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terça-feira, 7 de setembro de 2021

Religião, política e a dimensão espiritual da crise brasileira

 

Fonte: Neipes.

Religião, política e a dimensão espiritual da crise brasileira*

* Publicado originalmente em Folha 1.

Roberto Torres 

Muitos gostariam de abolir a presença das religiões na esfera pública e na política. São os que defendem que o Brasil busque construir um Estado laico inspirado na França. Esta tentativa foi feita com a constituição de 1891 e não teve êxito. Outros se dispõem a aceitar a religião pública desde que ela se oriente pelas ideologias políticas laicas como o liberalismo ou o socialismo, fornecendo apenas a efervescência coletiva que estas ideologias já não conseguem produzir por contra própria. As duas posições rechaçam a presença da fé e da busca da transcendência como algo que tenha contribuição própria para a construção do Estado e na nação. O sentido propriamente religioso do mundo, que podemos resumir com as noções de fé e transcendência, não teria nada a acrescentar ao sentido político da reconstrução nacional.

Discordo destas duas posições. Da primeira em razão de seu provincianismo caricato. Basta dizer que a França é exceção e não regra entre os modelos ocidentais de separação entre religião e Estado. A grande nação ocidental do século XX, os Estados Unidos, nunca confundiu separação entre Igreja e Estado com confinamento da religião na esfera privada. E nisso, como em outros aspectos, o Brasil (graças a Deus!) é muito mais parecido com os Estados Unidos do que com a França. Da segunda posição eu discordo pela falta de acuidade sociológica sobre o processo de construção nacional: todo projeto nacional de longo prazo precisa de um sentido de transcendência capaz de conferir no presente valor ao futuro desconhecido. O futuro precisa ser percebido como um horizonte de realização daquilo que não podemos ver inteiramente no presente, mas cujas primeiras manifestações já se mostrem como futuro adjacente, como sinal no presente de que a fé constrói o futuro. E em muitos casos, especialmente naqueles de colapso das ideologias políticas laicas, este sentido de transcendência do presente e de seus desesperos vem diretamente das religiões.

A contribuição própria que a religião pode trazer para a política é sua capacidade de construir no presente a fé no futuro. A disponibilidade desta fé é um recurso de valor insubstituível para a política. Não se trata de acreditar em um futuro inteiramente distante e inteiramente desconhecido, mas sim de criar um futuro adjacente e em alguma medida visível já no presente. O desafio de amplos segmentos das classes populares, que buscam manter a fé no futuro (“não deixar a peteca cair”) organizando em torno da religião estratégias concretas de reconstrução da vida familiar, econômica e comunitária, é semelhante ao desafio nacional: não se trata apenas de planejar o futuro da nação, mas de reconstruir e alimentar a própria crença de que a nação tem algum futuro. É preconceito iluminista não esclarecido supor que podemos dispensar a fé religiosa nesta grande batalha espiritual que o país precisa travar: não uma batalha contra algum inimigo inventado (“comunistas”, “chineses”, STF etc.) como faz Bolsonaro em sua “guerra cultural”, mas sim contra a desesperança, a dimensão propriamente espiritual da crise brasileira. Ideologias políticas e projetos nacionais dependem da crença compartilhada no futuro. A religião popular têm conseguido construir esta crença em diferentes esferas sociais, especialmente na vida familiar. Pode também contribuir para que isto seja feito na política. Não se trata de ignorar os riscos envolvidos na relação entre religião e política, mas sim de explorar as possibilidades desta relação. Pelos menos quatro possibilidades se colocam de início: o boicote recíproco entre religião e política, a colonização de uma pela outra, o fortalecimento recíproco e a indiferença. Nas últimas décadas, a colonização da religião pela política tem predominado no Brasil. No caso específico dos evangélicos, desde sua entrada efetiva na política pós Constituição de 1988, os presidentes buscaram se aproximar dos religiosos pela via da cooptação política a partir de acordos com figurões que dizem representar este segmento do público. Com Bolsonaro é um pouco diferente: ao mesmo tempo em que radicaliza a manipulação da religião pela política feita por seus antecessores, encena com a “guerra cultural” o controle religioso da política e da república como um todo. Politicamente, essa estratégia tem a vantagem de criar uma sensação de inclusão autêntica dos religiosos na política nacional, produzindo um contraste com quem pedia o voto mas não gostava de dividir o poder com os religiosos. Por isso, Bolsonaro desempenha com certo sucesso o papel de primeiro presidente evangélico do país (Arenari, 2020). Mas este sucesso só pode durar se Bolsonaro conseguir destruir o sentido de esperança e fé no futuro cultivado pelos evangélicos e cristãos em geral: um governo definido pela destruição precisa destruir também o sentido de futuro, pois a esperança no futuro é sempre construtiva. Ou então criar um sentido destrutivo de futuro, como vemos em seus apelos apocalípticos destinados ao rápido descrédito. Precisa destruir a religião para continuar usando a religião e fingindo que ela têm importância em sua obra de destruição nacional.

A obra de reconstrução nacional de que precisamos não requer substituir esta colonização destrutiva da religião pela política nem pela indiferença entre ambas, como querem os adeptos da laicidade francesa, nem por uma politização com outra cor ideológica, que trata a religião apenas como fonte de legitimação e energia para ideologias políticas seculares. Para enfrentar a dimensão espiritual da crise brasileira, precisamos construir uma relação de fortalecimento recíproco entre política e religião, combinando separação de esferas com influência construtiva entre elas. Não se trata de colocar a política no lugar da religião, nem a religião no lugar da política, mas sim de construir uma nova “religião civil” brasileira: uma nova cultura política inspirada não só em valores religiosos como superação e solidariedade, mas antes de tudo na fé no transcendente como traço próprio do sentido religioso do mundo que ultrapassa fronteiras ideológicas e sociais.

Na prática, isso significa adotar um caminho bem distinto daquele seguido por Bolsonaro e seus antecessores. Em vez de mobilizar politicamente a religião em torno de “guerras culturais” contra inimigos inventados, criando uma cultura política de destruição e fragmentação nacional (Bolsonaro), ou cooptar os conhecidos figurões com poder e audiência (antecessores), buscar aproximação com as obras sociais das igrejas que reconstroem famílias e vidas em nossas periferias urbanas. Em vez de buscar conchavos com esses figurões que dizem decidir pelo povo, se aproximar de lideranças novas, de sacerdotes que buscam o poder não como um fim em si mesmo, mas como meio indispensável para mudar e melhorar a realidade. Em vez de andar com quem promete trazer apenas o voto dos fiéis, unir forças com aquelas organizações e lideranças interessadas em amplificar, através da cooperação com o Estado, o trabalho social que já realizam. Missões que buscam reconstruir famílias e vidas ameaçadas pela pobreza e pela violência, como vemos no caso da missão Cristolândia de orientação batista, também reconstroem e alimentam diariamente o sentido de fé no futuro, em uma vida melhor para quem, como todos no inferno de Dante, é invocado pela realidade a perder todas as esperanças. Esta dimensão espiritual da crise brasileira – o desespero, a falta de fé no futuro – não será superada sem que a política consiga estabelecer relação construtiva com o único sistema social que tem conseguido fazer a grande maioria do povo acreditar no futuro e na vida: a religião. Mas para isso, a política não deve buscar a cooptação dos religiosos e a manipulação da fé, mas sim a cooperação em torno do trabalho social com religiosos que desejam influenciar as políticas públicas, mas não fundir organização religiosa com o poder político. É este tipo de relação que permite existir religião pública e ao mesmo tempo separação entre religião e política. Não basta exigir a separação entre religião e política. É preciso entender que esta separação só ocorre dentro de relações específicas entre estas duas esferas da sociedade e da vida.

Referências

ARENARI, Brand. “Bolsonaro, o primeiro presidente “evangélico” do Brasil”. In: TEXEIRA, Carlos Sávio & MONTEIRO, Geraldo Tadeu (orgs.) Bolsonarismo: teoria e prática.1 ed.Rio de Janeiro: Gramma editora, 2020, v.1, p. 281-308. 

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Cristologia pascoal bolsonarista

Cristologia pascoal bolsonarista*


Fábio Py


Cristo já ressuscitou, Aleluia

Sobre a morte triunfou, Aleluia

Tudo consumado está... Aleluia

A salvação aos homens dá... Aleluia

Hino 41 - HCC


Todo estado faz-se sobre a teologia do poder (...)

Agora, no estado autoritário a teologia é o poder

Giorgio Aganbem

* Publicado originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos (aqui).

Ao perceber a perda de apoio popular por relativizar a quarentena pela pandemia de coronavírus, Jair Messias Bolsonaro e os intelectuais de sua cúpula prepararam uma contraofensiva para reajustar sua base social, aumentando o tom de seu discurso cristão. Em resposta ao contexto mundial e brasileiro de pandemia de Covid-19, acirrou ainda mais a associação de seu governo ao cristianismo, evocando uma espécie de “guerra dos deuses”, tal como definida por Michel Lowy. Nessa guerra pelo Deus cristão, Bolsonaro alimenta a base do governo autoritário ao reforçar sua gestão do ideário maniqueísta. Ao assumir-se como presidente dos cristãos, simplifica os conflitos políticos, que passam a transubstanciar-se em embates entre bem versus mal. Em tal arranjo, a guerra dos Deuses se traveste na luta entre aqueles que representam o mal, em uma alegoria caricatural dos “comunistas” ou dos “petistas”, e entre aqueles também alegoricamente expressos como cidadãos de bem

Nessa aposta pela retomada do apoio popular, os intelectuais do governo apostaram seus recursos que já foram usados em julho de 2019, quando haviam   relacionado a imagem de Bolsonaro com a figura de Jesus Cristo. Na semana de Páscoa deste ano, tal recurso foi explorando sob o pretexto da celebração da morte e ressurreição de Cristo. Acionando a simbologia pascal, Bolsonaro evocou a si a lembrança do sofrimento, a (quase) morte e vitória eleitoral. Dessa forma, a própria alegoria da Páscoa fora utilizada para uma nova construção da imagem de Bolsonaro, a do servo sofredor que venceu a morte para defesa da nação. Com isso, entende-se a força do apelo à religião como possibilidade estratégica de comunicação para a manutenção do caráter autoritário de seu governo. Essa operação de utilização da religião para legitimar e ampliar o autoritarismo é o que chamo de “cristofascismo brasileiro”. E esse cristofascismo se estabelece porque o bolsonarismo fabrica intencionalmente uma “guerra dos Deuses” a partir de uma teologia do poder sustentada na memória do cristo europeu colonizador: sacrificialista e expiatório das minorias sociais.

Assim, em plena Páscoa, o governo cristofascista de Bolsonaro desenvolveu uma ofensiva, redesenhando uma cristologia autoritária firmada sobre a figura de mártir e do messias, comparando-o à memória do Cristo pascoal. Uma ação orquestrada já no início de abril, quando conclamou um jejum nacional para o Domingo de Ramos. No domingo seguinte, dia 12, Páscoa, a ressurreição de Cristo e de sua vitória sobre a morte foram comparadas pelo presidente à facada que sofreu no processo eleitoral de 2018. Assim, para deixar claro essa construção do bolsonarismo sacrificial e messiânico, separei sete atos orquestrados, que culminaram na construção do mito “pascoal” bolsonarista.

1.   O cristofascismo de Bolsonaro e o apelo mitológico

Contudo, antes desses atos construídos pelos intelectuais da cúpula governamental, destaco alguns elementos mais conceituais. A construção de sua “cristologia governamental” é pensada ora identificando-o com o messias político religioso, ora com o servo sofredor sacrificado pela liderança do Brasil. Nesse sentido, seu cristofascismo promove-se por meio de uma teologia política autoritária pautada hoje no clima apocalíptico do coronavírus, baseada no “ódio à pluralidade democrática”. Esse ódio é salpicado por técnicas governamentais de promoção da discriminação, do ódio aos setores “heterodoxos”. Diante da expansão do coronavírus no Brasil, foi somado sua característica antidemocrática ao discurso economicista como justificativa para a explícita permissão da “política da morte” (“necropolitica” – Mbembe, 2014), cujos alvos são os pobres, os mais velhos, os diabéticos e os hipertensos.

Lembro que o termo “cristofascismo brasileiro” se baseia na reflexão da teóloga alemã Dorothee Sölle (1970), que criou a expressão diante do nazismo alemão. Ao cunhar o termo, Sölle (1970) se preocupou em analisar as relações de integrantes do partido nazi com as igrejas cristãs no desenvolvimento do estado de exceção alemão, quando o governo nazista se utilizou das relações e das terminologias cristãs para sua composição, assim como se reconhece hoje no bolsonarimo.

Voltando ao termo cristofascismo, ele se liga ao que Walter Benjamin (1940) descreve como fascismo. Para Benjamim, a barbárie fascista não representa um estágio de ‘regressão civilizacional’, mas está contida nas próprias condições de reprodução da civilização liberal-burguesa. Para o autor, a ação fascista se beneficia das concepções conservadoras sobre a moral, a família e o progresso, transformando o todo nacional em um “estado de exceção efetivo”. Assim, o dispositivo autoritário do bolsonarismo se projeta, a partir da associação ao religioso, para defender uma concepção simplificada de família para a eliminação de seus adversários, bem como os indesejáveis, neste caso, aqueles que não se adéquam ao projeto moral de nação estabelecido.

A artimanha construída pela cúpula do presidente cristofascista o desenha numa cristologia profana, apontando-o como messias, servo sofredor, ungido e eleito da nação. Faz isso para reagrupar as forças a fim de manter, a duras chicoteadas, a implementação de medidas ultraliberais que hoje entregam à morte os mais vulneráveis. Portanto, ao reeditarem características cristológicas sobre a trajetória de Bolsonaro, visam sensibilizar setores religiosos para apoiar as atitudes de irresponsáveis da relativização da quarentena do Covid-19. Para compreender a construção do “mito” Pascal de Bolsonaro, analiso algumas cenas religiosas que contribuíram para a projeção de tal alegoria

Cristologia política de Bolsonaro: seus sete atos pascoais

Primeiro ato

Foi tecido um vídeo para convocar a população para o #JejumpeloBrasil, marcado para 05 de abril de 2020. Um vídeo de convocatória governamental cristã, que é iniciado com o texto de 2 Crônicas 20, 3 dizendo “Jeosafá decidiu consultar o Senhor e proclamou um jejum em todo Reino de Judá”. Após o fragmento, aparece Bolsonaro dizendo “muito obrigado a todos vocês, e aqueles que tem fé e acreditam, domingo é o dia de jejum”. Com a produção, buscava-se que os cristãos, no Domingo de Ramos, fizessem um Dia do Jejum, literalmente para que Deus livrasse o Brasil da praga do Covid-19. Algo, que se sustenta na tradição católica de guardar o domingo antes da Páscoa, como sendo o dia da entrada de Jesus em Jerusalém, nas costas do jumento. No vídeo, Bolsonaro convoca a população cristã para o jejum e, depois, aparece outro texto bíblico como resposta dizendo: “Não temas, nem vos assusteis por causa desta grande multidão; pois a peleja não é vossa, mas de Deus” (v.15). Na sequência de imagens, indica-se que é o rei (o governante) que tem que se colocar junto a Deus, tal como Jeosafá. Isso porque a peleja não seria dos homens e mulheres, mas de Deus. O vídeo é longo, e as lideranças evangélicas que apoiam Bolsonaro (Malafaia, os Hernandes, Valdomiro Santiago, Edir Macedo,...) chegam a afirmar que o presidente teria sido ungido para assumir a nação.

Segundo ato

Na quarta-feira, dia 08 de abril, na saída do Palácio da Alvorada, recebeu uma expedição de católicos com a imagem de Nossa Senhora de Fatima. Os romeiros disseram para Bolsonaro literalmente: - “Trouxemos a imagem de Nossa Senhora de Fátima, porque ela vai livrar o Brasil do comunismo. Porque esses erros são coordenados por nos católicos apostólicos romanos”. Em um diálogo improvável, segue a conversa de um dos membros da carreata: -“Presidente, pedimos também que Nossa Senhora derrame suas bênçãos sobre o senhor. Tem muita carga sobre você nesse momento. O senhor representa essa luta, é a luta contra o comunismo no nosso país, por isso nos oramos pelo senhor e queremos rezar uma ave-maria pedindo as bênçãos dela, que dê força para o senhor. Que de energia para carregar o Brasil nos ombros do senhor, conte conosco com nossas orações, a vitória é nossa!”. Na afirmação, diz que a batalha espiritual que passa o Brasil, pelo contexto de Covid-19, reverbera para lutas que se enfrentam juntos aos inimigos da nação, isto é, “os comunistas”. Na última frase do diálogo, os católicos assumem o presidente como pessoa separada por Deus: -“O Senhor foi levantado por Deus, foi ungido por Deus, para estar nesse momento levando nosso país”.

Terceiro ato

Nas quarta-feira, um pouco mais tarde, fez um pronunciamento à nação sobre as atitudes que está tomando diante da pandemia. No discurso, afirmou que, como presidente, o país vive momento “impar na história, e ser presidente é olhar o todo e não apenas as partes” – tratando para a questão do desemprego e da reclusão do Covid-19. No fim do discurso, volta ao tom cristão: “Quero entregar um país muito melhor que recebeu do sucessor. Sigamos João 8,32: E conheceres a verdade, e a verdade vos libertará”. O versículo se tornou jargão desde as eleições de 2018, quando encheu de cores bíblicas o processo político. Nas últimas palavras do vídeo, diz “Desejo a todos uma Sexta-feira Santa de reflexão e um feliz Domingo de Pascoa! Deus abençoe o nosso Brasil!”. No discurso, mostra aos religiosos que conhece a temporalidade religiosa da semana de Páscoa.

Quarto ato

Na Sexta-Feira Santa, dia 09, que simbolicamente é o dia da morte de Cristo, postou, em seu perfil nas redes sociais, uma arte com o texto bíblico e a imagem de Jesus crucificado (figura 1). Uma imagem forte para os cristãos, casando-se com fragmento de 1Pedro 2,24: “Ele mesmo levou em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro, a fim de que morremos para os pecados e vivêssemos para a justiça, por suas feridas vocês foram curados”. Mostra que conhece outros versículos bíblicos sobre o mistério da ressurreição. Separa um versículo bíblico importante no qual resume a salvação a partir de Cristo. Utiliza um versículo bíblico dado ao apostolo Paulo, base de muitas igrejas. 

Figura 1

Quinto ato

No sábado, dia 11, à noite, postou um vídeo indicando sobre a facada que sofreu. Na sua fala do vídeo, informa que o atentado foi “o momento mais difícil da minha vida (pausa), eu só pedia que Deus não deixasse órfã a minha filha de sete anos”. Toma sobre si a ideia do servo sofredor, que luta para viver e para defender a nação. Os versos da música evangélica de pano de fundo do vídeo dizem: “história da minha vida, eu lutei, eu sofri, teve vezes que acertei, outras errei, a vida é uma jornada de amor e sofrimento, e o Senhor me acompanhou a todo tempo. Ele estava lá quando o mundo desabou em mim. Muitos diziam que era o fim, eu lutei com minha fé. Pelo vale da sombra da morte, o Senhor me fez mais forte e essa é a história de vida. Eu lutei, eu sofri”. A canção embala a trajetória de Bolsonaro mostrada desde o momento da facada, a recuperação no hospital, suas orações e sua eleição. Chegando ao fim, mostra-o como exemplo de cristão na igreja, orando e ajoelhado (figura 2). Nessa sua trajetória, como servo sofredor e messias político, recebe a vitória, o milagre da faixa presidencial. No vídeo, diz que isso só é possível porque “Deus preservou a vida dele; logo, seria o enviado de Deus para o Brasil, firmado sobre o texto: “Eu me deitei e dormi. Acordei porque o Senhor me sustentou” (Salmo 3,5). Portanto, nesse quinto ato, além de apresentar-se como “bom cristão”, aquele que vai à igreja e defende a família cristã tradicional, começa a se desenhar como liderança enviada por Deus para salvar a nação, no contexto de Covid-19. Alguém que Jesus está ao lado, cuidando e fazendo milagres e maravilhas, tal como mostra a figura (3) dele sendo operado com Jesus ao seu lado.
                                                           


 Figura 2


Figura 3

Sexto ato

O sexto ano foi uma outra postagem de Bolsonaro na rede social durante o domingo de Páscoa de manhã (figura  4). Usa outro fragmento bíblico a fim de demonstrar publicamente a fé a partir de texto clássico do Evangelho de João “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu filho unigênito, para que todo que aquele que nele crê não perece, mas tenha vida eterna” (João 3,16). Na sequência, afirma que “Ele ressuscitou”, mostrando que tem intimidade com as Escrituras Sagradas. Isso é importante de ser descrito. Essa operação é muito bem desenhada pelo bolsonarismo, quando, além de indicar que conhece um leque de textos bíblicos, conhece também sobre a teologia da salvação cristã. Logo, acrescenta outro elemento no desenho de servo fiel a Deus, tentando satisfazer a parcela de cristãos que duvidam de sua adesão ao cristianismo. 

Figura 4

Sétimo ato

A segunda ação do domingo de Páscoa ocorreu no encontro promovido na Internet com as lideranças religiosas. No fim do vídeo, Bolsonaro diz diretamente sobre a facada que sofreu no fim de 2018. Compara o atentado à trajetória da ressureição de Cristo.  Em suas palavras: “Confesso que hoje para mim foi um dia especial, já que hoje se fala de ressurreição. Eu não morri, mas estive ali no limite da morte”. De forma mais efetiva, destaca suas relações com Cristo dizendo que foi um milagre ter sobrevivido e ressurgido para ganhar as eleições. Por isso, reconhece-se na função de “salvar” o país do caminho que estava sendo traçado. No meio do discurso, reconhece que não tinha um perfil de chegada à presidência, deixando a entender que foi parte do milagre que Deus operou na sua vida. Saiu da “(quase) morte” (pela facada que tomou) à missão da presidência da república. Portanto, ele é um escolhido de Deus. Alguém que tem a missão de cuidar do Brasil contra o caos que estão tentando implementar com o coronavírus. Por isso, ponderou: “a responsabilidade é muito grande, a cruz é muito pesada, com milhões de pessoas do meu lado, que tem um coração verde e amarelo, que creem em Deus, acredito que podemos vencer os obstáculos”. Exalta um patriotismo ligado à metáfora da crucificação de Jesus - com o termo a “cruz é muito pesada”. Algo absolutamente planejado para que o presidente seja reconhecido como messias da nação. Assim, ao fim do vídeo, volta a dizer sobre a questão da quarentena: “Desde o começo, há quarenta dias temos dois problemas gravíssimos, o vírus e o desemprego. Quarenta dias começando a ir embora o vírus, mas está batendo forte a questão do desemprego, mas devemos bater forte nessas duas coisas. Obviamente lutamos sempre, acreditamos em Deus acima de tudo, vamos vencer os obstáculos”.

2.   Conclusão

         Como se indica, o bolsonarismo verniza seu discurso com tons messiânicos de salvação política do Brasil; contudo, reverbera o desprezo à parcela da população mais velha, com problemas de saúde crônica diante da possibilidade da morte. Faz isso construindo uma falsa dicotomia entre o caos social da quarentena e o desemprego que pode assolar o país. Em sua estratégia, investiu pesado na temporalidade da Páscoa, dando mostras variadas e públicas do ser cristão: mostrou ter conhecimento da história do cristianismo, da Bíblia e principalmente de fragmentos bíblicos-chaves - a fim de pintar como messias cristão para voltar a mobilizar sua base conservadora religiosa. Agora, devo fazer uma correção. Embora, no início do artigo tenha usado a expressão de Michael Lowy, de que Bolsonaro constrói uma “guerra dos deuses”, acredita-se que ela seja um tanto imprecisa para a atualidade do governo.

O que o bolsonarismo sublinha é uma “guerra bíblica”, lutada no interior do Estado brasileiro, arrotando versículos bíblicos por ser uma maneira fácil e “santa” de se comunicar com o fundamentalismo cristão. O termo “guerra dos deuses” seria mais interessante se estivesse ocorrendo um embate de religiosos de outras divindades que não as cristãs, o que não se reconhece. Portanto, a “guerra bíblica” impulsionada por Bolsonaro é ponte de diálogo direto com o fundamentalismo, ao mesmo tempo em que o cerca com uma cristologia frágil, de um messianismo autoritário, desvencilhado das memórias dos pobres - local vivencial do levante popular que ocasionou o movimento de Jesus. O intuito de Bolsonaro é promover, com a vestimenta bíblica, uma tentativa de relativizar a quarentena, colocando em risco partes da população “que podem ser descartadas, mortas” (Mbembe, 2014). Quando ele se desenha sob a autoridade messiânica, relativizando a quarentena (ou dizendo que o vírus já passou), aproxima-se das ideias da típica eugenia social tão operada no passado pelos governos fascistas. Por isso, deve responder pelas centenas de mortes que já são contabilizadas no território brasileiro como vítimas do Covid-19.          

Bibliografia:

AGANBEM, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo Editoria, 2004.

BENJAMIN, Walter. “Teses sobre o conceito de história”, 1940.

LOWY, Michael. A guerra dos deuses, Petropolis: Vozes 2000.

MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: Antigona, 2014.

PY, Fábio. A cristologia cristofascista de Jair Bolsonaro, São Paulo: Carta Maior, 2019. Acessado em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/a-cristologia-cristofascista-de-jair-bolsonaro/.

RANCIERÉ, Jacques. Ódio a democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.      

SOLLE, Dorothee. Beyond Mere Obedience: Reflections on a Christian Ethic for the Future, Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1970.

Fontes de internet:

segunda-feira, 18 de março de 2019

Escuta como ato político


Escuta como ato político

Dedico este texto a Kenya Gomes, Bruna Machel e Juliana Tavares.

Por Paulo Sérgio Ribeiro

No calendário de lutas estabelecido em março, um mês muito significativo paras mulheres que, em alto e bom som, afirmam a dignidade da pessoa humana em todas as latitudes do globo, participarei como mediador da aula pública "A luta pela vida das mulheres no Brasil pós-eleições", que ocorrerá nesta quarta-feira, no Bandejão da UENF, às 12h (aqui). 

Confesso que o convite muito me honrou devido ao crédito que fora depositado em um homem cujas catalogações (branco, hétero, cis...), quase sempre, confirmam marcadores de opressão nas relações de gênero. 

Poder mediar tais falas e aprender com cada uma delas será um privilégio e, talvez, seja uma das raras oportunidades em que reconhecer-se privilegiado não me coloque em confronto comigo mesmo. 

Convenhamos: será mesmo tão pacífico assim? Se o confronto com o "velho homem" que habita em nós é inevitável, como se sair vencedor sem o sacrifício de outro alguém na jornada para chegar a esta desejável conquista íntima? 

A meu ver, uma maneira bastante generosa seria visitar a obra seminal da filósofa Djamila Ribeiro - "O que é lugar de fala?"[1] -, uma provocação que, até hoje, rende-lhe berros histéricos da extrema-direita e, não menos, um dar de ombros de certa esquerda pouco familiarizada com a agenda pública do(s) feminismo(s). 

Não devo iludir o(a) leitor(a): há não muito tempo, participava sem maiores questionamentos do segundo grupo. Mas, felizmente, a convivência política com mulheres as mais variadas tem imposto um cerco aos últimos focos de resistência do "velho homem" que, teimosamente, vez ou outra ainda sou. 

Com Djamila Ribeiro, entendi que os condicionamentos de uma cultura patriarcal e heteronormativa - embora confirmem à perfeição os atributos do "fato social" concebido pelo velho mestre Émile Durkheim - não me autorizam a abrir mão da responsabilidade ética face àquele "Outro" que se manifesta em tantos rostos, vozes e visões a partir da condição feminina. 

A filósofa e ativista negra delimita tal responsabilidade ética ao desfazer eventuais confusões nas quais muitos recaem quando sobrepõem a noção de "representatividade" àquela dimensão da luta política. Ambas andam lado a lado, por óbvio, mas devem ser distinguidas analiticamente para não sucumbirmos a categorias de acusação que satisfazem azedumes pessoais em prejuízo da intersubjetividade daqueles(as) que podem estar do mesmo lado da trincheira, por assim dizer.

Seguindo os passos de Djamila: é razoável uma mulher negra não se sentir representada por um homem branco, mas não por isso este deve deixar de tematizar a realidade dela a partir do seu senso de realidade. Ora, a não responsabilização daqueles que falam a partir do lugar do privilégio traduzir-se-ia no véu da ignorância com o qual se encobre a pretensão de salvo-conduto para vantagens sociais e econômicas que aquele lugar nos oferece.

As lutas por reconhecimento (ou por "representação") nada mais seriam, portanto, que trazer à luz a arbitrariedade dos espaços de privilégio por parte daqueles indivíduos e grupos segregados em lugares da invisibilidade social ou, noutros termos, em um não-lugar. Porém, lembra Djamila, refletir sobre o lugar de fala não é aceitar acriticamente que "somente os subalternos falem de suas localizações", pois, do contrário, aqueles que estão inseridos na "norma hegemônica" continuarão enxergando a si mesmos de um ponto de vista olímpico[2].

Uma perspectiva relacional, é "só" o que se propõe:

[...] entendemos que todas as pessoas possuem lugares de fala, pois estamos falando de localização social. E, a partir disso, é possível debater e refletir criticamente sobre os mais variados temas presentes na sociedade. O fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na constituição dos lugares de grupos subalternizados[3].

São muitos os ângulos pelos quais Djamila elabora sua perspectiva de análise: a história do feminismo e suas disputas internas; o alcance do feminismo negro no debate público; o diálogo entre feminismo negro e o pensamento decolonial; os dados recentes que confirmam a vulnerabilidade social das mulheres em correlação com as desigualdades abissais do nosso país entre outros. Seu livro, praticamente um manual de combate – melhor dizendo, do bom combate -, chama-me atenção para um aspecto: como não admitir que estamos a léguas de distância daquela perspectiva relacional no próprio modus operandi do campo científico? 

O texto da socióloga Luciane Soares da Silva publicado recentemente no blog (aqui), que desnuda os mecanismos da superseleção escolar à qual ela e tantos(as) outros(as) estudantes negros(as) foram submetidos(as) para esbarrar (como egressos dos cursos de pós-graduação) na falácia meritocrática dos concursos públicos para carreira docente de nível superior, vai ao encontro da interpretação que Djamila Ribeiro dedica ao universalismo na produção de conhecimento. 

Se dimensionarmos a hierarquia social dos objetos - o que faz algo ser ou não de interesse para a pesquisa -, observamos que o privilégio social de intelectuais brancos europeizados é, de fato, um privilégio epistêmico. O postulado de objetividade que diferentes ciências humanas tendem a seguir de perto, na prática, cristaliza-se em um regime de autoridade discursiva em torno de um suposto sujeito "universal" do conhecimento que, todavia, na sua autointitulada função de "Farol de Alexandria" deixa a desejar para tantos outros sujeitos os quais, efetivamente, teriam muito mais a dizer para a elucidação científica dos fatos. 

Ora, o que eu teria a dizer às mulheres que conduzirão a aula pública desta quarta-feira? Algo menos do que elas já possam falar por si mesmas. Nosce te ipsum[4]: o meu lugar de fala nada mais é do que um reflexo da minha capacidade de escuta. Aprimorá-la, assim espero, fará com que vislumbre outros marcos civilizatórios nas vozes dissonantes dessas mulheres e, quem sabe um dia, dará passagem a um "novo" homem. 


[1] RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
[2] Op. cit., p. 86.
[3] Op. cit., p. 88.
[4] “Conhece-te a ti mesmo”.

domingo, 21 de outubro de 2018

Quem pragueja contra o comunismo sabe o que é liberalismo? (parte 3)




Quem pragueja contra o comunismo sabe o que é liberalismo? (parte 3)

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Sumariadas as linhas conceituais da “justiça com equidade” (ver parte 2), principiemos pela leitura do programa de governo de Fernando Haddad (PT)[1]. Tendo por fio condutor o Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado para o decênio 2014-2024, nesse programa eleva-se a educação à condição de “prioridade estratégica” que obedece às seguintes diretrizes:

a) Forte atuação na formação dos educadores e na gestão pedagógica da educação básica, na reformulação do ensino médio e na expansão da educação integral;

b) Concretização das metas do PNE, em articulação com os planos estaduais e municipais de educação;

c) Institucionalização do Sistema Nacional de Educação, instituindo instâncias de negociação interfederativa; criação de política de apoio à melhoria da qualidade da gestão em todos os níveis e aperfeiçoamento do SAEB;

d) Criação de novo padrão de financiamento, visando progressivamente investir 10% do PIB em educação, conforme a meta 20 do PNE; implementação do Custo-Aluno-Qualidade (QAQ) e institucionalização do novo FUNDEB, de caráter permanente, com aumento da complementação da União; retomada dos recursos dos royalties do petróleo e do Fundo Social do Pré-Sal;

e) Fortalecimento da gestão democrática, retomando o diálogo com a sociedade na gestão das políticas bem como na gestão das instituições escolares de todos os níveis.

Das diretrizes expostas, chama-me atenção a proposta de redefinição dos padrões de financiamento para alcançar 10% de investimento do PIB em educação. Trata-se de uma meta que exigirá um verdadeiro rearranjo distributivo e cujas chances reais de ser efetuada perpassam o comprometimento das rendas petrolíferas com o investimento público em educação. Nos termos originais do marco regulatório da exploração dos campos do pré-sal, delimitavam-se 75% dos royalties do petróleo para a educação e 25% para a saúde, além de 50% de todos os recursos do Fundo Social do pré-sal para ambos os setores. A base legal para essa repartição de investimentos, sancionada no então Governo Dilma[2], sofreu drásticas alterações sob o Governo Temer[3] e, na prática, tornou-se letra morta com a Emenda Constitucional nº 95, que restringe os gastos primários do governo federal por 20 anos e que, diga-se, teve o voto de aprovação do deputado federal Jair Bolsonaro[4].

Diante deste contingenciamento, como o programa de Haddad focaliza a educação infantil e o ensino fundamental? Na primeira, em consonância com a educação integral, estabelece-se a expansão “com qualidade” das vagas em creches e o fortalecimento das políticas voltadas para a pré-escola. No segundo, são previstos ajustes na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em contraponto a “imposições obscurantistas” - uma menção indireta a projetos de lei inconstitucionais sob o rótulo "Escola sem partido" -, assim como uma “forte política nacional de alfabetização” que confira tratamento qualificado às especificidades locais dos educandos. Para o ensino fundamental, também são previstas medidas de valorização e formação profissional dos professores e professoras a partir do fortalecimento do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). Por seu intermédio, estudantes universitários de Pedagogia e de Licenciatura atuarão nas escolas públicas em sinergia com a tentativa de promover um salto qualitativo no processo de alfabetização das crianças.

Como o programa de Jair Bolsonaro (PSL)[5] delineia esses dois segmentos da política educacional? A primeira menção a essa política é feita na seção “Linhas de ação” na forma de um binômio Saúde/Educação:

Saúde e Educação: eficiência, gestão e respeito com a vida das pessoas. Melhorar a saúde e dar um salto de qualidade na educação com ênfase na infantil, básica e técnica, sem doutrinar.

Na última oração – “sem doutrinar” – evidencia-se uma percepção do processo de ensino-aprendizagem que é, no mínimo, ilógica. Ora, a socialização escolar não se resume à transmissão de conhecimentos de ordem cognitiva, ainda que os seus agentes estivessem deliberadamente comprometidos com a exclusividade dessa função social da escola. Qualquer profissional de educação sabe melhor do que ninguém que há uma tensão permanente entre as famílias e a escola no tocante à expectativa de aquisição de comportamentos e declará-la extinta seria o mesmo que, digamos, revogar as leis da física newtoniana...  

Adiante, postula-se a tese de que “gastamos como os melhores” e “educamos como os piores”, aludindo à posição do país no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA). De fato, nosso desempenho educacional encontra-se aquém do desejável. Os resultados colhidos através do PISA em 2015[6] sinalizam que os alunos brasileiros tiveram um desempenho abaixo da média dos alunos nos países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Naquele ano, obtivemos em ciências 401 pontos, enquanto a média dos demais países ficou em torno de 493 pontos; em leitura 407 pontos, em comparação à média de 493 pontos; e em matemática 377 pontos, comparados à média de 490 pontos.

Diante das severas insuficiências na aprendizagem escolar, lança-se um prognóstico que, à primeira vista, parece auspicioso: inverter as prioridades, concentrando, pois, esforços na educação infantil, fundamental e média. Qual diagnóstico lhe serve de base? Mudar (sem precisar como) a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), eliminar a “aprovação automática” e expurgar a “ideologia de Paulo Freire” no processo de alfabetização. Uma vez mais, vaticina que um dos maiores entraves no setor é a “forte doutrinação”. Desnecessário dizer que tal afirmação vai de encontro ao que pedagogos e demais especialistas em diferentes latitudes do globo pensam. Basta lembrar que a Organização das Nações Unidas (ONU) ratifica o reconhecimento de Paulo Freire como patrono na educação brasileira. Mas não nos distraíamos com bobagens. Fixemos o olhar em uma proposição sui generis contida em seu programa:

Educação à distância: deveria ser vista como um importante instrumento e não vetada de forma dogmática. Deve ser considerada como alternativa para as áreas rurais onde as grandes distâncias dificultam ou impedem aulas presenciais.

Eis uma resolução que, em sendo implementada, tornaria o Estado e a sociedade brasileiros divorciados daquilo que é, digamos, a quintessência do liberalismo. Recordemos: tornar-se gente, na acepção genuinamente liberal do termo, decorre de uma bem vinda “invasão” do Estado no reduto familiar com vistas a incorporar seus membros em um processo de cidadanização. Seu instrumento por excelência é a escola pública, universal e gratuita que, mesmo sem deixar de aclimatar-se às peculiaridades regionais, tem de promover a participação integral dos indivíduos na socialização de conhecimentos e comportamentos que seja a um só tempo causa e efeito de uma nação que se possa chamar de conclusa. Aqui, sequer podemos dizer que se adota uma concepção de justiça social afeita à liberdade natural, pois, como vimos, mesmo nesta versão minimalista do liberalismo social, é pressuposta a formação escolar em condições equitativas para que um indivíduo adulto tenha sido capacitado a empreender a si mesmo em uma economia competitiva de mercado.

Pasmem, qual o sentido de uma criança de uma família pobre do semiárido nordestino ou do Alto Amazonas ter acesso a um conteúdo didático por meios audiovisuais sem estar integrada à sala de aula? As famílias das áreas pouco acessíveis deveriam suportar em seus próprios ombros a socialização dos custos da integração nacional sem uma presença robusta do Estado na educação básica? Seria razoável negar a uma criança as virtualidades do saber não instituído que apenas a convivência em uma comunidade escolar mais ampla do que suas relações familiares podem assegurar? Contar-se-iam com pais e/ou responsáveis aptos a dirigir os estudos à distância das crianças sob sua guarda? 

A pertinência de tais perguntas ante os desafios que a “educação 2.0” está a exigir em uma sociedade complexa como a brasileira, atravessada pelas iniquidades de uma elevada desigualdade socioeconômica entre classes sociais, confirma a olhos vistos o quão iliberal é Bolsonaro em seu programa de governo. Os fantasmas alimentados em torno do comunismo não passam de um véu para as fragilidades de uma agenda educacional que carece de um plano de ação que encadeie objetivos e metas.

Conclusão: no programa de governo de Haddad, prevalece uma concepção de justiça social subjacente à igualdade liberal de oportunidades, na medida em que preconiza uma alocação redistributiva de recursos que gere oportunidades educacionais para segmentos da população em relativa desvantagem sem, necessariamente, sacrificar o estilo universalista da sua política social. Já no programa de Bolsonaro, predomina uma perspectiva da educação que, a considerar a recorrência das falácias em torno do “perigo vermelho”, acaba por traduzi-la em um problema moral sem outra fundamentação senão os velhos preconceitos de uma caserna militar que carece de luz e oxigênio.

Por fim, é bom lembrar: um governo estadual ousou recentemente navegar contra a maré montante do neoliberalismo no país. Trata-se do governo do Maranhão[7], que incluiu em sua carta náutica uma medida de recomposição salarial na educação básica que propiciou um novo piso remuneratório a servidores efetivos e contratados, comprometendo 115 milhões na sua folha de pagamento. Um professor iniciando a carreira no Maranhão com jornada semanal de 40 horas terá remuneração de R$ 5.750,83. Já o que inicia com jornada de 20 horas, receberá R$ 2.875,41. De longe, a melhor remuneração para a docência nos níveis fundamental e médio dentre os estados da federação, efetuada no governo de um comunista, Flávio Dino (PCdoB). Surpreendente? Nem tanto.



[1] http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2018/propostas-de-candidatos
[2] http://www.brasil.gov.br/governo/2013/09/sancionada-lei-que-destina-royalties-do-petroleo-para-saude-e-educacao
[3] https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2016/10/partidos-que-hoje-querem-mudar-regras-do-pre-sal-se-posicionaram-de-forma-diferente-anos-atras-6194.html
[4] http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/10/saiba-como-cada-deputado-votou-em-relacao-pec-do-teto-de-gastos.html
[5] http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2018/propostas-de-candidatos
[6] http://portal.inep.gov.br/web/guest/acoes-internacionais/pisa/resultados
[7] https://www.cpp.org.br/informacao/noticias/item/10576-com-reajuste-maranhao-pagara-mais-alto-salario-de-professor