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quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Mistura explosiva: endividamento, fome e o “novo” Bolsa Família

 

Fonte: BBC.

Mistura explosiva: endividamento, fome e o “novo” Bolsa Família*

 

* Publicado originalmente no Blog do Pedlowski.

 

Luciane Soares da Silva**

 

Desde o início da pandemia em fevereiro de 2020, no Brasil, assistimos a um processo de deterioração das condições gerais de vida da população em todas as cidades. A visibilidade desta deterioração estava no aumento do número de famílias vivendo nas ruas, nas filas de emprego, na impossibilidade de cumprimento do isolamento social nas favelas. Vimos de perto formas de improvisação dos governos municipais, de negação do governo federal e de autoritarismo de governos estaduais que tentaram forçar seus servidores ao retorno presencial em mais de uma ocasião.  Um elemento comum deve ser destacado ao longo de toda a pandemia: a capacidade de organização da sociedade civil nos processos de resistência e fraternidade política. Nas favelas, foi mais comum que funcionassem ações coletivas para alimentação e medidas sanitárias do que ação efetiva das Prefeituras. Sindicatos da educação, da justiça e categorias organizadas rechaçaram as investidas de retorno ao trabalho de forma atabalhoada e colocando vidas em risco. Cidadãos comuns reuniram forças e organizaram entregas sistemáticas de alimento  à centenas de famílias em situação de pobreza e extrema pobreza. Movimentos de produção rural e  pequenos agricultores doaram toneladas de alimentos à população.

Os meses passaram, as mortes por COVID-19 aumentaram e passamos a lidar com duas frentes de problemas: uma crise sanitária e outra humanitária. Os auxílios recebidos não foram suficientes para enfrentar a insegurança alimentar que já estava na mesa dos brasileiros. Principalmente mulheres que chefiam famílias e vivem de trabalho informal. Principal grupo a perder suas fontes de renda com a pandemia. Não havia mais como vender alimentos em festas, realizar diárias, ocupar-se de trabalhos estéticos e uma infinidade de ocupações que dependem de um mercado de alimentação, lazer, turismo, serviços em geral.

Chegamos ao fim de 2021 com o fechamento natural deste quadro: o acirramento da pobreza. Na Portelinha, comunidade localizada em Campos dos Goytacazes, é certo arriscar que mais de 50% das famílias vive quadro de desemprego e insegurança alimentar. Para além disto, é possível supor que esta realidade pode ser amplificada para a cidade e capitais.  São milhões de desempregados e as cenas de pessoas revirando o lixo não produz qualquer efeito sobre o governo federal. Temos a comprovação de que o ministro da economia tem lucrado como nunca ao longo dos meses recentes. E é certo dizer que ele odeia pobres.

Que temos um presidente genocida, não é preciso repetir. Temos uma tarefa pela frente no dia 15 de novembro. E a considerar a gravidade do quadro de fome e desemprego no país, esta tarefa não é fácil. Será necessário reafirmar as bandeiras que foram levantadas ao longo destes dois anos. Sobre a importância do funcionalismo, do SUS, da Universidade, da Ciência. Será necessário denunciar os crimes ambientais cometidos pelo governo Bolsonaro e seus apoiadores. Mas talvez seja igualmente necessário fazer o diálogo com aqueles que neste momento estão revirando todo e qualquer lugar no qual possam encontrar alimento.  A experiência da fome é limítrofe pois estabelece para quem a vive, uma condição de não humanidade. Em um cenário de desigualdade no qual vemos estas diferenças de forma ampliada, será preciso quebrar algumas paredes e direcionar energia ao contato com periferias, zonas rurais, população em situação de rua e outros territórios em vulnerabilidade.

Com a chegada do Natal, dos embrulhos, perus, luzes, férias, viagens, todos este quadro parecerá ainda mais distópico. Com a segunda dose no braço, famílias planejam realizar encontros interrompidos. Quando as festas acabarem estaremos de frente para uma eleição. O candidato Bolsonaro pretende levantar sua popularidade com um novo auxílio. O Programa Auxílio Brasil pretende substituir o Bolsa Família. Além de ainda não ter uma clara dotação orçamentária, o programa institui penduricalhos meritocráticos. Existem pontos questionáveis sobre a relação entre creches e rede privada, uma vez que os municípios ficarão fora desta intermediação[1], bagunçando relações que podem ser melhor administradas a partir da esfera municipal. Das muitas mudanças cujo objetivo parece ser “incentivar” crianças, jovens e adultos a produzir melhor, a mais assustadora é certamente a que propõe consignar o auxílio. Exatamente: um incentivo ao micro empreendedorismo de pessoas em condição de extrema pobreza. Neste texto não será possível detalhar as implicações e fragilidades contidas na proposta. Mas vale a pena citar o conteúdo original da Medida Provisória 1.061 de 9 agosto de 2021 que institui o Programa Auxílio Brasil e o Programa Alimenta Brasil[2]:

Da consignação

Art. 23. Os beneficiários de programas federais de assistência social ou de transferência de renda poderão autorizar a União a proceder aos descontos em seu benefício, de forma irrevogável e irretratável, em favor de instituição financeira que opere modalidade de microcrédito, para fins de amortização de valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos e financiamentos, até o limite de trinta por cento do valor do benefício, nos termos do regulamento.

Supondo que o auxílio seja suficiente para cobrir o valor atual de uma cesta básica em São Paulo, o que o governo pretende ao instituir um “consignado” sobre valores que mal possibilitam a alimentação de uma família?

