucedidas? Quais atrizes negras fazem papel de destaque? Quantas
jornalistas negras vejo na TV?
Comecei a perceber que não faltavam apenas mulheres negras com seus black power na
mídia, faltavam pessoas negras como um todo, com cabelo liso ou natural. Não
via pessoas negras em posição de destaque, em profissões bem remuneradas.
Faltava representatividade. Infelizmente, ainda sou a única negra a frequentar
alguns espaços de poder em uma condição “privilegiada”, o que me levou a mais
questionamentos.
Aos olhos de quem não é negra ou é negra e nunca questionou seu
cabelo alisado, minhas inquietações poderão parecer algo menor. Só que, atrás
de um cabelo alisado, existe um campo de disputas por narrativas e poderes.
Narrativas ideológicas em que o padrão eurocêntrico se estabelece às custas da
autoestima e do sacrifício das muitas mulheres negras, que eram e ainda são
“submetidas”, como disse no início, a um verdadeiro ritual de tortura.
Que fique nítido: não quero dizer que todo mundo tenha de fazer
uma transição capilar ou queimar as chapinhas e os alisantes em praça pública.
Se quiser continuar alisando o cabelo, ok! Não penso que o cabelo alisado, por
várias questões que apontarei abaixo, deslegitime o discurso engajado e
consciente. Tenho consciência de que a posição de alisar ou deixar de alisar é
imposição. Não podemos sair de uma e cair em outra.
Alguns me dirão: “Que exagero! O alisante não pula na cabeça de
ninguém”. Sim! Concordo. A colonização do pensamento e as necessidades
espelhadas no paradigma eurocêntrico criaram amarras, ou melhor, alisantes para
uniformizar os cabelos e os pensamentos. Nós, mulheres negras, para sermos
aceitas no mercado de trabalho, na escola e no mercado matrimonial, fomos
obrigadas, durante muitos anos, a alisarmos nossos cabelos. Ou seja, sofremos
uma violência silenciosa, do tipo que a sociedade naturaliza e ninguém
questiona.
Um tipo de violência branda, uma violência que usa artifícios
sutis para que as regras impostas pelos que dominam sejam até desejadas. O
sociólogo francês Pierre Bourdieu cunhou o conceito de “violência simbólica”,
que tomo a liberdade de usá-lo aqui, para pensar a colonização e a normatização
de nossos corpos. Afinal, o corpo da mulher sempre foi um campo de disputas,
não ficaria o cabelo da mulher negra fora dessa seara.
A violência simbólica “consiste em uma forma de aceitação de
crenças, regras partilhadas como se as mesmas fossem normais e naturais”. A
ideia do amor materno, a crença de que é papel da mulher cuidar da casa e dos
filhos sozinha, de que homens não sentem medo e não podem chorar, dentre
outras. Com o alisamento do cabelo é assim, já está estabelecido há muito tempo
que alisar o cabelo era uma etapa considerada “normal” na vida de uma menina
negra.
O que gerou anos de inflexão da mulher negra sobre seus cabelos. E
não as culpo ou, melhor, não me culpo. Pensar no cabelo é pensar em autoestima,
é pensar nossa relação com o mundo. Pensar o cabelo das mulheres negras alisado
é pensar em não sofrer bullying na
escola, é não ter sua capacidade posta em dúvida porque usa seu cabelo natural.
Alisar seu cabelo é ter certeza de que terá um par para dançar na festa junina,
é a possibilidade de figurar na lista das garotas bonitas da sala quando se
está na quinta série. Coisas que para uma mulher branca adulta pode parecer não
ter muita importância, mas que para uma criança terá impactos reais para o resto
de sua vida adulta.
À medida que comecei a ler mais e entender mais sobre minha
condição de mulher e negra na sociedade brasileira, a vontade de não alisar
mais meu cabelo só foi aumentando. Mas, como já disse, essa vontade vem cheia
de dúvidas e de medos. A transição de uma vida inteira de cabelo alisado para
um cabelo natural envolve uma série de etapas esteticamente não muito
agradáveis. Adiei e sabotei o processo várias vezes. Quando via uma parte do
meu cabelo natural contrastando com o restante alisado, sentia grande incômodo
e infelicidade com minha autoimagem.
Conversando com um amigo sobre as dúvidas e medos que estava
enfrentando em meu processo de transição capilar, ele me apresentou uma autora estadunidense
negra chamada Bell Hooks, que escreveu um texto que me fortaleceu de uma forma
que não tive mais dúvidas sobre minha decisão. O texto chama-se: “Alisando
nosso cabelo”. Nesse texto, a autora faz uma reflexão sobre a impressão dela
acerca do processo de alisar os cabelos com o extinto pente quente. Em um
primeiro momento, esse cabelo alisado estava vinculado aos anseios de se tornar
mulher, de proporcionar bem-estar e da criação de vínculos entre mulheres.
Hooks nos conta que, como viviam em um mundo segregado
racialmente, não era evidente a ideia de que as mulheres negras estavam lutando
para colocar em prática um padrão de beleza branco, ou seja, o fato de mulheres
brancas serem consideradas um grupo feminino mais atrativo e as mulheres negras
de cabelo liso serem mais aceitas do que as de cabelo crespos e encaracolados
acabou estabelecendo um padrão de beleza.
