SIR PAUL, 80 VERÕES**
SIR PAUL, 80 VERÕES**
Religião, política e a dimensão
espiritual da crise brasileira*
* Publicado originalmente em Folha 1.
Roberto Torres
Muitos
gostariam de abolir a presença das religiões na esfera pública e na política.
São os que defendem que o Brasil busque construir um Estado laico inspirado na
França. Esta tentativa foi feita com a constituição de 1891 e não teve êxito.
Outros se dispõem a aceitar a religião pública desde que ela se oriente pelas
ideologias políticas laicas como o liberalismo ou o socialismo, fornecendo
apenas a efervescência coletiva que estas ideologias já não conseguem produzir
por contra própria. As duas posições rechaçam a presença da fé e da busca da
transcendência como algo que tenha contribuição própria para a construção do
Estado e na nação. O sentido propriamente religioso do mundo, que podemos
resumir com as noções de fé e transcendência, não teria nada a acrescentar ao
sentido político da reconstrução nacional.
Discordo
destas duas posições. Da primeira em razão de seu provincianismo caricato.
Basta dizer que a França é exceção e não regra entre os modelos ocidentais de
separação entre religião e Estado. A grande nação ocidental do século XX, os
Estados Unidos, nunca confundiu separação entre Igreja e Estado com
confinamento da religião na esfera privada. E nisso, como em outros aspectos, o
Brasil (graças a Deus!) é muito mais parecido com os Estados Unidos do que com
a França. Da segunda posição eu discordo pela falta de acuidade sociológica
sobre o processo de construção nacional: todo projeto nacional de longo prazo
precisa de um sentido de transcendência capaz de conferir no presente valor ao
futuro desconhecido. O futuro precisa ser percebido como um horizonte de
realização daquilo que não podemos ver inteiramente no presente, mas cujas
primeiras manifestações já se mostrem como futuro adjacente, como sinal no
presente de que a fé constrói o futuro. E em muitos casos, especialmente
naqueles de colapso das ideologias políticas laicas, este sentido de
transcendência do presente e de seus desesperos vem diretamente das religiões.
A
contribuição própria que a religião pode trazer para a política é sua
capacidade de construir no presente a fé no futuro. A disponibilidade desta fé
é um recurso de valor insubstituível para a política. Não se trata de acreditar
em um futuro inteiramente distante e inteiramente desconhecido, mas sim de
criar um futuro adjacente e em alguma medida visível já no presente. O desafio
de amplos segmentos das classes populares, que buscam manter a fé no futuro
(“não deixar a peteca cair”) organizando em torno da religião estratégias
concretas de reconstrução da vida familiar, econômica e comunitária, é
semelhante ao desafio nacional: não se trata apenas de planejar o futuro da
nação, mas de reconstruir e alimentar a própria crença de que a nação tem algum
futuro. É preconceito iluminista não esclarecido supor que podemos dispensar a
fé religiosa nesta grande batalha espiritual que o país precisa travar: não uma
batalha contra algum inimigo inventado (“comunistas”, “chineses”, STF etc.)
como faz Bolsonaro em sua “guerra cultural”, mas sim contra a desesperança, a
dimensão propriamente espiritual da crise brasileira. Ideologias políticas e
projetos nacionais dependem da crença compartilhada no futuro. A religião
popular têm conseguido construir esta crença em diferentes esferas sociais,
especialmente na vida familiar. Pode também contribuir para que isto seja feito
na política. Não se trata de ignorar os riscos envolvidos na relação entre
religião e política, mas sim de explorar as possibilidades desta relação. Pelos
menos quatro possibilidades se colocam de início: o boicote recíproco entre religião
e política, a colonização de uma pela outra, o fortalecimento recíproco e a
indiferença. Nas últimas décadas, a colonização da religião pela política tem
predominado no Brasil. No caso específico dos evangélicos, desde sua entrada
efetiva na política pós Constituição de 1988, os presidentes buscaram se
aproximar dos religiosos pela via da cooptação política a partir de acordos com
figurões que dizem representar este segmento do público. Com Bolsonaro é um
pouco diferente: ao mesmo tempo em que radicaliza a manipulação da religião
pela política feita por seus antecessores, encena com a “guerra cultural” o
controle religioso da política e da república como um todo. Politicamente, essa
estratégia tem a vantagem de criar uma sensação de inclusão autêntica dos
religiosos na política nacional, produzindo um contraste com quem pedia o voto
mas não gostava de dividir o poder com os religiosos. Por isso, Bolsonaro
desempenha com certo sucesso o papel de primeiro presidente evangélico do
país (Arenari, 2020). Mas este sucesso só pode durar se
Bolsonaro conseguir destruir o sentido de esperança e fé no futuro cultivado
pelos evangélicos e cristãos em geral: um governo definido pela destruição
precisa destruir também o sentido de futuro, pois a esperança no futuro é
sempre construtiva. Ou então criar um sentido destrutivo de futuro, como vemos
em seus apelos apocalípticos destinados ao rápido descrédito. Precisa destruir
a religião para continuar usando a religião e fingindo que ela têm importância
em sua obra de destruição nacional.