Sabemos que há um risco real de que este auxílio reabilite Bolsonaro entre os mais pobres. Isto porque a economia não crescerá em 2022 no ritmo necessário para sanar a precariedade vivida por estas famílias. E possivelmente ele usará este instrumento para percorrer o Brasil em sua campanha. O Bolsa Família sempre foi o coração das administrações petistas. Não são poucas as críticas feitas ao programa, não são poucos os defensores do programa. O certo é que vivemos uma inflação galopante que inviabiliza qualquer recuperação da mínima dignidade da população em situação de extrema pobreza. A linha entre os remediados e os miseráveis vão perdendo seus contornos. É certo que alguém colhe estes dividendos. Economicamente. Politicamente.

Nosso desafio neste dia 15 de novembro é manter o diálogo com a população, evitando que um genocida assuma o poder por mais quatro anos a partir da  consignação da miséria alheia.

[1] https://piaui.folha.uol.com.br/o-que-muda-no-novo-bolsa-familia/

[2] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.061-de-9-de-agosto-de-2021-337251007

 

** Socióloga. Professora da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Chefe do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (LESCE). Diretora da Associação de Docentes da UENF (ADUENF).

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Restaurante Popular: qual política está posta na mesa? (parte 2)



Restaurante Popular: qual política está posta na mesa? (parte 2)

Por Bruna Machel e Paulo Sérgio Ribeiro

1.            Um breve balanço 

Meses se passaram desde que iniciamos este texto (aqui) e, vale dizer, as motivações para concluí-lo incorporam as vozes das mulheres e homens que tornaram possível o Movimento em Defesa do Restaurante Popular.

De lá para cá, quais avanços e resistências constatamos no debate acerca da reabertura do Restaurante Popular?

Um primeiro avanço, sem dúvida, dá-se no controle social e mobilização dos usuários da assistência social, movimentos sociais, intelectuais e segmentos de esquerda na defesa do caráter universal e acessível dessa política de segurança alimentar e nutricional, em contraponto ao modelo original CESAN, apresentado pela Prefeitura Municipal de Campos. Seja em plenárias no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), seja em atos de protesto tais como o almoço a R$ 1,00 que nós, Movimento em Defesa do Restaurante Popular, promovemos em frente ao Restaurante Popular Romilton Bárbara em 28/03/2019, dentre outras. Consolidamos não somente uma concepção de projeto consonante com a dinâmica real da cidade de Campos, levando em conta os direitos sociais dos trabalhadores e trabalhadoras, como também impulsionamos participação direta desses setores nas decisões de interesse público.

Um segundo avanço concreto foi a reabertura das discussões junto a Prefeitura de Campos, que reconheceu, em plenária extraordinária do dia 05 de Abril no CMAS, haver a necessidade de reduzir os valores estimados no preço das refeições. Reconhecimento este que, no entanto, não garante alteração em pontos do projeto que nos parecem fundamentais.

As resistências, a serem detalhadas adiante, concentram-se nos seguintes aspectos: a) os critérios de focalização no Restaurante Popular; b) a efetividade ou não deste serviço em sua correlação com outras políticas setoriais.

Os referidos aspectos se complementam, haja vista o que está verdadeiramente em jogo: uma cidade que inclua todos(as) os(as) trabalhadores(as) à vida urbana. Noutros termos, tratar das condições de retomada do Restaurante Popular diz respeito, fundamentalmente, às lutas populares contra a lógica da acumulação capitalista que mercantiliza o espaço urbano, bem como perpetua o acesso desigual aos serviços e benfeitorias nele existentes. 

Seguindo a concepção original de Henry Lefebvre (2008) acerca do “direito à cidade”, avaliar em que medida se realiza a gestão pública de um restaurante que faça jus à alcunha de “popular” é pensar a área central de Campos dos Goytacazes não como mero lugar de consumo, mas, sobretudo, como o direito a uma “centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos de tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais etc.”[1]

Desse modo, apresentamos uma crítica propositiva do serviço público a ser executado no Restaurante Popular, defendendo-o como a concretização de um espaço de encontro e de convívio de diferentes classes e grupos sociais no que tange ao direito universal à alimentação saudável.

2.            O foco da política

Neste blog, já revisamos as mediações analíticas entre duas orientações da política social - focalização e universalização -, demonstrando como elas podem se interpenetrar na realidade a depender da concepção de justiça social adotada em face dos conflitos distributivos (
aqui).

Tomando por referência aquela discussão teórica e, sobretudo, a validação da mesma no diálogo com diferentes segmentos dos(as) trabalhadores(as), esclarecemos aqui nossa divergência quanto aos critérios de focalização para o Restaurante Popular estabelecidos pela gestão Rafael Diniz.

Relembremos: no “projeto” do Centro de Segurança Alimentar e Nutricional (CESAN), nomenclatura com a qual será rebatizado o Restaurante Popular, delimita-se o público-alvo conforme critérios de renda que justifiquem ou não a gratuidade das refeições.

Quais critérios? Pessoas com renda mensal familiar per capita de até R$ 178,00 inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) terão gratuidade nas refeições; também por meio do CadÚnico, pessoas cuja renda mensal familiar per capita seja de até três salários mínimos ou com renda superior a três salários mínimos, desde que vinculadas a programas sociais em quaisquer esferas de governo mediante inscrição no CadÚnico, terão acesso às refeições pagando a metade do valor a ser licitado.

No sítio oficial da Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes (aqui), lança-se mão de uma estimativa do preço das refeições conforme o valor licitado no último contrato administrativo concernente ao Restaurante Popular:


Ainda segundo o órgão responsável - a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social (SMDHS) -, demais usuários que não se enquadrem em nenhum dos critérios de renda mencionados, pagarão o valor “normal” das refeições, o que põe em xeque a cobertura do serviço em face de inúmeras situações de vulnerabilidade de pessoas cuja renda é depreciada no mercado informal de trabalho.

Ademais, outra proposição se mostra problemática por derivar de um provável erro do diagnóstico que, em tese, justificaria o discurso oficial em torno do CESAN: a priorização dada a pessoas em situação de vulnerabilidade social e à população em situação de rua a partir de sua inscrição obrigatória no CadÚnico.

Ora, alguém indagaria, por que ser contrário à gratuidade de refeições ofertadas pelo poder público a quem se encontra em estado de pobreza ou de extrema pobreza? Não seria autoevidente a justificativa para tal? Será que apontar possíveis equívocos quanto a isso não é recair numa visão elitista da relação entre Estado e sociedade?

Sem ilusões: há muitos ardis nesta discussão e negá-los nada mais é do que subestimar a complexidade da pobreza estrutural em nosso município.

Não discordamos de que pessoas empobrecidas devam ter acesso facilitado aos serviços públicos. Há relativo consenso quanto àquela premissa. Porém, há objeções factuais ao desenho da política de segurança alimentar e nutricional esboçado pela gestão Rafael Diniz. São elas:

1)      Uma quantidade nada desprezível de pessoas muito pobres e/ou em situação de rua não dispõe de documentos pessoais ou, pior, sequer da própria identidade pessoal (algumas são acometidas de doenças mentais inclusive), tendo em vista a precariedade à qual estão submetidas em suas existências. Assim sendo, a obrigatoriedade de inscrição do CadÚnico, que de automática nada tem, implicaria, na prática, uma barreira de acesso ao pretenso público-alvo do Restaurante Popular.

O Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua - Centro POP, por exemplo, que tem como função social oferecer mínimas condições de dignidade e sociabilização das pessoas que se encontram em situação de rua, ainda não conseguiu solucionar o enorme problema de sub-cadastramento desta população no Cadastro Único de Programas Sociais. Segundo estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), apenas 47,1% da população em situação de rua está devidamente cadastradas no Cadastro Único (dados de 2015) [2]

2)      Objetivando a segurança alimentar das pessoas extremamente pobres, os restaurantes públicos não devem servir de substituto de políticas de focalização. Nesse sentido, é indispensável reativar o programa municipal de complementação de renda, possibilitando autonomia às famílias na aquisição dos alimentos necessários à sua subsistência. A focalização da assistência social, nestes casos, ataca o problema da fome considerando a forma espacialmente difusa em que ela se manifesta.

3)          A seleção do público-alvo do Restaurante Popular mediante critérios de renda subjacentes ao CadÚnico, além de acarretar entraves burocráticos, jogaria uma pá de cal na perspectiva da alimentação saudável enquanto direito universal. Não menos, um agravo: a anulação daquela perspectiva ocorreria sob o custo de estigmatizar seus usuários ditos “prioritários”.

Avaliar riscos de estigmatização não é uma perfumaria, se pesarmos o histórico de instrumentalização política da pobreza que empresta uma fisionomia à institucionalidade local, um verdadeiro caldo de cultura no e pelo qual os aprendizes neoliberais de hoje e os carcomidos “garotistas” de ontem têm, digamos, muito a confraternizar no que aparentemente os opõem na arena partidária. 

Em contraponto às vicissitudes daquela arena partidária, o que constatamos no almoço/protesto que realizamos em 28/03/2019? Pessoas socialmente vulneráveis, que na fila se dispuseram para almoçar, compravam uma, duas, três (e, em alguns casos, mais do que três) refeições por nós vendidas a R$ 1,00. Mais do que aproveitar o preço módico que definimos, confirmávamos ali que o ato de alimentar-se é inerente a um bem primário: autorrespeito.

Dito de outro modo: absolutamente ninguém solicitou a gratuidade da refeição. Nós mesmos, organizadores(as) do almoço, revezamo-nos nas tarefas para nos juntarmos aos(às) concidadãos(as) para aguardar a vez de almoçar pagando também R$ 1,00.

Autorrespeito (e autoestima) é um bem primário e, a princípio, impossível de ser distribuído diretamente por uma gestão municipal. Contudo, a percepção de si como a afirmação de sua pertença à uma comunidade de iguais – uma promessa irrecusável da Modernidade –, é um padrão moral de reconhecimento afetado pelo modo como outros bens igualmente primários são distribuídos, tais como renda, riqueza, acesso a oportunidades educacionais e ocupacionais e provisão de serviços.

Sendo assim, adotar um preço único para as refeições seguindo a média nacional dos preços praticados em restaurantes populares (algo entre R$ 2,00 e R$ 3,00) é não só viável, mas necessário para restituir (ou, ao menos, aproximarmo-nos de) um igual status de cidadania das pessoas em nossa urbanidade. Noutros termos, não há como projetar a efetividade do serviço “Restaurante Popular” sem pensá-lo enquanto uma política redistributiva que torne realmente a área central da cidade um patrimônio do povo campista; do contrário, confirmaremos aquilo que ele sempre foi: um escalonamento social em que cada um(a) sabe qual é o “seu” lugar.

No entanto, em uma das “sugestões de operacionalização do CESAN”, chama-nos atenção a notória ausência de uma perspectiva de urbanidade que sedimente a igualdade democrática entre nossos(as) trabalhadores(as):

Considerando as dimensões territoriais do município e a localização do CESAN diante dos custos do transporte, as pessoas em situação de rua e em extrema pobreza e pobreza terão gratuidade em todas as refeições [3]. 

No discurso oficial do CESAN, a crise do transporte coletivo seria facilmente contornável se tomássemos o Restaurante Popular por uma espécie de política “tampão” para serviços de utilidade pública disfuncionais ou, quiçá, inexistentes em certas localidades do município. Ora, segurança alimentar e nutricional mantém uma interface com a política de assistência social sem, contudo, confundir-se com a mesma, uma vez que é fundamentalmente uma ação intersetorial.