Ela segue dizendo que no “patriarcalismo capitalista, essa postura
representa uma imitação da aparência do grupo branco dominante e, com
frequência, indica um racismo interiorizado, um ódio a si mesmo que pode ser
somado a uma baixa autoestima”. Mais uma vez, não me sinto culpada por algum
momento de minha vida ter tentado, assim como muitos e muitas ainda tentam,
expurgar tudo que me identificasse como negra, porque ser negro(a) no Brasil
não é legal, quase no sentido literal da palavra.
Infelizmente, o racismo que estrutura nossa sociedade nos faz ter
ódio de nossa cor da pele, de nossos cabelos. Identificar-se como negro(a) no
Brasil está além da autodeclaração. É uma questão política. E para alguns é uma
questão de vida ou morte, porque nós negros(as) figuramos no topo das piores
estatísticas neste país.
* Socióloga; Doutoranda em Sociologia Política (UENF); Professora da rede pública
de ensino do Estado do Rio de Janeiro.
segunda-feira, 18 de março de 2019
Escuta como ato político
Escuta como ato político
Dedico
este texto a Kenya Gomes, Bruna Machel e Juliana Tavares.
Por
Paulo Sérgio Ribeiro
No
calendário de lutas estabelecido em março, um mês muito significativo paras
mulheres que, em alto e bom som, afirmam a dignidade da pessoa humana em todas
as latitudes do globo, participarei como mediador da aula pública "A luta
pela vida das mulheres no Brasil pós-eleições", que ocorrerá nesta
quarta-feira, no Bandejão da UENF, às 12h (aqui).
Confesso
que o convite muito me honrou devido ao crédito que fora depositado em um homem
cujas catalogações (branco, hétero, cis...), quase sempre, confirmam marcadores
de opressão nas relações de gênero.
Poder
mediar tais falas e aprender com cada uma delas será um privilégio e, talvez,
seja uma das raras oportunidades em que reconhecer-se privilegiado não me
coloque em confronto comigo mesmo.
Convenhamos:
será mesmo tão pacífico assim? Se o confronto com o "velho homem" que
habita em nós é inevitável, como se sair vencedor sem o sacrifício de outro
alguém na jornada para chegar a esta desejável conquista íntima?
A meu
ver, uma maneira bastante generosa seria visitar a obra seminal da filósofa
Djamila Ribeiro - "O que é lugar de fala?"[1] -, uma
provocação que, até hoje, rende-lhe berros histéricos da extrema-direita e, não
menos, um dar de ombros de certa esquerda pouco familiarizada com a agenda
pública do(s) feminismo(s).
Não
devo iludir o(a) leitor(a): há não muito tempo, participava sem maiores
questionamentos do segundo grupo. Mas, felizmente, a convivência política com
mulheres as mais variadas tem imposto um cerco aos últimos focos de resistência
do "velho homem" que, teimosamente, vez ou outra ainda sou.
Com
Djamila Ribeiro, entendi que os condicionamentos de uma cultura patriarcal e
heteronormativa - embora confirmem à perfeição os atributos do "fato
social" concebido pelo velho mestre Émile Durkheim - não me autorizam a
abrir mão da responsabilidade ética face àquele "Outro" que se
manifesta em tantos rostos, vozes e visões a partir da condição feminina.
A
filósofa e ativista negra delimita tal responsabilidade ética ao desfazer
eventuais confusões nas quais muitos recaem quando sobrepõem a noção de
"representatividade" àquela dimensão da luta política. Ambas andam
lado a lado, por óbvio, mas devem ser distinguidas analiticamente para não sucumbirmos
a categorias de acusação que satisfazem azedumes pessoais em prejuízo da
intersubjetividade daqueles(as) que podem estar do mesmo lado da trincheira,
por assim dizer.
Seguindo
os passos de Djamila: é razoável uma mulher negra não se sentir representada
por um homem branco, mas não por isso este deve deixar de tematizar a realidade
dela a partir do seu senso de realidade. Ora, a não responsabilização
daqueles que falam a partir do lugar do privilégio traduzir-se-ia no véu da
ignorância com o qual se encobre a pretensão de salvo-conduto para vantagens
sociais e econômicas que aquele lugar nos oferece.
As
lutas por reconhecimento (ou por "representação") nada mais seriam,
portanto, que trazer à luz a arbitrariedade dos espaços de privilégio por parte
daqueles indivíduos e grupos segregados em lugares da invisibilidade social
ou, noutros termos, em um não-lugar. Porém, lembra Djamila, refletir sobre o
lugar de fala não é aceitar acriticamente que "somente os subalternos falem
de suas localizações", pois, do contrário, aqueles que estão inseridos na
"norma hegemônica" continuarão enxergando a si mesmos de um ponto de
vista olímpico[2].