A
obra de reconstrução nacional de que precisamos não requer substituir esta
colonização destrutiva da religião pela política nem pela indiferença entre
ambas, como querem os adeptos da laicidade francesa, nem por uma politização
com outra cor ideológica, que trata a religião apenas como fonte de legitimação
e energia para ideologias políticas seculares. Para enfrentar a dimensão
espiritual da crise brasileira, precisamos construir uma relação de
fortalecimento recíproco entre política e religião, combinando separação de
esferas com influência construtiva entre elas. Não se trata de colocar a
política no lugar da religião, nem a religião no lugar da política, mas sim de
construir uma nova “religião civil” brasileira: uma nova cultura política
inspirada não só em valores religiosos como superação e solidariedade, mas
antes de tudo na fé
no transcendente como traço próprio do sentido religioso do mundo que
ultrapassa fronteiras ideológicas e sociais.
Na
prática, isso significa adotar um caminho bem distinto daquele seguido por
Bolsonaro e seus antecessores. Em vez de mobilizar politicamente a religião em
torno de “guerras culturais” contra inimigos inventados, criando uma cultura
política de destruição e fragmentação nacional (Bolsonaro), ou cooptar os
conhecidos figurões com poder e audiência (antecessores), buscar aproximação
com as obras sociais das igrejas que reconstroem famílias e vidas em nossas
periferias urbanas. Em vez de buscar conchavos com esses figurões que dizem
decidir pelo povo, se aproximar de lideranças novas, de sacerdotes que buscam o
poder não como um fim em si mesmo, mas como meio indispensável para mudar e
melhorar a realidade. Em vez de andar com quem promete trazer apenas o voto dos
fiéis, unir forças com aquelas organizações e lideranças interessadas em
amplificar, através da cooperação com o Estado, o trabalho social que já
realizam. Missões que buscam reconstruir famílias e vidas ameaçadas pela
pobreza e pela violência, como vemos no caso da missão Cristolândia de
orientação batista, também reconstroem e alimentam diariamente o sentido de fé
no futuro, em uma vida melhor para quem, como todos no inferno de Dante, é
invocado pela realidade a perder todas as esperanças. Esta dimensão espiritual
da crise brasileira – o desespero, a falta de fé no futuro – não será superada
sem que a política consiga estabelecer relação construtiva com o único sistema
social que tem conseguido fazer a grande maioria do povo acreditar no futuro e
na vida: a religião. Mas para isso, a política não deve buscar a cooptação dos
religiosos e a manipulação da fé, mas sim a cooperação em torno do trabalho
social com religiosos que desejam influenciar as políticas públicas, mas não
fundir organização religiosa com o poder político. É este tipo de relação que
permite existir religião pública e ao mesmo tempo separação entre religião e
política. Não basta exigir a separação entre religião e política. É preciso
entender que esta separação só ocorre dentro de relações específicas entre
estas duas esferas da sociedade e da vida.
Referências
ARENARI, Brand. “Bolsonaro, o primeiro presidente “evangélico” do Brasil”. In: TEXEIRA, Carlos Sávio & MONTEIRO, Geraldo Tadeu (orgs.) Bolsonarismo: teoria e prática.1 ed.Rio de Janeiro: Gramma editora, 2020, v.1, p. 281-308.
Não vejo saída pela Porta dos Fundos
Esther de Souza Alferino*
Sempre que participo de alguma discussão, uma pergunta aparece: como você acha que nós, pessoas de esquerda, podemos nos aproximar dos evangélicos?
Mas antes de chegar a isso, eu preciso dizer que não sou uma pessoa dada a programas de humor, de modo que preciso começar esse emaranhado de ideias, que espero que faça algum sentido, dizendo que não dou risada com basicamente nada do que o Porta dos Fundos faz, assim como não dou risada do Zorra, dos humoristas youtubers ou dos filmes do Adam Sandler. Meu senso de humor está mais para “Chaves” e “Um maluco no pedaço”. Duvidoso? Provavelmente, mas não estou exatamente preocupada em apurar ou refinar meu gosto pessoal pelas comédias. Por minha iniciativa, jamais assistirei a qualquer especial de natal de humor, seja com ou sem pretensões críticas.