Para não recairmos em falácias, indaguemos: o que viria a ser uma ação intersetorial?

3.            Ação intersetorial

A intersetorialidade, antes de ser um conceito, é uma contingência na administração pública dos dias atuais. Atingir graus satisfatórios de eficiência e eficácia nas ações e programas de quaisquer esferas de governo envolve, cada vez mais, incorporá-la na implementação das políticas setoriais.

Conceber e executar uma política pública assumindo de modo consciente a dimensão da intersetorialidade implica, pois, que exista pelo menos algum ensaio de agenda pública em que diferentes setores possam compartilhar objetivos comuns e, consequentemente, articular saberes técnicos na construção de um Estado social em determinado território.

Dito isto, o que vemos no processo de reativação do Restaurante Popular?

Uma sobreposição da Assistência Social (com os discutíveis critérios de focalização já mencionados) às demais políticas públicas sem qualquer arremedo de uma metodologia que lhes proveja articulação tendo por lastro um diagnóstico local sobre a insegurança alimentar e nutricional.

É sintomático a ausência de uma abordagem intersetorial do Restaurante Popular quando observamos a relação espúria que seus gestores estabelecem entre a gratuidade das refeições, a localização daquele serviço e o custo do transporte coletivo.

Ora, a resolução de um problema se insinua na maneira como o formulamos.

Desatemos os nós: desde a promulgação da Lei da Terra (1850), que formalizou a propriedade privado do solo no Brasil, a terra se tornou mercadoria. Não diferente de outras cidade de médio e grande porte, em Campos dos Goytacazes a urbanização se deu de forma desigual, sobretudo e de forma mais acentuada após o processo de falência das usinas de cana-de-açúcar na década de 1980, que promoveria enorme êxodo rural, reservando a essas trabalhadoras e trabalhadores as periferias. A área central de Campos dos Goytacazes confirma, pois, a lógica da segregação socioespacial, que sobrepõe interesses privados ao interesse comum, na medida em que o direito à propriedade passou a ser ditado por uma política liberal, tornando opaca, assim, a substância daquele direito constitucional: a função social da propriedade[4]

Trocando em miúdos: a pouca (nenhuma?) intervenção do Estado no mercado de terras subordina o planejamento urbano à especulação imobiliária, a qual nada mais faz do que reduzir terras e imóveis à sua função econômica, isto é, à sua valorização futura, concentrando-os, desse modo, nas mãos das frações da classe média que tenham inserção privilegiada no mercado de trabalho para adquiri-los segundo seu valor de uso e/ou nas mãos da elite do dinheiro que se volta aos mesmos, sobretudo, pelo seu valor de troca.

O reverso desta moeda chamada urbanização capitalista é o rebaixamento das condições de vida dos(as) trabalhadores(as) com menores rendimentos econômicos, relegando-os(as) às áreas de infraestrutura precária e distantes das melhores localizações quanto a serviços e ocupações devido à sua impossibilidade de participar do mercado formal de habitação e/ou a políticas de remoção arbitrárias e inconsequentes. Um bom exemplo é o programa municipal de habitação Morar Feliz (em Tapera, Eldorado, Aldeia, etc.) que, a fim de oferecer moradia para pessoas que viviam em "áreas de risco", empurrou-as para regiões ainda distantes do centro, desprovidas de serviços públicos mínimos, ou seja, insuficiente transporte público, ausência de creches, escolas, postos de saúde e segurança pública, o que redesenhou a favelização do município [5].

Expostos os parâmetros analíticos, poderíamos devolver os “comos” e porquês” aos seus devidos lugares: não é o custo do transporte coletivo que justificaria a gratuidade de refeições para segmentos mais pobres da população campista[6]. O divórcio entre o direito à moradia dos(as) mais pobres – que só podem usufruí-lo em determinadas áreas urbanas, a saber, as piores sob quaisquer quesitos – e o direito à cidade, enquanto acesso pleno aos serviços e oportunidades, é que os(as) impede de participar da vida social sob os mesmos patamares civilizatórios.

O mínimo social que prenunciasse uma “Cidade para os(as) Trabalhadores(as)” compreenderia aqui a universalidade de cobertura do serviço “Restaurante Popular” mediante o subsídio público de um razoável preço único das refeições. 

Afinal de contas, por que um serviço tão essencial como o pertinente à política de segurança alimentar e nutricional é interrompido e ninguém se escandaliza? Responder a essa pergunta revela o quão ocioso é estabelecer a burocratização do acesso da parcela hipossuficiente da população campista a um serviço público que, em verdade, jamais deveria ter fechado as portas.

As descontinuidades administrativas com a sucessão de governos e seus reflexos em áreas sensíveis como segurança alimentar e nutricional são de tal monta em Campos dos Goytacazes, que chegamos até a suspeitar que nossa “elite do atraso”[7] não precisa mesmo de maiores esforços para legitimar sua vida e visão de mundo.

Ora, o Estado mínimo não é um dado conjuntural na paisagem campista, mas um projeto de poder radicado na pobreza estrutural de uma classe trabalhadora cada vez mais entregue à própria sorte nesta era de regressão dos direitos civis e sociais que, tragédia anunciada, desagua em uma cidade que jamais assumiu o passivo social que a escravidão nos deixou.


[1] Cf. LEFEBVRE, Henry. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2008, p. 139.
[3] Ver o slide nº 13 do documento “Centro de Segurança Alimentar”. Disponível em: https://www.campos.rj.gov.br/newdocs/1545073876projeto-cesan.pdf. Acesso em 28/04/2019, às 18h59min.
[6] Transporte coletivo é uma competência municipal, assim reza a Constituição Federal (art. 30, V). Se a concessão deste serviço público essencial a empresas privadas não supre as reais necessidades dos(as) trabalhadores(as), não cabe à gestão municipal tomar tal regime por um dado da natureza, mas como um ato político passível de revisão com vistas ao interesse local. 
[7] A expressão é uma óbvia alusão ao provocante livro do sociólogo Jessé Souza. Cf. SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

quarta-feira, 27 de março de 2019

Agende-se: Ato em defesa do Restaurante Popular, quinta-feira, às 11h.


Por que lutamos?

Somos contrários ao projeto da Prefeitura que pretende criar critérios de acesso ao RP, aumentando o valor das refeições e exigindo comprovação de renda para a população. Não podemos aceitar que a refeição em um restaurante público custe até R$ 8,00 para uma mãe e um pai de família, aposentados e estudantes. 

Quem somos?

Somos dezenas de entidades e trabalhadores(as) da sociedade civil organizada, em Campos/RJ, que constroem o Movimento em Defesa do Restaurante Popular.

UNIDOS SOMOS FORTES!!!
PARTICIPE!!!

sexta-feira, 15 de março de 2019

Agende-se: debate sobre o Restaurante Popular.


Em meio a torrente das novas tecnologias de comunicação e de informação ocasionada na passagem do séculos XX e XXI, as transmissões radiofônicas ainda têm o seu lugar na construção da esfera pública.

Desse modo, é oportuno acompanhar uma discussão que diz respeito a interesses primários da população campista - segurança alimentar e nutricional -, sobretudo, pelas questões em aberto que o processo de reativação do "Restaurante Popular" têm apresentado aos seus munícipes. 

Já abordamos esse tema no blog (aqui) e, em nome do saudável pluralismo de ideias e opiniões, divulgamos o debate que ocorrerá na próxima terça-feira na Rádio Aurora. Dele participarão Bruna Machel, membro do Conselho Municipal de Assistência Social, e Maria Goretti, advogada, tendo a mediação do âncora Germando Santos.

Para aqueles(as) que, por ventura, tenham interesse em acompanhar a transmissão ao vivo pela Internet, segue abaixo o endereço: 


Pelo habitual rádio, basta sintonizar em FM 104.1.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

O experimento "CESAN": (neo)liberalismo posto à prova?

O experimento "CESAN": (neo)liberalismo posto à prova?

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Para não sermos engolidos de vez pelo desânimo que este momento de regressão histórica nos provoca, entendo que trabalhar conceitos é importante para avaliar qual política estará posta na mesa, por assim dizer, através do Centro de Segurança Alimentar e Nutricional (CESAN), que entrará em funcionamento na cidade de Campos dos Goytacazes-RJ. Esforço inútil? A meu ver, não, pois ideias e valores estão presentes no comportamento efetivo das pessoas em geral (e dos gestores públicos em particular) e guardam sua eficácia social justamente quando deixam de ser submetidos a um exame consciente. Conceitos então podem ser vistos como os “pedais” do conhecimento e este, por sua vez, como uma construção coletiva da qual participamos conforme visões de mundo que também são objeto de reflexão.

Para definir esse “objeto”, dialogo com a abordagem de Célia Lessa Kerstenetzky sobre políticas sociais[1], chamando atenção para as confusões sobre o que venham a ser focalização e universalização. Para tanto, exponho o quadro conceitual com o qual Kerstenetzky busca superá-las, já que elas atravancam o debate sobre a retomada do “Restaurante Popular”. Interessa discutir possíveis enquadramentos do estilo de política social que tende a prevalecer no seu substituto, o CESAN.

Justiça de mercado e Justiça redistributiva

Segundo Kerstenetzky, no debate público brasileiro há uma tendência a correlacionar automaticamente o princípio da universalização com a garantia de direitos sociais e o da focalização com uma noção "residualista" de justiça. Estaríamos aqui diante de modelos de política social que seriam, aparentemente, impassíveis de se complementarem. Porém, tal visão bipartida das políticas sociais se mostra limitada diante dos arranjos institucionais com os quais lidamos.

Tais arranjos dizem respeito à maneira como se legitimam noções de justiça na distribuição da riqueza com referência às duas instituições mais importantes do mundo contemporâneo: Estado e Mercado. Em torno delas, temos variadas linhagens do pensamento político e econômico encabeçadas por duas orientações-chave: a justiça de mercado e a justiça redistributiva.

Na primeira - justiça de mercado -, navegaríamos no velho leito do liberalismo econômico. De acordo com esse princípio de justiça social, a distribuição de vantagens econômicas seria decorrente das livres transações do mercado sem maiores questionamentos quanto à desigualdade material entre homens e mulheres. Estes(as), na qualidade de pessoas adultas que foram educadas para o exercício da livre escolha, teriam a seu dispor a “mão visível” do Estado para garantir o direito à propriedade privada e o cumprimento legal dos contratos, facultando-lhes a segurança jurídica necessária para se colocarem à prova em uma economia de mercado que, assim reza a lenda, premiariam os mais “responsáveis” em suas iniciativas pessoais. 

Para os crentes de ontem e de hoje na ideia de mercados autorregulados, sendo os indivíduos dotados de autonomia civil, a persistência das desigualdades de renda poderia ser vista até mesmo como uma virtualidade do capitalismo, na medida em que encontraríamos uma espécie de “auto-cura” para um modo de produção sempre propenso a crises: remunerações desiguais serviriam de estímulo ao trabalho e à poupança e, por consequência, elevariam a eficiência econômica; alcançando-se maior eficiência econômica, obteríamos o crescimento econômico, implicando assim em maior taxa de emprego e renda e, potencialmente, em mais benefícios para os menos favorecidos. Soa familiar com a estorinha do peixe e da vara de pescar, caro(a) leitor(a)?  