Uma
perspectiva relacional, é "só" o que se propõe:
[...]
entendemos que todas as pessoas possuem lugares de fala, pois estamos falando
de localização social. E, a partir disso, é possível debater e refletir
criticamente sobre os mais variados temas presentes na sociedade. O fundamental
é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus
social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar e como
esse lugar impacta diretamente na constituição dos lugares de grupos
subalternizados[3].
São
muitos os ângulos pelos quais Djamila elabora sua perspectiva de análise: a
história do feminismo e suas disputas internas; o alcance do feminismo negro no
debate público; o diálogo entre feminismo negro e o pensamento decolonial; os
dados recentes que confirmam a vulnerabilidade social das mulheres em correlação
com as desigualdades abissais do nosso país entre outros. Seu livro,
praticamente um manual de combate – melhor dizendo, do bom combate -, chama-me
atenção para um aspecto: como não admitir que estamos a léguas de distância
daquela perspectiva relacional no próprio modus operandi do
campo científico?
O texto
da socióloga Luciane Soares da Silva publicado recentemente no blog (aqui), que desnuda os mecanismos da superseleção escolar à qual ela e tantos(as) outros(as)
estudantes negros(as) foram submetidos(as) para esbarrar (como egressos dos
cursos de pós-graduação) na falácia meritocrática dos concursos públicos para
carreira docente de nível superior, vai ao encontro da interpretação que
Djamila Ribeiro dedica ao universalismo na produção de conhecimento.
Se
dimensionarmos a hierarquia social dos objetos - o que faz algo ser ou não de
interesse para a pesquisa -, observamos que o privilégio social de intelectuais
brancos europeizados é, de fato, um privilégio epistêmico. O postulado de
objetividade que diferentes ciências humanas tendem a seguir de perto, na
prática, cristaliza-se em um regime de autoridade discursiva em torno de um
suposto sujeito "universal" do conhecimento que, todavia, na sua autointitulada função de "Farol de Alexandria" deixa a desejar para tantos outros sujeitos os quais, efetivamente, teriam muito mais a dizer para a elucidação científica dos fatos.
Ora, o
que eu teria a dizer às mulheres que conduzirão a aula pública desta
quarta-feira? Algo menos do que elas já possam falar por si mesmas. Nosce te
ipsum[4]:
o meu lugar de fala nada mais é do que um reflexo da minha capacidade de
escuta. Aprimorá-la, assim espero, fará com que vislumbre outros marcos
civilizatórios nas vozes dissonantes dessas mulheres e, quem sabe um dia, dará
passagem a um "novo" homem.
[1] RIBEIRO, Djamila. O
que é: lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
[2] Op.
cit., p. 86.
[3] Op. cit., p. 88.
[4] “Conhece-te
a ti mesmo”.
domingo, 23 de abril de 2017
Reparação histórica no Açu - 2ª edição
Reparação histórica
no Açu - 2ª edição *
George
Gomes Coutinho **
A História humana detém em seu
rol de atrocidades injustiças que
ocorreram e continuam a ocorrer nos diversos pontos do globo. No entanto, o
reconhecimento pleno de massacres, perseguições e outras tantas práticas
opressivas que apequenam a espécie humana só recentemente tem se tornado objeto
de atenção.
Políticas e ações de
reconhecimento, neste tipo de caso em particular, implicam que agrupamentos
factualmente opressores e a sociedade como um todo reconhecem que em
determinado momento histórico moveram e/ou desviaram outros grupos sociais
contra a sua vontade de sua própria trajetória. Estou dizendo que o direito de autodeterminação
foi negado a etnias, tribos, grupos ou seguidores de uma determinada crença.
Este processo de dominação não separa violência simbólica da física e se
estende por gerações até que o ciclo das ações persecutórias, onde a humilhação
faz parte do cardápio, é quebrado.
Por vezes agrupamentos sociais
aguardam séculos por este tipo de reparação. Em outros casos há janelas
históricas que podem abreviar o tempo de espera. Afinal “o tempo é muito longo
para aqueles que esperam” como diria o escritor norte-americano Henry Van Dyke
Jr (1853-1933).
Na última quarta-feira, dia 19 de
abril, a ASPRIM (Associação dos Proprietários Rurais e de Imóveis do Município
de São João da Barra) e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)
reocuparam parte das terras tomadas pelo empreendimento nacionalmente conhecido
como “Porto do Açu”. O fato abriu uma janela de reparação histórica.
O processo de retirada das famílias originais
do 5º distrito de São João da Barra não transcorreu sem traumas, algo que
incluiu até mesmo indenizações questionáveis, intimidações e outras práticas no
mínimo controversas. Para além disso dois agentes indiscutivelmente importantes
para este processo, o “Barão de São João da Barra” Eike Batista e Sergio Cabral
Filho, ex-governador do Rio de Janeiro, encontram-se no Complexo Penitenciário
de Gericinó, antigo Complexo de Bangu.
Reparações históricas não mudam o
passado. Mas, podem modificar o daqui por diante.
* Texto original publicado no jornal Folha da Manhã em 22 de abril de 2017. Nesta "2ª edição" digital fiz uma leve modificação na forma do texto. Contudo, o conteúdo propriamente é o mesmo da versão impressa.
** Professor de Ciência Política no
Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes
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