terça-feira, 28 de julho de 2020

A encruzilhada imposta pelo bolsonarismo


A encruzilhada imposta pelo bolsonarismo[1]


Rodrigo Monteiro[2]


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Em novembro de 2018, ao término das eleições, já não era possível falar, como Dumbledore, em Harry Potter, que ‘tempos difíceis se aproximam’. Já estávamos nele desde 2015, 2016. Os céus só ficaram mais sombrios, dominados por comensais da morte, dementadores e com o país sendo ‘governado’ por “You Know Who”, ou “Aquele que não se deve dizer o nome”.


Sua eleição não é um fenômeno isolado nem simples, mas representou, entre outras, a ascensão de uma parcela da sociedade brasileira que sempre existiu e circulou entre nós e que foi duramente combatida até que se tornasse vitoriosa nesse tão distante ano de 2018.


A vitoriosa expressão máxima do “bandido bom é bandido morto”, “tá com pena, leva para casa”, “direitos humanos para humanos direitos” tinha, enfim, seu apogeu. Tolos e tolas acreditaram que o desprezo pela vida que “You Know Who” expressava ficaria contida aos pretos e pretas, aos pobres das periferias brasileiras, aos que não estavam na sua caixinha.


 Surpresos(?) descobriram e seguiram junto com seu inominável afirmando que ‘vai morrer quem tem que morrer’. O sentido da artilharia do mestre do terror não estava mais restrito aos de pele escura, ao público LGBTQ+ e tantos outros destinos de seu ódio e de seu projeto político de extermínio. O alvo agora se tornou difuso com os ‘que têm que morrer’. O alvo é universal, até que seja seu pai, sua mãe, seu filho, sua filha, seu tio, sua tia, ou mesmo você. Mas, como já disse Celso Rocha de Barros: ‘morto não vota’.


O projeto está claro e está em curso. A cada dia se torna mais insegura uma simples ida ao supermercado. A cada dia mais e mais pessoas estão portando um vírus ainda sem vacina, ainda sem curas farmacológicas, mas que poderia ser controlado, se o país adotasse, com razoabilidade, padrões e procedimentos que boa parte do mundo onde o genocídio não é a política pública em curso, acabaram por adotar e retornar com mais confiança às suas rotinas.


Ainda que de difícil detecção, sabe-se que um programa básico pode ser feito para controlar a disseminação da doença, reduzir mortes e fazer com que as atividades econômicas e sociais possam regressar com população mais segura para sentar em um bar ao fim da tarde para um chopp, um café, ou uma simples e essencial “conversa fora”.


Amigos e amigas podem ser portadores de algo que pode matar. “E daí?”. “Vai morrer quem tem que morrer”.


Nesse ritmo, turismo doméstico e internacional seguem comprometidos, bem como atividades educacionais, de lazer, cultura, entretenimento, enfim, toda a economia terá desempenhos débeis. Mas vai ‘morrer quem tem que morrer’. ‘E daí?’.


Negacionistas, bolsonaristas, dementadores e comensais da morte se espalham pelas cidades e junto com eles, vão um pequeno ser, tendo seu trabalho facilitado, espalhando doença, morte, medo, insegurança.


Nessa toada, estamos todos, e os ainda confinados, em uma profunda encruzilhada: resistir no distanciamento social às custas de saúde física e mental, ou correr riscos de entrar em um cômodo escuro com ratoeiras que podem custar vidas, saúde e planos futuros.


Aqueles que precisam da rua para o trabalho seguem expostos em cidades onde o vírus segue solto, fazendo seu trabalho e tendo parceiros raros de se ver pelo planeta.


O bolsonarismo e o negacionismo não são para amadores, colocam a todos sob risco de adoecer ou morrer, de fazer adoecer e de fazer morrer.


Nossa sociedade está oferecendo a resposta mais desumana, mais anti-sociedade que um coletivo humano pode oferecer a si mesmo: a morte de seus vulneráveis a um 'inimigo invisível'. O projeto de negação da sociedade se instala. Banalizamos e naturalizamos que três boeings 747 caiam por dia sob nossas cabeças.


Não há limites para o bolsonarismo e o negacionismo.


Ou há?





[1] Texto republicado com a autorização do autor. A publicação original pode ser conferida em: https://www.facebook.com/rodrigo.monteiro.5015/posts/10220839669214453, acesso em 28/07/2020.


[2] Dr. pelo Instituto de Medicina Social, UERJ. Professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos, RJ e do PPGSP/IUPERJ. É autor, dentre outras produções, de “Torcer, lutar, ao inimigo massacrar: Raça Rubro Negra”, publicado pela editora da Fundação Getúlio Vargas.


sábado, 18 de julho de 2020

PANDEMIA: O NOVO CANUDOS DO EXÉRCITO BRASILEIRO?

PANDEMIA: O NOVO CANUDOS DO EXÉRCITO BRASILEIRO?[1]



Christian Edward Cyril Lynch[2]



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Os romanos, quando queriam aludir à rapidez com que se ia da glória à miséria, falavam que fulano teria ido "do Capitólio à Rocha Tarpeia". O Capitólio era centro de poder de Roma, de onde os deuses teriam criado a civilização. A Rocha Tarpeia ficava um pouco atrás, e era de lá que eram arremessados os condenados à morte.


A metáfora me vem à cabeça para pensar a rapidez com que as expectativas do público bolsonarista foram desmentidas desde a eleição do capitão há menos de dois anos. Desde a presidência Collor de Mello, nunca as expectativas eleitorais de um mandatário se esfarelaram tão rapidamente. Mas a desilusão dos próprios integrantes do poder não foi gerada só pela pandemia, mas pela miragem que os movia na sua fantasia antissistêmica.


Os radicais reacionários acreditavam que, no poder, promoveriam uma cruzada redentora da moral e dos bons costumes que levaria o Brasil de volta à idade do ouro. Os neoliberais achavam que, se desfazendo do Estado e dos servidores, produziriam crescimento econômico miraculoso. Os militares acreditavam que redimiriam o regime militar, revelando toda a sua capacidade administrativa e tirocínio político. No final, todavia, acabou tudo onde sempre acaba: no centrão.


O desalento dos reacionários radicais já é conhecido. Mas o que anda na pauta é o desalento do exército. Esperava-se que o governo Bolsonaro representasse a redenção do regime militar, ou seja, o triunfo público do patriotismo revelado pelas forças armadas que teriam salvo o Brasil do comunismo. Todas as habilidades dos militares - intelectuais, cívicas, logísticas, estratégicas- ficariam novamente em evidência. Mas não é isso que vem acontecendo, como se percebe da tensão em torno de sua associação com o alegado "genocídio" patrocinado pelo presidente Bolsonaro na pandemia.


No começo da República, como se sabe, os militares ocuparam a presidência nos primeiros quatro anos e depois resistiram a ceder lugar de volta aos civis. O fator decisivo para sua desmoralização e retirada foi o desastre de Canudos. Os radicais da época, que apoiavam os militares, tentaram emparedar o moderado Presidente Prudente de Morais, acusado de frouxo na repressão ao movimento. Prudente mandou os militares para lá, e ao invés de consagrar o exército, o desastre da campanha demonstrou suas insuficiências e liquidou suas veleidades políticas.


Com suas dezenas de milhares de mortos, a pandemia parece ser o novo Canudos do Exército brasileiro.



* Foto Arquivo Folha de São Paulo. Disponível em: https://f.i.uol.com.br/fotografia/2019/06/07/15599458265cfae26267c12_1559945826_5x2_lg.jpg, acesso em 18/07/2020.




[1] Texto republicado com a autorização do autor. A publicação original pode ser conferida em: https://www.facebook.com/christian.lynch.5/posts/10220167157021523, acesso em 18/07/2020.


[2] Cientista político e professor da área no IESP/UERJ. É autor de “Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia” publicado pela editora da UFMG, “Wanderley Guilherme dos Santos: a imaginação política brasileira - cinco ensaios de história intelectual”  publicado pela Revan, dentre outras obras, coletâneas e inúmeros artigos nos campos do Pensamento Político Brasileiro, Teoria Política e História das Ideias Políticas.

 


sexta-feira, 17 de julho de 2020

Presbiterianos e batistas: a face ordinária do cristofascismo brasileiro


Raul Seixas in: "Pastor João e a Igreja Invisível". Fonte: YouTube.

Presbiterianos e batistas: a face ordinária do cristofascismo brasileiro

Fábio Py

 A posse do pastor presbiteriano Milton Ribeiro como Ministro da Educação – 16/07/2020 - coloca em evidência a atuação e a força dos protestantes tradicionais no Governo Bolsonaro. Se a ação dos pentecostais ligados à prosperidade-empresarial, tal como Macedo e Malafaia, é ruidosa e sempre foi notória, os protestantes tradicionais, tais como os batistas e presbiterianos, tiveram sua força amplificada com o advento da pandemia. Os movimentos do governo indicam que aos protestantes tradicionais cabe a parte “mais intelectualizada” da gestão, tendendo a assumir o setor “jurídico-educacional”, áreas mais teóricas e técnicas. O perfil pragmático e comum dos protestantes a assumirem o governo demonstra que a adesão a um projeto autoritário e genocida como o de Bolsonaro pode ter uma face banal, como a do religioso vizinho do lado.

Os protestantes tradicionais estão assumindo as áreas mais técnicas porque, entre os evangélicos, são os que têm um largo histórico de formação educacional. Basta lembrar a trajetória já centenária de seus colégios e seminários teológicos no país.  Estrategicamente, esses colégios confessionais ajudaram na formação das classes médias urbanas das grandes metrópoles brasileiras. Cito o exemplo do Colégio Batista Sheppard, anexo do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, na área nobre da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. Portanto, se é evidente que os evangélicos são parte fundamental do governo Bolsonaro, sua fração mais ligada ao ethos das camadas médias tomou a frente da operacionalização “ideológica” do estado cerceador cristofascista. Na pandemia, esse arranjo de forças ficou mais evidente.

Presbiterianos e batistas no jurídico-educacional cristofascista pandêmico

A tomada de posição do governo em direção aos presbiterianos e batistas não pode ser compreendida como ocasional. Está relacionada com a força e a importância da Frente Parlamentar Evangélica, junto ao núcleo duro do governo. Diferentes dos líderes pentecostais ligados à teologia da prosperidade, esses protestantes têm perfis mais discretos. Representantes exemplares da concepção tradicional de família, facilmente passam despercebidos da grande maioria da população brasileira.

Também não pode ser desprezado que presbiterianos e batistas já ocupem a liderança do governo Bolsonaro, como, por exemplo, a própria ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que é pastora da Igreja Batista da Lagoinha. Contudo, a novidade é a tomada de poder dos protestantes tradicionais na área mais “ideológica” da gestão Bolsonaro.

O primeiro nome do protestantismo tradicional a exercer função técnica destacada foi o atual presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Benedito Guimarães Aguiar Neto. Na presidência dessa fundação, Aguiar Neto se tornou responsável pelas bolsas de estudos do governo de graduação e pós-graduação e pela avaliação dos programas de pós-graduação do país. Engenheiro, ligado à Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) e ex-reitor da Universidade Mackenzie (de confissão presbiteriana), Benedito Guimaraes marcou sua trajetória  como reitor pela assinatura de convênio entre a Mackenzie e o Discovery Institute, instituto responsável pela promoção do Desgin Inteligente nos EUA e no mundo. Apesar do pomposo e moderno nome em inglês, Design Inteligente (DI) nada mais é que uma variação pretensamente científica do criacionismo.

Pelo convênio, a Universidade promoveu eventos sobre o tema do DI, chegando a trazer ao país a referência mundial da teoria, o bioquímico Michael Bene (aqui) . Também foi publicado pela editora da Mackenzie o livro clássico sobre o DI, intitulado “A caixa preta de Darwin”. Os esforços na difusão da concepção criacionista da Mackenzie são amplos. A Universidade tem um Centro de “Ciência, fé e sociedade”, donde consolida a ideia do DI. O próprio Benedito chegou a reforçar essa expressão do criacionismo como uma possibilidade a ser incluída no programa pedagógico da educação básica (aqui). O que de fato assusta a comunidade científica, quando se tem o gestor de um órgão tão importante como a CAPES ser signatário de uma tendência pouco científica. 

Após Benedito, o segundo protestante tradicional a obter um cargo de destaque no Governo Bolsanaro foi outro pastor presbiteriano, André Luís Mendonça, que assumiu o lugar do ex-juiz Sergio Moro no Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Como terrivelmente evangélico, André Luís é pastor-assistente voluntário da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), com doutorado na Universidade de Salamanca em Direito. Em sua solenidade de posse do cargo, no dia 29 de abril (aqui), já no contexto pandêmico, o pastor chegou a dizer publicamente que as “gerações de brasileiras não sabem o que é viver um estado de segurança pública”.

Sem qualquer crítica mais sistêmica, afirmou literalmente que “será um fiel missionário” do governo. É interessante que o pastor André é descrito pelos colegas como pai zeloso, uma pessoa afável e educada, além de ser muito competente nos elementos da Ciência Jurídica, os mesmos qualitativos atribuídos ao diretor da Capes. Contudo, assume voltar-se contra a corrupção, mas, sobretudo, a questão da segurança pública, dita tão falha no país nos últimos anos. Logo, será um “missionário” de Bolsonaro nessa direção da reafirmação do estado policial. 

Além das posses de Benedito de Aguiar e de André Luis Mendonça, o fortalecimento dos evangélicos tradicionais teve como marco a ascensão do pastor Milton Ribeiro como Ministro da Educação. Antes de ser empossado como ministro em nove de julho, Ribeiro estava há 28 anos à frente da Igreja Presbiteriana Jardim da Oração, em Santos. Na igreja que congregava, Ribeiro é descrito como pessoa “acolhedora, tranquila e conversadora”. A comunidade religiosa chegou a se posicionar no apoio ao novo projeto do antigo pastor, destacando seu trabalho em prol família (aqui).  

O pastor Milton também atuou em várias instâncias da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Em sua tese de doutorado na USP, que não está aberta ao público, intitulada “Calvinismo no Brasil e organização: o poder estruturador da educação”, defende o pioneirismo das instituições protestantes no Brasil na constituição da liberdade e da democracia. Destaca que as instituições protestantes “deveriam ser parâmetros para a formação do país”. O trabalho é uma exaltação à educação presbiteriana no país, esquecendo, porém, de avaliar o caráter elitista do projeto de educação protestante no Brasil, como nos lembram os pesquisadores Antônio Gouveia e Mendonça e Procoro Velasques Filho no clássico “Introdução ao protestantismo brasileiro”.

Batista no CNE


Além de Milton Ribeiro, a Educação brasileira ganhou a adesão de um outro religioso, o batista Valsenir Braga, que assumiu no último dia 10 de julho o Conselho Nacional de Educação (CNE). No currículo de Braga, uma longa trajetória como gestor da Rede Batista de Educação em Minas Gerais, uma rede de colégios com 13 unidades. O novo conselheiro tem formação em Engenharia e Administração de Empresas (aqui) e é diretor da Associação Comercial de Minas - ACMinas e do Sindicato das Escolas Particulares de Minas Gerais SINEP-MG.

Na direção do Colégio Batista Mineiro, Valsenir Braga se destacou na implementação do ensino de Inglês para crianças a partir de três anos de idade pelo programa Batista Bilíngue, também se empenhou no ensino de Robótica, numa clara demonstração da preocupação  quanto à “educação tecnológica”  (aqui). Além do conhecido empenho na gestão, Valsenir Braga é descrito em suas redes sociais como pessoa simples, de bom trato e de fortes laços familiares. Agora, sua característica de defesa da educação tecnológica interessa às pautas do governo Bolsonaro.   

 A banalidade do mal e os protestantes tradicionais no governo Bolsonaro

          As trajetórias dos discretos protestantes tradicionais, que vem assumindo os cargos mais “ideológicos” do governo assinalam um caminho já acenado pelo próprio presidente, após tantos problemas políticos nos ministérios.

Contudo, o perfil mais pragmático desses protestantes parece indicar um movimento mais assustador. A ação desses religiosos mais discretos, presbiterianos e batistas, remete à expressão “banalidade do mal” que se fixa nos país mediante o governo genocida de Bolsonaro. As ações desses discretos religiosos remontam ao mal que as pessoas comuns podem praticar nos contextos autoritários, quando deixam de refletir criticamente. Nesse processo, afirmam o governo baseado em concepções que levam à tentativa de tirar a humanidade do “outro indesejável”, fomentando nas pessoas mais comuns a incapacidade de compaixão pelo próximo.

Isso que a filósofa Hannah Arendt indica quando analisa julgamento, em Israel, de Adolfo Eichmann, o burocrata nazista responsável pela gestão do campo de concentração. Mesmo sendo pessoas discretas, os religiosos batistas e presbiterianos agem tal como os burocratas que aderiram à máquina nazifascista, ao aderir ao projeto bolsonorista. Mas mostram que crentes comuns ao frequentarem as igrejas, preocupados com a rotina religiosa de orar, jejuar, cuidar dos filhos e filhas, zelar pela segurança da família, são partes do maquinário estatal autoritário de Bolsonaro.

Por seus perfis pragmáticos e discretos, tais religiosos foram escolhidos a dedo pelo bolsonarismo, com aval da Bancada Evangélica, justamente para operar tecnicamente a área “ideológica” da política autoritária e de morte da atual gestão federal do país. Além do perfil pragmático, competente, cada um, ao seu modo, preenche as lacunas do bolsonarismo, como o aceite a tendências anti-científicas, a construção de um estado policial, a ênfase educacional nas camadas superiores e o destaque na educação tecnológica. Portanto, pode-se dizer que o grande escândalo não está na postura irascível ou histriônica desses religiosos, mas, ao contrário, são cristãos comuns que participam de comunidades absolutamente piedosas e que, em nome da posição e do cargo, optam em abrir mão da reflexão crítica associando-se ao genocídio que hoje assistimos.

Bibliografia:

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MENDONÇA, Antônio Gouveia & VELASQUES, Procoro. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990. 
PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020.    

Divulgação - O Brasil-Nação como Ideologia: a constução retórica e sociopolítica da identidade nacional.


quarta-feira, 15 de julho de 2020

Questões de Conjuntura – Entrevista com George Coutinho – Parte 2

Questões de Conjuntura [1] – Entrevista com George Coutinho – Parte 2
 



Aluysio Abreu Barbosa[2]

 


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Aluysio – Jornalista e secretário do governo Flávio Dino (PC do B) no Maranhão, Ricardo Capelli denunciou que o lulopetismo cobra da esquerda na oposição o que não fez como governo. Lembrou que o PT escolheu Michel Temer (MDB) duas vezes como vice de Dilma Rousseff, que teve o liberal Joaquim Levy como ministro da Fazenda. E que liberal é Henrique Meirelles (MDB), presidente do Banco Central nos dois governos Lula. Capelli está certo: o PT prefere perder as eleições presidenciais de 2022 a perder a hegemonia da esquerda?


Sem dúvida alguma Capelli está jogando com a concretude da dualidade governo/não governo. E é um excelente recurso de retórica. O mesmo comportamento, de acusar e cobrar e não praticar quando se está no governo, é um comportamento estrutural e faz parte do jogo de disputa argumentativa em prol da obtenção do poder. Já no governo a necessidade de compor em uma sociedade complexa e heterogênea se impõe.


O problema, dada a realidade objetiva que constrange, não é compor. Questionável é propor soluções disruptivas quando se sabe que as mesmas produziriam a ruína de um governo. Aí nem pau e nem pedra. Nem mudanças abruptas e tampouco mudanças graduais. Tão importante quanto chegar ao poder é ali permanecer. Por isso os acordos se colocam como necessidade inelutável... cabe é discutirmos as letras pequenas e as entrelinhas destes acordos.


Voltando para sua pergunta, eu acho muito arriscado projetar 2022 neste julho de 2020. O grau de complexidade do cenário de quarentena e do pós-quarentena, o conjunto de incertezas de agora e do futuro próximo, não nos permite arriscarmos quais estratégias serão utilizadas.


Mas, o Partido dos Trabalhadores segue sendo a maior e mais consolidada legenda do campo de centro-esquerda no país. É um partido dotado de militância orgânica e de massas. Considero pouco razoável que o Partido arrisque perder parte deste capital, que ainda é importante neste 2020, em prol especificamente de uma eleição - um objetivo de menor monta se compararmos com todo o esforço empregado na construção do capital político do Partido. Seria se secundarizar enquanto alternativa, seguir a via do PMDB para não sair do poder. Não me parece, por agora, via identificável na história do PT.
 
Aluysio -  Não integrar a Frente Democrática com os ex-ministros Ciro Gomes (PDT) e Marina Silva (Rede), e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), é reflexo do personalismo do projeto lulopetista? Ciro está certo ao culpar Lula e o PT pela ascensão de Bolsonaro?
 
Me parece mais algo que envolve o capital político adquirido pelo PT em 40 anos, o que o torna ainda o único partido de massas com capilaridade na sociedade, do que propriamente uma decisão personalista. Sem a objetividade da magnitude da máquina qualquer vaidade seria risível ou inócua a despeito de quem quer que fosse a liderança, o que inclui Lula.


Não é racional, na perspectiva de uma máquina partidária do tamanho do PT, compor de maneira a se permitir guiar por uma liderança a qual não reconheça legitimidade. Não faz sentido em termos de auto-interesse e das perspectivas de sobrevivência da própria máquina.


O PT enquanto coletividade, que obteve importantes resultados no Nordeste brasileiro mesmo nas eleições de 2018, me parece que segue também coerente com a sua compreensão dos fatos do segundo governo Dilma para cá. Isto o torna arredio, para dizer o mínimo, em compor abertamente com lideranças da centro-direita que tanto questionaram os resultados eleitorais de 2014 quanto ajudaram a inviabilizar o segundo governo Dilma, isto a despeito dos equívocos diversos praticados pelo staff de Dilma desde a segunda metade de seu primeiro mandato.


Sobre Ciro Gomes, é importante colocar o seu discurso nesta temática como parte das estratégias de disputa pelo eleitorado de centro esquerda e da centro direita. Responsabilizar Lula pela ascensão de Bolsonaro é uma meia-verdade. Sem dúvida o conjunto de experiências do PT no poder no século XXI ajuda a explicar sim a formação do capital político que Bolsonaro angariou. Porém me parece carregar demais nas tintas responsabilizar o candidato que estava em primeiro lugar nas pesquisas e foi preso, retirado da disputa, poucos meses antes do pleito, pela vitória de um de seus adversários.
A eleição de Bolsonaro é resultado de um conjunto complexo de variáveis. Responsabilizar diretamente Lula por isso não é estabelecer relação causal sustentável. Funciona como recurso de retórica na disputa pela atenção do eleitorado. Mas, é desonesto intelectualmente se visa explicar a ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo.


Aluysio - Condenado em 2ª instância em dois processos da Lava Jato e réu em outras cinco ações penais, Lula está livre, mas impedido de concorrer pela Lei da Ficha Limpa que aprovou quando presidente. Ele terá condições legais de um dia voltar a disputar mandato? Saiu da prisão maior ou menor do que entrou? E Moro, seu algoz, do governo Bolsonaro?
 
Não creio que Lula seja, nesta etapa de sua trajetória política, um candidato viável para a presidência. Certamente poderia ser eleito senador da república. Mas, para presidência....
Lula sintetizou ódios, ressentimentos e demais antipatias de amplas parcelas do eleitorado brasileiro.


É importante reforçar isso. Para termos uma candidatura viável em um pais com as dimensões do Brasil e com a respectiva heterogeneidade do eleitorado, um candidato precisa ir além de seus apoiadores. Precisa angariar, disputar votos em agrupamentos que transcendem seus eleitores identificados ideologicamente com seus valores e programa.


Lula fez isso pacientemente de sua primeira campanha presidencial no final dos anos 1980 até o início deste século. Foi um trabalho persistente que, atrelado a fatores conjunturais do término do segundo governo FHC, produziu a primeira vitória na disputa presidencial do Partido dos Trabalhadores. O termo “tempestade perfeita” se aplica aqui.


Neste momento, até mesmo por sua idade, não creio na viabilidade de um “projeto Lula” para os anos 2020 a partir das evidências que temos neste momento. Porém, claro, ocorrendo fatos novos de relevância podem ocorrer mudanças neste diagnóstico.


Só não sei se Lula sai propriamente maior ou menor...Ele tem sido tensionado por determinadas declarações impensadas e para além disso, em termos eleitorais, segue inviável... E talvez a questão de sua inocência ou não seja francamente irrelevante para parte do eleitorado que jamais teve apreço por jogar nas regras do jogo. Importava muito mais retirar Lula da disputa de 2018 e isto foi feito. Não cabe superestimarmos os efeitos práticos de uma questão moral no cenário político brasileiro. A moralidade é argumento ad hoc na cultura política.


Sobre Moro, é importante olharmos a sua trajetória. Ele representou os anseios, e soube utilizar isso habilmente na mídia, da busca por uma solução para a corrupção dos governos do Partido dos Trabalhadores. E assim atuou.


Porém, comparando com Lula, temos algo francamente desproporcional. Sérgio Moro falou a atuou para seus convertidos de sempre, a classe média branca e tradicional, e para seus simpatizantes de ocasião. Intelectualmente foi discutido e desmontado diuturnamente por seus adversários no campo jurídico... Flertou com práticas na margem do Estado do Direito que contavam com a legitimação de aficionados por filmes de gangsteres onde qualquer ação, mesmo que flertando com a ilegalidade, valeria por “combater um mal maior”...


Portanto, Moro sempre foi visto como ser vil, medíocre e um problema para o Estado Democrático de Direito para parte da população. E segue uma espécie de gigante moral para determinados setores, sendo estes quantitativamente cada vez em menor número.


Contudo, nesta conjuntura, poderia ser um candidato bem sucedido ao senado federal. Sua carreira política pode prosseguir e ele ainda tem capital político para isso. Porém, ironicamente tal como Lula nesta conjuntura, talvez não tenha capital político para se lançar em voos mais altos.
 
Aluysio - Ninguém à direita ou à esquerda, no Brasil ou no mundo que nos acompanha, crê que Bolsonaro se elegesse presidente em 2018, sem que Donald Trump o tivesse feito antes nos EUA, em 2016. Se o moderado Joe Biden vencer as eleições presidenciais de lá, em 3 de novembro, como indicam as pesquisas até aqui, o eixo político do mundo migrará ao centro?
 
As eleições norte-americanas, desde o pós-Segunda Guerra, interessam a um público que vai muito além do que seu próprio eleitorado nativo.


 A vitória de Trump sem dúvida produziu um importante “empoderamento” de projetos extremistas de direita no mundo. Polônia, Hungria, Brasil, Itália... Conferiu energia a partidos de extrema direita também na Grécia, Espanha, França...


Não coloco as Filipinas de Duterte aqui pelas especificidades deste governo.


Prosseguindo, não por acaso Steve Bannon, ideólogo de extrema direita que teve sim contribuição relevante na eleição de Trump, tentou engendrar uma “Internacional Populista”... E até mesmo fez um uso, pasmem, positivo do termo “populista” ao referir-se ao seu projeto e ao de seus simpatizantes/liderados/seguidores.


O que afirmo neste momento é que Trump derrotado interessa simbolicamente sim para grupos da centro direita que “jogam no jogo” da ordem democrática e aos agentes de diferentes matizes do campo progressista. Contudo, não há garantias de um encaminhamento para o centro em todas as realidades nacionais. Por enquanto pode implicar no retraimento da extrema direita e da direita radical, o que já não é pouca coisa.


É importante pensarmos nos impactos da pandemia. Economias em frangalhos e a demanda pela volta do Estado enquanto agente talvez produza, na verdade, importantes vitórias para a esquerda social democrata em muitas realidades nacionais. Também pode projetar a centro direita conciliadora em determinadas disputas.
 
Aluysio - Quando o socialista Bernie Sanders ainda liderava as primárias democratas a presidente dos EUA, o filósofo da USP Vladimir Safatle, que já tinha causado grande impacto com o artigo “Como a esquerda brasileira morreu”, disse em entrevista ao jornalista Mario Sergio Conti identificar elementos “revolucionários” tanto no projeto de governo de Sanders, quanto no governo Bolsonaro. No sentido de que, mesmo em espectros políticos opostos, ambos tentavam romper com o status quo, ao qual o PT aderiu no poder. Como você vê?


Creio que voltamos para o início de nossa entrevista.


O termo “revolucionário” entre aspas me parece interessante. O termo revolução sem aspas implicaria revolver e romper com estruturas consolidadas que determinam o funcionamento sistêmico de uma dada realidade social.


Mas, sim, Sanders seria “revolucionário” ao praticar, ora quem diria, algumas medidas que encontram paralelo com as impetradas pela Europa que derivaram no Welfare State nos chamados “anos de ouro do capitalismo” como diria o historiador Eric Hobsbawm.


A questão é que tais medidas são tão dissonantes com os EUA que elegeu décadas atrás Ronald Reagan e seu projeto neoliberal, um país que detém uma perspectiva de atuação em termos previdenciários e de saúde coletiva tão radicalmente individualizados, que Sanders poderia implicar em uma mudança importante e gerar uma sociedade mais inclusiva...


Os EUA, dentre os países ricos e industrializados, é o que detém os piores e mais aviltantes índices de desigualdade social. O caso George Floyd é a representação disso que estou falando. Sanders poderia abalar essa configuração sócio-econômica e demonstrar que os EUA podem ser diferentes. Mas, mesmo assim uma realidade social tão consolidada precisaria de um pacto nacional para ser implementado e sustentado por décadas para então surtir efeito.


Nenhuma sociedade complexa tem por solução um mandato presidencial. É preciso construir pactos transgeracionais para termos sustentabilidade para projetos de grande monta. Isto vale para os EUA, Brasil, etc..


Bolsonaro também seria “revolucionário”, entre aspas, ao desmontar o espirito da Constituição de 1988: justamente ali tínhamos o esboço de um Estado de Bem-Estar Social juridicamente pavimentado. Uma constituição socialmente avançada para a nação que é dotada de índices insuportáveis de concentração de renda. Constituição socialmente avançada para uma realidade periférica que detém índices sociais bárbaros.


O Governo Temer tangenciou com pudores esse processo de desmonte da Constituição de 1988. Porém, por “n” razões, não tinha poder de fogo suficiente para levar a cabo este projeto. Vide o fato da aprovação do chamado “Teto de Gastos”, que se mostra a provável causa de um shutdown no próximo ano, e a derrota de sua proposta de reforma previdenciária. Temer ficou na metade do caminho.


Bolsonaro, como afirmei na primeira pergunta, é eleito com um projeto de refundação da sociedade brasileira no âmbito dos costumes, algo que só poderia se concretizar faticamente com um regime autoritário que perseguisse todas as formas de viver que fugissem do que se considera idealmente a família tradicional cristã. Seria uma “revolução” no âmbito de retração dos direitos civis.


Mas, também implicaria a dilapidação do Estado que já é proporcionalmente, em termos comparativos internacionais, muito menor do que o senso comum afirma ser. O projeto de Bolsonaro no poder implicaria a radicalização da responsabilização individual dos cidadãos na sociedade brasileira, seja em termos de segurança individual armando a população, o home schooling enquanto solução educacional, trabalhadores sem qualquer tipo de amparo de legislação social sendo responsáveis individuais quanto a sua sorte no envelhecimento, etc..


Para isto o aspecto “revolucionário” do governo Bolsonaro residiria na destruição sistemática e cotidiana da Constituição de 1988 e seu legado. Algo que conta com apoio direto de parte do empresariado brasileiro e de grupos do setor financeiro que consideram o projeto CF 1988 um óbice.
 
Aluysio - Como analisa a ameaça a cada dia mais séria de impeachment do governador Wilson Witzel (PSC), ex-juiz federal e fenômeno eleitoral de 2018, na esteira do bolsonarismo? E quais suas perspectivas para as eleições a prefeito de Campos em 15 de novembro?


Mais uma vez precisaremos dividir a resposta.

Primeiramente, no caso de Witzel, vemos é o prosseguimento da tragédia político-institucional fluminense. O impeachment, e não entrarei aqui no mérito da questão, é sempre um processo traumático e gera instabilidade inegável agravada por este momento particular, a pandemia, onde os esforços do aparato estatal deveriam se concentrar no enfrentamento da crise sanitária.


É importante colocar em relevo o expressivo placar pró-impeachment de Witzel na ALERJ: 69 votos favoráveis e uma abstenção. Algo como um mineiratzen político.


Até mesmo este placar representativo indica a necessidade de um tipo de esforço de composição com a ALERJ que considero inimaginável.... Caso ocorra e Witzel seja bem sucedido, a ALERJ precisará explicar para a população fluminense as razões para tal reversão.


Por enquanto já compreendo que a ALERJ já fez sua opção pelo impeachment do governador. O custo de reconsiderar a decisão politicamente pode ser insuportável.


Já Campos se mantém com um cenário de disputa eleitoral em nítida movimentação e com as singularidades de um pleito que precisa conviver com importantes restrições de circulação social. Os agentes políticos seguem se apresentando para a disputa no executivo e no legislativo.


Porém, dadas as imposições da conjuntura, a disputa ainda não ganhou em temperatura. 

E, o que é bastante sério, ainda não me parece que derivou em formulação de projetos, propostas para a cidade. Espero que este ponto, o que verdadeiramente importa, seja sanado pelos interessados nas próximas semanas. Campos necessita de algo mais do que improvisos, medidas pontuais, personalismos.. Campos precisa de ação sistemática e inteligente para lidar com as suas demandas.
 
* The Burning Giraffe, Salvador Dali. Imagem originalmente disponível em: https://www.dailyartmagazine.com/salvador-dali-the-burning-giraffe/, acesso em 15/07/2020.


[1] A primeira parte desta entrevista encontra-se disponível aqui: http://autopoiesevirtu.blogspot.com/2020/07/questoes-de-conjuntura-entrevista-com.html
[2] Jornalista e poeta. Diretor de Redação do jornal A Folha da Manhã.


terça-feira, 14 de julho de 2020

Questões de Conjuntura – Entrevista com George Coutinho – Parte 1

Questões de Conjuntura[1] – Entrevista com George Coutinho – Parte 1


Aluysio Abreu Barbosa[2]

*



Um acidente cotidiano com o celular, em local sem TV, impede a atualização dos fatos do Brasil e do mundo, da noite de sábado até o final da tarde de terça. Contato restabelecido, a ciência dos fatos mais recentes vem com a demanda de entendimento mais abrangente, derivada do afastamento. E da leitura de uma boa matéria de fundo da BBC Brasil sobre o momento nacional[3]. Por julgar que Campos merece e tem como fazer algo semelhante, a pauta sai de uma só levada, na quarta. Para respondê-la, o contato é feito na sequência com o sociólogo e cientista político George Gomes Coutinho. Que, acumulando o lançamento do livro de um colega de magistério da UFF-Campos na quinta, acha tempo para responder horas antes do teto estabelecido na sexta. E, pela exiguidade do tempo, impressiona pela profundidade da análise. Esta é a breve história desta entrevista. Cujas respostas têm a didática de desmistificar o presente ao leitor leigo. Da planície goitacá ao Planalto Central. E além.


Aluysio – Feita após a prisão de Fabrício Queiroz, a pesquisa Datafolha realizada entre 23 e 24 de junho[4], indica que Jair Bolsonaro ainda mantém 32% de aprovação popular. A que você credita isso?


Penso que temos duas razões para explicar essa permanência da popularidade. Uma delas se encontra na fisionomia do sistema político brasileiro pós-2013. A bipolarização hegemônica PT-PSDB da década de 1990 a 2013 atraiu os agentes políticos para o centro político. Isto inclui, evidentemente, os extremos do espectro político, tanto da esquerda quanto na direita.


De alguma maneira isso permitiu que os setores mais radicais se deparassem com os filtros de ambos os partidos que atuaram DENTRO das regras do Estado Democrático de Direito estabilizando o sistema político. Ou seja, nem PT e tampouco PSDB tinham por objetivo a subversão da ordem para obterem o poder. Pelo contrário, atuaram dentro da ordem democrática utilizando da competição eleitoral e aceitando os resultados decorrentes. A exceção foi o questionamento da legitimidade das regras do jogo em 2014 por Aécio Neves. Mas, é exceção. Não é regra. Por outro lado a transição civilizada de poder de FHC para Lula ilustra o que eu estou dizendo em termos de manutenção da estabilidade do sistema político na ordem democrática.


Bem, de todo modo o período da maior estabilidade política já nos dá um indicativo importante sobre os extremos. Estes não desaparecem pós-1988. Na verdade os extremos se acomodam nas estruturas partidárias legais. E seu eleitorado tampouco desapareceu.


Uma prova disto é compreendermos que Jair Bolsonaro teve uma carreira muito bem sucedida enquanto parlamentar. Foram quase três décadas transitando em partidos da direita fisiológica, o que inclui o PP. Contudo, o seu discurso extremista se apresentava no máximo como parte do anedotário político. E a própria estrutura do sistema político o “controlava” escanteando o deputado.. Mas, não só Bolsonaro. 


Cabe notar que PSDB, ex-PFL e outros partidos da centro direita também atraíram agentes políticos egressos, por exemplo, da segurança pública com a mesma pauta conservadora e discursos agressivos, pautas de ódio e afins. Mas, a própria estrutura partidária neutralizava ou fazia com que os estes agentes, se tem ambições de ocupar relatorias, acessarem verbas, terem projetos aprovados, seriam obrigados  a irem ao centro politico, diminuírem a beligerância de seus discursos. De alguma maneira, os partidos e o próprio sistema político até mais ou menos 2013 impunham um filtro civilizatório e freavam arroubos disruptivos.


Contudo, como eu disse, esta fisionomia do sistema politico implodiu.


O eleitorado de extrema direita pós-2013, que jamais abandonou uma pauta conservadora nos costumes - anti-LGBT, anti-cotas raciais, punitivista, armamentista, etc.. -  viu opções na concorrência eleitoral que finalmente poderiam apresentar suas agendas nos escombros da polarização PT-PSDB. Cabe notar que o acirramento dos discursos fez até mesmo com que João Dória, candidato do PSDB ao governo de São Paulo, ingressasse no discurso “linha dura” com muitas afinidades com as demandas da extrema-direita. Em 2018 era o voto “Bolso-Dória”.


Portanto, este eleitorado, que jamais deixou de existir, vê em Bolsonaro a representação de seus valores, anseios e projeto de sociedade. É um eleitorado de extrema direita que defende, mesmo que sem absoluta compreensão de suas consequências, a possibilidade de um golpe de Estado como solução para o Brasil. Soluções simples, de curto prazo, para problemas invariavelmente complexos e estruturados há décadas...E, em alguns casos, problemas estes que encontram suas raízes até mesmo na construção do Brasil enquanto Estado-Nação no século XIX.


Na mesma pesquisa citada por você esse eleitorado é algo nos arredores de 15%[5]. É um eleitorado que aderiu aos elementos discursivos, práticos e programáticos de Bolsonaro. Não é o eleitorado pragmático que falarei mais adiante.


Estes 15% acreditam que as eleições de 2018 significam a refundação da sociedade brasileira e veem em Bolsonaro a personificação deste projeto.


Quanto aos outros eleitores, os 15% restantes, creio que podemos classifica-los menos como programáticos e mais como pragmáticos. Ou seja, veem em Bolsonaro e em seu Governo a possibilidade de atendimento de suas demandas de curtíssimo prazo. De um lado os que apostam no que Christian Lynch acertadamente considerou um pouco como tornar o Brasil uma imensa Miami idealizada. Sem proteção social para trabalhadores e setores vulnerabilizados, paraíso de consumo, amplos setores e serviços sob direção da iniciativa privada, soluções individualizadas para problemas coletivos, etc.. São parte da classe média, diferentes níveis do empresariado, setor financeiro. Cabe notar a histeria de parte da classe média diante, por exemplo, com a possibilidade de empregadas domésticas terem o mesmo status de outros trabalhadores brasileiros. Demanda similar se encontra no empresariado onde problemas de redução de lucros gerados por baixíssima produtividade tem sido remediados não com investimento e sim em redução do custo da força de trabalho retirando a proteção social dos mesmos.


Cabe notar que parte deste setor de pragmáticos tem saído gradativamente do apoio ao governo. Não por estarem perplexos com os arroubos, maus modos e demonstrações de práticas e discursos no campo da extrema direita. Mas, sim, se sentem desapontados por não verem neste governo a possibilidade do projeto “Miami Continental”, digamos assim, decantar na realidade.


Paradoxalmente se os setores pragmáticos acima são anti-Estado, o outro grupo de pragmáticos é pró-Estado. São os grupos vulneráveis que se encontram ainda mais fragilizados durante a pandemia e veem na Renda Básica Emergencial possibilidade de manutenção de suas contas e até mesmo garantia de sua própria sobrevivência. Dentre estes há até mesmo acesso a patamares de consumo que não conheciam antes da pandemia. É o voto pragmático LulaNaro (ou BolsoLula). Este agrupamento, em sua fragilidade sócio-econômica, tem suas preferências políticas afetadas de forma direta ou indireta por políticas redistributivas.


Alguns analistas consideram que o estoque de apoiadores do governo Bolsonaro tem novidades justamente entre estes dois grupos de eleitores pragmáticos. Os primeiros, mais próximos de uma agenda ultraliberal e anti-Estado, começam gradativamente a sair do apoio. E os segundos, os setores vulnerabilizados, passam a apoiar o governo Bolsonaro a partir da entrada em cena de políticas redistributivas. Teríamos o fenômeno de renovação da base de apoio ao governo neste ano de 2020 motivado por razões conjunturais, a quarentena no caso.


Enfim, a permanência é explicável por uma parte do eleitorado identificado com valores e propostas da extrema direita. É o eleitorado ideológico. Mas, também por pragmatismo de eleitores tanto anti-Estado, os que se engajaram na agenda ultraliberal de Bolsonaro/Guedes que ainda permanecem no apoio, e, por motivações opostas, por pragmatismo de setores vulnerabilizados atraídos por políticas redistributivas durante a quarentena. Estes últimos os novíssimos apoiadores ou apoiadores de última hora.
 


Aluysio – O Datafolha também apontou que Bolsonaro tem 44% de rejeição. É o pior índice de um presidente com um ano e meio de gestão durante a redemocratização do país, superando Fernando Collor de Mello em 1991, que bateu 41% de rejeição com um ano e cinco meses no poder. Como entender a avaliação popular nas suas duas pontas?


Os que rejeitam podem também se situar entre pragmáticos e ideológicos digamos assim.


Bolsonaro conta, até por elementos constitutivos de sua retórica, com rejeição perene e organizada dos setores do eleitorado que enxergam nas pautas progressistas e políticas inclusivas um patrimônio civilizatório. Neste escopo vai desde a militância tradicional de esquerda até grupos de uma classe média mais cosmopolita, instruída por valores da pauta sócio-ambiental que o sociólogo Jessé Souza ironicamente chamaria de “classe média de Oslo”. São grupos que não iriam aderir a um discurso que mantém afinidades com pautas regressivas em termos sociais. Já seriam o núcleo duro de oposição ao governo Bolsonaro. Se enxergam ameaçados, até mesmo em seu estilo de vida, pelo discurso extremista do presidente e de seus seguidores mais ruidosos.


Contudo, há outros insatisfeitos.


Desde o eleitorado anti-petista que votou afetivamente em Bolsonaro contra o PT como uma espécie de “vingança”, até eleitores que consideram a possibilidade de piora da situação sócio-econômica do país, o que inclui a perda de qualidade na inserção no Brasil no sistema internacional e nas relações de comércio exterior. Estes últimos se preocupam cotidianamente com a hipótese do Brasil se tornar um pária internacional e consideram a permanência do governo um custo muito alto a se pagar por efeitos deletérios no médio e longo prazos.


Sejam os eleitores que votaram “com o fígado” ou os que consomem informações econômicas objetivamente, ambos os grupos não são eleitores progressistas ou da esquerda tradicional. Não seriam, portanto, estruturalmente oposição ao governo Bolsonaro. Contudo seja pela racionalidade decorrente da passagem do tempo, que acalma os humores, ou os dados objetivos macroeconômicos, estes eleitores acabam se vendo empurrados para uma condição que gravita entre impaciência, desespero e franca irritação.


Aluysio – Segundo a pesquisa, a perda de apoio do presidente entre as classes média e alta foi substituída pelo seu crescimento junto à parcela mais pobre da população. Hoje, metade dos que consideram o governo bom ou ótimo ganha até dois salários mínimos. Como você vê?


Como apontei na minha primeira resposta, no primeiro grupo, entre partes das classes média e alta, há a frustração de expectativas. A aposta foi bastante alta por este grupo.


No segundo grupo, os setores mais vulneráveis, há a surpresa, o fato inesperado de que alguns, mesmo na quarentena, mediante a Renda Básica Emergencial, se encontram em patamares de consumo que até então sequer haviam experimentado em suas biografias. Esta mudança concreta de padrões de consumo faz com que racionalmente, mesmo que no curtíssimo prazo, este grupo passe a ser apoiador do Governo. O desafio é a sustentabilidade deste apoio no médio prazo. Por ter um dado objetivo para sua mudança de preferências, a política redistributiva, a retirada abrupta pode causar profunda frustração também neste grupo. Frustração e raiva. Algo que o PT experimentou no segundo governo Dilma no ano de 2015 em diversas camadas da população.


Por ser algo previsível, esta diminuição do quantitativo de atendidos pelas políticas de transferência de renda durante a quarentena, talvez permaneçam no apoio ao governo, ao final de tudo, os 15% que mantém afinidades com propostas extremistas e que defendem uma solução que subverta a ordem democrática.


Aluysio – Diretor do Datafolha, Mauro Paulino explicou que tanto nas pesquisas de maio, quanto de junho, um terço dos 32% que hoje apoiam o presidente não votaram nele em 2018. Entre estes novos 10%, a maioria recebeu o auxílio emergencial de R$ 600. Será o novo caminho para o bolsonarismo, como foi o Bolsa Família para o PT? Por quê?


A conferir. O Bolsa Família foi um programa de transferência consolidado que deu novo significado a politicas sociais focalizadas implementadas ainda do governo FHC. O Bolsa se tornou um programa bastante sólido, é de alguma maneira até mesmo afinado com muitos princípios que estão na Constituição de 1988. Não por acaso grupos políticos de ambos os lados do espectro político defendem a constitucionalização do programa.


Se o Governo Bolsonaro irá inaugurar iniciativas com este impacto estrutural que modifiquem as preferências do eleitorado.. Não me parece algo que está no DNA deste governo em especial. Seria um esforço de policy switch considerável.. E caberia vermos se seria de fato eficaz nas próximas concorrências eleitorais. De todo modo tudo me parece tão hipotético ainda que tenho dificuldade de cravar uma resposta que não seja meramente especulativa e/ou evasiva. 


Aluysio – A perda de apoio do presidente entre as classes média e alta, que votaram maciçamente nele em 2018, teria começado com a saída do ex-ministro Sérgio Moro do governo. E se intensificado com o inquérito das fake news, a prisão de Queiroz e o avanço das investigações da “rachadinha” do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos), quando deputado estadual do RJ. Como analisa essa perda da bandeira moralista da luta contra a corrupção?


Sobre este campo, a pauta “anti-corrupção”, realmente eu tenho dúvidas se a saída de Sérgio Moro causou tamanho impacto. Pode ter causado sim baixas no apoio. Mas, não algo dotado de impacto estrutural.


Igualmente tenho muitas dúvidas se a pauta anti-corrupção, embora sem dúvida vocalizada muitíssimo, seja realmente um modulador de preferências relevante. Cabe notar que para parte destes grupos “anti-corrupção” a prática de corrupção era algo vinculado a um determinado grupo do espectro político. Curioso que tanto parte da esquerda quanto parte da direita compartilham essa curiosa percepção: a corrupção é privilégio do outro lado do espectro político.


Faticamente enquanto fenômeno de massas os agrupamentos “anti-corrupção” causaram abalos sísmicos de fato em dois governos do campo da centro-esquerda. O governo João Goulart na década de 1960 e no governo Dilma na década de 2010.


Finalizando a minha reposta, eu gostaria de olhar mais detidamente para os dados e comparar com outras pesquisas para assumir um veredito. Neste momento sou cético quanto a ser uma bandeira que causaria uma debandada importante de apoio ao governo.
 


Aluysio – Outro fator de perda de apoio de Bolsonaro, sobretudo entre as mulheres, é sua condução da crise da pandemia da Covid-19, alvo de reprovação em todo o mundo. Como viu agora seu anúncio de que testou positivo para a doença, bem como os desejos de morte que lhe destinaram parte dos seus opositores? E a possibilidade do presidente do Brasil ser processado por crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional de Haia?


Vou precisar dividir.


Primeiramente as mulheres em uma sociedade periférica são as mais penalizadas em um cenário de quarentena. Alijadas do aparato escolar, que lhes permite até mesmo maior disponibilidade para o mercado de trabalho, as mulheres se encontram sobrecarregadas enquanto educadoras de seus filhos e cuidadoras. Também historicamente há a desigualdade, em nossa sociedade, na distribuição das tarefas de reprodução da força de trabalho, a manutenção do ambiente doméstico, preparação de alimentos, etc.. Este conjunto de pressões tem boas razões para afetar o humor do eleitorado feminino sem dúvida. Ainda mais a parte do eleitorado que compreendeu que a frouxidão da condução do enfrentamento da pandemia no Brasil está prorrogando o sofrimento cotidiano delas mesmas. Afinal, factualmente os países que conseguiram vencer a pandemia foram os que se fecharam, controlaram e testaram massivamente suas populações. Em termos comparativos não há outro caminho que não perpasse perdas e mortes.


E ainda o eleitorado feminino lida com a barbárie do aumento da violência doméstica/conjugal.


Sobre o teste para o covid-19 do presidente até agora vejo três consequências imediatas. E não vou entrar aqui no debate sobre veracidade do resultado ou não. A despeito disso, em termos práticos o presidente pode utilizar a justificativa da doença como tática de contenção de pressão política e midiática sobre si. Pode desmarcar compromissos, ganhar tempo, etc.. Pode se tornar um recurso para manobras protelatórias. Igualmente pode usar como fator positivo na busca por recuperação do desgaste de sua imagem diante de parte do eleitorado, direcionar como fator que o humanize e angariar simpatia e empatia.


Também há a possibilidade de injetar maior interesse no consumo da cloroquina e da hidroxicloroquina, caminho terapêutico que já defendeu em inúmeras ocasiões.Sobre desejar a morte. Não é ilícito. Não é o mesmo que incitar o assassinato do presidente, isto sim crime.


Mas, em minha perspectiva, indica somente a perda de qualidade de nossa opinião pública. Quando na falta de análises e críticas objetivas um agente público, qualquer agente público, apresenta a morte decorrente de uma doença como uma solução para um determinado quadro político conjuntural... acho que temos uma deterioração lamentável da capacidade argumentativa, discursiva. Não obstante ser algo moralmente reprovável.Como disse, não é ilícito. E é parte da cultura política a comemoração da morte ou a celebração de diagnósticos graves quando temos aí alvos da classe política brasileira. Parte de nossa população já se demonstrou capaz até mesmo de celebrar publicamente um diagnóstico de câncer.


De forma ou de outra é, em minha perspectiva, algo que apequena quem profere tal desejo e expõe, para dizer o mínimo, certa incapacidade de formulação e embate na arena política dentro das regras do jogo. Me parece a arma do canalha despreparado.Sobre Haia e o uso de tribunais internacionais eu não tenho condições de responder com exatidão neste momento. Contudo me parece que se Bolsonaro é passível de julgamento neste tipo de foro nos cabe perguntar se Donald Trump também o é. As práticas de ambos são muito semelhantes e ambos, ignorando o conhecimento sistemático que temos, a ciência, provocaram perdas de vidas em seus respectivas países que poderiam ter evitado.


É importante notar que a Suécia enveredou em caminho similar. Mas, com menos ênfase em uma ignorância orgulhosa de si.


O que eu digo é sobre a possibilidade da acusação de genocídio. Pau que dá em Bolsonaro tem que dar em Trump e este debate está só começando. Se estamos falando de um tribunal internacional, Bolsonaro não é caso único no próprio sistema internacional.


(A segunda parte da entrevista será publicada amanhã)





*La Guernica, Pablo Picasso. Imagem originalmente disponível em: https://www.museoreinasofia.es/en/collection/artwork/guernica, acesso em 14/07/2020.


[1] A primeira versão desta entrevista foi publicada como parte de painel de análise de conjuntura onde participaram Arthur Soffiati, Carlos Alexandre de Azevedo Campos, Cristiano Miller, Murillo Dieguez, Roberto Dutra e o próprio George Coutinho. A versão integral deste esforço coletivo pode ser conferida aqui: http://opinioes.folha1.com.br/2020/07/12/bolsonaro-lula-moro-witzel-eleicao-a-presidente-dos-eua-e-a-prefeito-de-campos/, acesso em 14/07/2020.