Ironicamente, apostar que a civilização burguesa propicie uma racionalização dos modos de vida capaz de conduzir mesmo quem esteja na pior situação de classe aos melhores resultados econômicos é, no mínimo, frustrante diante das não poucas ineficiências das operações do mercado, o que, lembra Kerstenetzky, leva-nos a admitir que o “progresso material convive com (e talvez mesmo parasite) a incerteza”[2] e que “não há como assegurar que esforços serão recompensados e negligências punidas”[3].

Se estamos submetidos a um sistema econômico cuja vitalidade advém da mudança incessante (“tudo que é sólido desmancha no ar”, já dizia o velho Marx), o mal-estar social daqueles(as) que nunca tiveram escolha alguma será mais cedo ou mais tarde objeto de responsabilidade pública. Na justiça de mercado, essa responsabilização assume a forma de uma rede subsidiária de proteção (renda mínima, seguro-desemprego entre outros) que dê conta da “pobreza imerecida”. Nada mais nos restaria senão a perspectiva de focalização como "resíduo".

Contudo, a política social pode ser entendida como algo além da provisão de um seguro contra riscos sociais imprevisíveis. Para Kerstenetzky, podemos seguir uma orientação alternativa – a justiça redistributiva – que nos permita pensar a focalização tanto “como condicionalidade” quanto “ação reparatória”. 

No âmbito da justiça redistributiva, a focalização “como condicionalidade” se traduz em um problema de tecnologia social: encontrar o foco correto para a solução de um problema específico, promovendo assim eficiência à ação governamental. Apesar da aparente simplicidade dessa perspectiva, Kerstenetzky adverte que aplicá-la requer aprimorar o diagnóstico local sobre o estado de privação que se quer superar. Se, por um lado, priorizar a eficiência do gasto social “ajustando” o foco favorece com o tempo a provisão de recursos para outras demandas sociais urgentes, por outro, em certas circunstâncias, a melhor maneira de realizar o interesse público é subverter o sentido mesmo da focalização:

Às vezes, a busca do foco correto pode resultar no formato contra-intuitivo de incondicionalidade, como quando se atinge melhor os mais necessitados estendendo-se um benefício a todos dentro de um determinado território, supostamente razoavelmente homogêneo, e não apenas aos mais necessitados (em que se poupam, por exemplo, os custos de monitoramento). Neste caso específico, a melhor forma de encontrar o foco é “universalizar”[4].

Já na focalização como “ação reparatória”, teríamos uma torção de sentido quanto à perspectiva da focalização como “resíduo” que discutimos no âmbito da justiça de mercado. Homens e mulheres sem trabalho e renda não seriam aqui produto de eventuais ineficiências de uma economia de mercado, mas a confirmação de que nela uma desigual oportunidade de realização nas gerações passadas é transmitida à geração atual, tornando direitos universais formalmente iguais uma ilusão facilmente desmentida pelos fatos. Tornar então efetiva a igualdade de oportunidades requereria um conjunto de ações que, destinado a grupos com demandas específicas, realizasse uma contínua equalização da riqueza, aproximando dessa forma o “ideal de direitos universais a algum nível decente de realização”[5].  

Em sociedades marcadas por desigualdades abissais como a brasileira, é pouco provável que políticas universais tenham êxito dissociadas da focalização na política social, ratifica Kerstenetzky. Se tais políticas redistributivas podem ter caráter compensatório ou estrutural, não há resposta pronta. O que fazer então? Testar as noções de justiça de mercado e de justiça redistributiva em cada cenário concreto. Desse modo, tais categorias de análise auxiliam na tentativa de compreender o estilo de política social que está se desenhando para o “Restaurante Popular” em Campos dos Goytacazes-RJ.

Uma hipótese: considerando que os critérios de renda para a gratuidade das refeições que estão delimitados, até o momento, pelo crivo do CadÚnico e, por outro, que os preços com ou sem subsídio podem vir a superar (e muito) o preço da refeição cobrado até 2017 no então Restaurante Popular, prevalece uma política calcada na justiça de mercado. Diante da "pobreza imerecida" - resultado das falhas do mercado em entregar aquilo que promete aos crédulos no próprio esforço ou "mérito" ou àqueles que, desalentados, já não acreditam em mais nada porque simplesmente "não há vagas" -, atrela-se um restaurante popular a uma rede (incompleta) de proteção sem maiores preocupações quanto ao condicionantes locais de uma pobreza que é estrutural.

Se tal hipótese se confirmar no decorrer do serviço prestado no CESAN, é razoável que se discuta a possibilidade de conjugar tal serviço com outras modalidades de focalização mais afeitas à justiça redistributiva. Ora, a julgar pela regressão dos indicadores sociais com a agenda ultraliberal à qual foi submetida o país com Michel Temer e agora Jair Bolsonaro [6] - Reforma Trabalhista, Emenda Constituição nº 95 -, o tamanho do "resíduo" deixado para trás por um mercado deixado sem freios à sua própria lógica é muito maior do que a Prefeitura supõe e, desse modo, pensar a focalização como "condicionalidade" ampliaria o escopo dessa política de segurança alimentar e nutricional para segmentos da população cujo direito ao trabalho e à renda lhes é negado pela crônica falta de transporte coletivo, pela pouca integração da área urbana de Campos dos Goytacazes com a sua imensa área rural, entre outros gargalos já conhecidos.

Segurança alimentar e nutricional é uma ação intersetorial e, como tal, não se deixa aprisionar por uma visão minimalista das políticas sociais; logo, há muito o que investigar sobre a questão social em Campos dos Goytacazes-RJ a partir de um diagnóstico local que, parafraseando Albert Hirschman, evite confirmar que "políticas para pobres sejam sempre políticas pobres". Cautela necessária ante uma cultura política que ainda não produziu em nossa cidade uma via programática que supere a insegurança econômica das camadas baixas da população como moeda de troca sempre à mão na sucessão de governos.

[1] KERSTENETZKY, Celia Lessa. Políticas Sociais: focalização ou universalização?. Rev. Econ. Polit.,  São Paulo, v. 26, n. 4, p. 564-574,  dez.  2006. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31572006000400006&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  03  jan.  2019.  http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31572006000400006.
[2] Op. cit., idem., p.565.
[3] Idem.
[4] Op. cit., idem., p.570.
[5] Op. cit., idem., p.571.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Restaurante Popular: qual política está posta na mesa? (parte 1)



Restaurante Popular: qual política está posta na mesa? (parte 1)

Democracia serve para todos ou não serve para nada. (Betinho)

Por Bruna Machel, Juliana Tavares
e Paulo Sérgio Ribeiro

É difícil precisar como e quando nasce o projeto dos Restaurantes Populares (RPs) no Brasil. Alguns dirão que sua origem data de 1940 pela iniciativa de Getúlio Vargas, que instituiu o chamado Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS)[1], o modelo de restaurantes públicos que ofereciam alimentação às populações pobres, posteriormente destruído pelo golpe civil-militar, precisamente em 1968[2]; outros dirão que os RPs foram iniciativa inédita do Governo do Estado do Rio de Janeiro, em 2000, quando Garotinho implementou o Restaurante Cidadão na Central do Brasil, ofertando alimentos a R$ 1,00 com subsídio estatal[3]. Porém, é absolutamente indiscutível que os RPs foram sistematicamente implementados, enquanto estratégia de promoção da segurança alimentar em grande escala, somente em 2003 como parte integrante do programa Fome Zero do Governo Federal sob comando do então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Tal programa tinha por objetivo superar o problema da fome no Brasil através de uma série de ações articuladas que envolviam desde a participação de setores sociais na formulação destas políticas (tendo como principal consequência positiva a então reorganização do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - CONSEA), como também o fomento à criação de RPs nas cidades com mais de 100 mil habitantes em todo território nacional.

Os princípios que regem o restaurante popular e a importância dessa política pública

Segundo o Manual dos Restaurantes Populares de 2004 do Governo Federal[4], Restaurantes Populares consistem em: 

[...] estabelecimentos administrados pelo poder público que se caracterizam pela comercialização de refeições prontas, nutricionalmente balanceadas (...) a preços acessíveis, servidas em locais apropriados e confortáveis, de forma a garantir a dignidade ao ato de se alimentar. São destinados a oferecer à população que se alimenta fora de casa, prioritariamente aos extratos sociais mais vulneráveis, refeições variadas, mantendo o equilíbrio entre os nutrientes...

Nota-se no manual dos RPs a preocupação em caracterizar esses estabelecimentos como pontos de apoio para pessoas extremamente pobres que vivem em situação de vulnerabilidade social, mas também voltados para as classes trabalhadoras nos centros urbanos. Tais segmentos, submetidos à precarização das condições de vida sob o sistema capitalista, sem poder se alimentar de forma saudável no cotidiano das médias e grandes cidades, acabam lançando mão de alimentações inapropriadas do ponto de vista nutricional, sofrendo, por consequência, muitas vezes com a subnutrição ou a obesidade. E como bem diz a resolução do CONSEA de 2009[5]

O direito humano a alimentação adequada e saudável e a soberania e segurança alimentar e nutricional não se limita a aqueles(as) que passam fome ou que são pobres ou socialmente excluídos(as), mas diz respeito a qualquer cidadão ou cidadã que não se alimenta adequadamente, seja porque tem renda insuficiente ou não tem acesso aos recursos produtivos (terra e outros), seja por ser portador(a) de necessidades alimentares especiais que não são respeitadas, mas, principalmente, porque a disponibilidade e o acesso aos alimentos condicionam de forma significativa suas práticas alimentares.

A partir desses debates e resoluções nacionais, os RPs foram implementados de formas distintas pelos Estados, porém mantendo como forma predominante o princípio universalizante orientado pelo CONSEA. As filas de acesso ao restaurante se tornaram o crivo natural entre aqueles que precisam e aqueles que "não precisam" de alimento a baixo custo, sem que houvesse a necessidade de qualquer medida restritiva por parte do Poder Público. Tal política melhorou a vida de milhões de aposentados, sem-tetos, estudantes pobres e trabalhadores precarizados do Brasil, tornando os centros urbanos mais humanizados. 

No entanto, com o agravamento da crise, especialmente a partir de 2014, a realidade dos RPs foi modificada radicalmente. Alguns governos decretaram então o fechamento destes equipamentos ou a criação de critérios de acesso que visavam a reduzir o número de usuários, vide a cidade do Rio de Janeiro[6]. Como diz o ditado popular: "A corda sempre arrebenta do lado mais fraco"... E o lado mais fraco na luta de classes, por óbvio, tende a ser o lado do trabalhador, da mãe de família, do jovem desempregado.

É didático recordar, por exemplo, que mesmo em meio à crise nacional, o então Governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, não abriu mão de dar isenção fiscal para empresas "amigas", sem que elas aumentassem sua contrapartida do ponto de vista do interesse público[7]; tão pouco deixou de realizar licitações fraudulentas, que comprometeram drasticamente a arrecadação estadual, como aponta recentemente a operação Boca de Lobo[8]. Tais práticas antirrepublicanas, corriqueiras em todo o Brasil, garantem o beneficiamento econômico de meia dúzia de empresas privadas e acabam por gerar prejuízos incalculáveis para a manutenção dos serviços públicos. É nesse contexto que programas como o Restaurante Popular são interrompidos ou descaracterizados. 

A situação em Campos dos Goytacazes

O debate sobre a reativação do Restaurante Popular (RP) em Campos dos Goytacazes-RJ, que será rebatizado de Centro de Segurança Alimentar e Nutricional (CESAN) pela atual gestão municipal, está longe de chegar ao consenso. Se há questões pendentes em sua formulação, deparamos agora com um fator agravante: o fim do CONSEA, uma das primeiras canetadas do presidente recém-empossado Jair Bolsonaro. Esse conselho reunia o melhor da inteligência nacional sobre a temática, tendo sido um referencial para diferentes programas de governo. 

Decretado o fim do CONSEA, aumenta-se a margem de experimentação dos governos municipais no terreno da segurança alimentar e nutricional e, não menos, a necessidade de fortalecer a participação popular nessa política em um momento de tantas incertezas quanto à cooperação entre União, estados e municípios para assegurar o abastecimento alimentar, o combate às causas da pobreza e dos fatores de marginalização, entre outras competências comuns dos entes da federação.

Segundo a apresentação da Prefeitura durante plenária do Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), em 09 de Novembro de 2018, para se alimentar no CESAN, as pessoas passarão por uma triagem, onde serão divididas em 3 categorias de renda, que definirá quem pode ou não contar com o subsídio público.

Terão direito à gratuidade pessoas cuja renda familiar seja de até R$ 178,00 per capita, comprovada pelo Cadastro Único do Governo Federal (CadÚnico). À primeira vista, parece uma iniciativa cuja justificativa é auto-evidente. No entanto, esbarramos no problema da dimensão de seu impacto real na vida destas pessoas, já que elas, em sua maioria, vivem em bairros periféricos e têm um acesso dificultado ao centro da cidade em face das não poucas insuficiências que temos em mobilidade urbana. Não seria exagero dizer que, com o fim das passagens a preços populares, o impacto da gratuidade do RP no cotidiano das populações extremamente pobres será, provavelmente, menor do que se desejaria.

Já famílias com renda mensal de até três salários mínimos per capita receberão subsídio de 50% do valor licitado. Tal valor ainda não foi definido. Porém, é plausível estimar, com base no contrato anterior, que vigorou até o fechamento do restaurante em 2017, que o preço final para o usuário nessa faixa de renda deva variar em torno de R$ 4,00. Estamos diante de uma possibilidade que, caso se confirme, será um tanto contraditória: pessoas em variadas situações de privação e de vulnerabilidade terão de pagar 300% mais caro por uma alimentação que custava, até 2017, R$ 1,00. Tudo isto em um momento de desvalorização do salário mínimo, altíssimos índices de desemprego e desmonte de programas sociais como o Cheque Cidadão.

Também é preocupante o fato de a Prefeitura de Campos anunciar o fim do subsídio para todos aqueles que, por alguma razão, não estejam inscritos no CadÚnico do Governo Federal ou que, simplesmente, não se enquadrem nos critérios de renda delimitados. Para esse trabalhador e trabalhadora, restará pagar o valor integral do contrato entre a Prefeitura e a empresa privada concessionária do serviço público? Valor este onde se incluem o custo real e o lucro do empresário, pagando, desse modo, o mesmo que se pagaria em qualquer estabelecimento comercial no Centro de Campos dos Goytacazes?

Após a breve abordagem feita na seção inicial sobre os princípios que regem a política dos RPs, é possível afirmar que sua função social vai muito além de uma noção minimalista de “focalização” na assistência social, pois envolve uma visão democrática de cidade voltada para as classes populares, não se caracterizando, portanto, pela seletividade, mas pelo conceito ampliado de Cidade para os Trabalhadores. Na segunda parte deste texto, discutiremos com mais detalhes o que venha a ser focalização nas políticas sociais e algumas polêmicas que julgamos desnecessárias em torno da mesma quando contraposta ao princípio da universalização.

Longe estamos de viver em uma cidade cujos trabalhadores compartilhem os mesmos lugares de cidadania. Dividimo-nos em classes sociais na cidade do capital, que nada mais é do que a cidade da segregação, da especulação imobiliária, do exército de reserva de trabalhadores desempregados ou subempregados, da reprodução da miséria em “escala industrial”. Ações que tornam a cidade mais conectada com a demanda dos trabalhadores, no sentido de efetivação de direitos, entram em confronto com o interesse daquela entidade que paira fantasmagoricamente acima dos governos, o dito mercado.

Sigamos o exemplo de cidades como Teresina[9] (que curiosamente possui um PIB per capita menor do que Campos dos Goytacazes), ou o exemplo das mais de 30 cidades do Rio Grande do Norte[10], ou mesmo de Belo Horizonte[11], que mantém os RPs em pleno funcionamento. Ademais, não negamos o fato de que existe uma população em situação de rua crescente, localizada no área central da cidade. Essas pessoas, que devem ser assistidas pelo Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), contam hoje com a solidariedade de grupos religiosos que distribuem alimentos em porta de igrejas e nas praças públicas, além de projetos sociais como o Café Solidário.

De fato, a reabertura do restaurante popular deverá amenizar um pouco a dor destas pessoas e isso é inegavelmente importante do ponto de vista da dignidade da pessoa humana. Sem subestimarmos essa virtualidade, o que propomos debater aqui é o estilo de política social a ser implantado e, por conseguinte, a clareza e a efetividade dos critérios de focalização que serão adotados em uma política cuja razão de ser é conjugar segurança alimentar e nutricional com outras demandas não menos essenciais para redistribuir a riqueza produzida socialmente.


[2] Ibid. ibidem.