Eu até entendo que na carência de referências em que vivemos, esse movimento em busca de possíveis representantes se acirre, mas também acredito que devemos, enquanto pessoas que se pretendem de esquerda e progressistas, sermos menos emocionados na ânsia de encontrar nossa voz ecoando nos espaços. O “Porta dos Fundos” não é a esquerda (e aqui sem levar em conta as mil complexidades existentes dentro desse termo-balaio), mas muitas das esquerdas (contidas no termo-balaio) se apressam em etiquetá-lo como vozes dissonantes e efusivas em meio a tanto obscurantismo. Eu gostaria de dizer a todos nós: vamos com calma.
Ali naquele elenco existe uma grande diversidade de pessoas e pensamentos e fazer algumas esquetes que ironizam o que existe de mais evidente sobre questões sociais não torna o humorístico necessariamente um porta-voz dos movimentos sociais; inclusive, daquele povo todo ali, quem teve alguma formação de base em movimentos sociais? Quem tem alguma formação política desenvolvida fora do twitter? Ali tem global, tem liberal, tem o pé esquerdo do sapatênis com sobrenome que é nome de rua, tem gente da Record. De onde tiramos que essa gente representa a esquerda?
Dito tudo isso, vou reafirmar o quanto acho sem graça uma reunião de obviedades ditas como grandes descobertas, grandes sacadas, e, claro, polêmicas.
Porque sem polêmica não há audiência que se sustente e até quem se pretende desconstruído não sobrevive sem uma. Ou várias.
Fazer piada da religião alheia é uma polêmica antiga, manjada, uma obviedade, como muita coisa que aquela galera faz, mas ainda assim rende. Com ou sem qualidade crítica – e aqui não farei nenhum julgamento de valor de tal qualidade, simplesmente porque seria incapaz de fazer. Bate recorde de audiência, pode ter boicote puxado pela igreja, não adianta, nem que seja para falar mal, todo mundo quer ver.
Eu não posso e não vou dizer a ninguém do que elas devem rir, do que elas devem fazer piada, qual deve ser o tema dos programas a que elas assistem ou produzem. Mas quando me fazem aquela pergunta de sempre, por tudo que vejo no campo desde que me dedico a estudar os pentecostais, eu só posso dizer que ridicularizar alguém é uma péssima abordagem.
Recentemente, Igor Santos[1] escreveu sobre como a “lacração” com a imagem de Jesus afasta os trabalhadores e dividiu opiniões. Guardo diversas divergências com o texto de Santos, mas também tendo a concordar com muitas questões levantadas por ele. Perdemos eleições por muitos motivos, mas também porque estamos perdendo (e perdendo feio) na disputa de narrativa e na disputa pelas consciências dos trabalhadores brasileiros. Descolamo-nos da realidade das pessoas, alienamo-nos em nossas bolhas pseudo-eruditas em que damos risada de humor medíocre enquanto chamamos pessoas de alienadas. Dizemos que pessoas sofreram lavagem cerebral e são massa de manobra, desconsiderando que os sujeitos são agentes da própria história, são sujeitos com anseios, ambições, e que há quem lhes ofereça o repertório discursivo que negamos quando os infantilizamos e os menosprezamos no que há de mais humano neles: seus desejos.
O crente, aquele crente pobre, que entrou no mercado de consumo na Era Lula, que hoje amarga a volta à pobreza, aquele que dá o dízimo do quase nada que tem, e que por isso é chamado de manipulado por quem paga caro em pedras dizendo que são cristais energéticos; porque, sim, no fantástico mundo da lacração, as pessoas gostam da espiritualidade, não podem ver um “Prem Baba” abusador, que gastam muito dinheiro para ver tudo que ele faz; aquele crente não vai ouvir nenhuma voz arrogante e cheia de tutela, descolada da realidade prática.
Condeno todo e qualquer tipo de censura ou tentativa de silenciamento do grupo de humor aqui mencionado. Não se trata de querer calar a voz deles. Para mim, trata-se de voltar a ser capaz de dialogar com quem tem mais com o que se importar do que gênero neutro na gramática.
* Cientista Social, Mestra em Sociologia Política.
Oi pessoas!
Em junho de 2020 organizamos um papo de alta voltagem intitulado "Religião, Política e Conjuntura Brasileira".
Convidamos para essa conversa complexa ninguém menos que Valdemar Figueiredo, fundador do Instituto Mosaico, e Fábio Py, teólogo, professor do PPGPS/UENF e colaborador daqui do blog.
Também na ocasião fizemos o lançamento do livro "A fraquejada de um país terrivelmente evangélico" do nosso querido Valdemar.
Dentre os eventos virtuais organizados pelo blog em 2020, este foi o que inaugurou os trabalhos :) Como se não bastasse o peso dos nomes dos convidados também há o fato de ser um début, o que torna o papo ainda mais especial.
Em suma, quem quiser conferir o resultado, está no YouTube no canal do blog: