sexta-feira, 28 de maio de 2021

Entrevista de Análise de Conjuntura - George Coutinho

 Buenas!

Este que vos escreve foi convidado para conceder entrevista para o podcast da Rádio NF, iniciativa multimídia do combativo Sindipetro-NF.

Discuti questões como as eleições 2022, governo Bolsonaro, pandemia e outros acepipes indigestos. A jornalista realmente não estava ali pra conversa mole.

Quem quiser conferir pode clicar no link para o soundcloud: https://soundcloud.com/user-830660142/podcast-99-lula-tem-plenas-chances-talvez-seja-imbativel-em-2022-diz-cientista-politico

Ou simplesmente clicar na imagem abaixo.




quarta-feira, 26 de maio de 2021

Afinidades eletivas entre os neoliberais e o negacionismo

          Photo courtesy of Gratisography

Por Jefferson Nascimento* e Leonardo Sacramento**

    Comecemos pelo central: o neoliberal precisa negar a História e o saber científico contextualizado porque seus fundamentos não resistem à análise séria dos fatos. Começar deste modo pode parecer algum tipo de provocação, mas se trata de um diagnóstico. Não à toa, componentes do pensamento neoliberal, como a meritocracia, a negação à atuação do Estado na economia com finalidade social e o discurso do empreendedorismo, atingem um alto grau de difusão a partir de dois aliados que também se alimentam de uma base a-histórica: o pós-modernismo e o ambiente caótico das redes sociais.

    O fundamento pós-moderno, ao problematizar a História e o conhecimento histórico, se constrói a partir da lógica em que se discute a noção de verdade, razão, identidade e objetividade. Com isso, o pós-modernismo questiona as teorias de amplo alcance a partir do rótulo de “grandes narrativas” que “só uma violência teórica poderia forçar”. A História seria descontínua e o mundo “contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas gerando certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das normas”[1]. O avanço dessa desconfiança sobre a história e sobre explicações sistêmicas favorece discursos fragmentários e, portanto, se todos os contextos são imprecisos, a História não pode ser muito diferente de uma outra narrativa como a Literatura. Sérgio Rouanet daria uma definição interessante: o pós-modernismo tenta exorcizar o velho sem construir nada novo; é uma “consciência pós-moderna” sem referente empírico.[2]

    O ambiente caótico das redes, ao mesmo tempo que ganha impulso graças a um certo avanço da tal “consciência pós-moderna”, retroalimenta essa permanente busca por negar a história e “exorcizar o velho sem construir nada novo” e ainda dissemina certos modos de pensar que dificilmente resistiria em uma lógica que valoriza a estrutura e a totalidade. É aí que a doutrina econômica neoliberal ganha importantes aliados para se expandir como racionalidade, como “filosofia neoliberal”.

    Um exemplo de como opera é o tratamento dado ao “Índice de Liberdade Econômica – ILE” (ou Index of Economic Freedom). Esse índice passou a ser usado por think tanks, alguns articulistas, por youtubers e afins com um status explicativo que o índice não tem: esse indicador mostraria que quanto maior o grau de liberdade econômica, maior o sucesso do capitalismo. Mais do que isso: em algumas abordagens, o índice passou a ter poder explicativo, isto é, ele explicaria o grau de desenvolvimento, hierarquizando todos os países sob conceitos arbitrários e abstratos. O problema é que não há qualquer evidência neste sentido e sequer fazem a pergunta banal: os países com maior grau de liberdade econômica se desenvolveram porque garantiram maior liberdade econômica ou conferiram maior liberdade econômica porque se desenvolveram? Sem essa pergunta, os entusiastas neoliberais, como sempre, ignoraram todo o processo histórico, toda análise científica, recortaram a realidade e explicaram da forma mais conveniente, afinal o contexto em que vivemos aceita facilmente a desconfiança em relação às explicações científicas que demandam análise estrutural e sistêmica. O contexto em que vivemos aceita que a História possa ser apenas uma narrativa como as outras e, portanto, aceita que o ceticismo em relação à objetividade da verdade se converta em primazia da opinião face à infinidade de conjunturas correntes. O fato é que mesmo com o livro “The End of Poverty”, de Jeffrey Sachs, demonstrando que o índice não tem potencial explicativo por não haver significância entre ele e o desenvolvimento, a circulação do argumento não foi reduzida. Assim, o índice mágico continua sendo capaz de explicar o sucesso de alguns países que, ironicamente, se beneficiaram com séculos de Mercantilismo, com décadas de Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) ou que, como os Estados Unidos, enfrentaram uma guerra civil cuja escravidão, ainda que alguns digam o contrário, não era uma preocupação maior para os industriais do Norte na Guerra de Secessão (1861-1865) do que a defesa do protecionismo econômico, que era combatido pelos latifundiários do Sul.

    Negar a história e a ciência não é apenas uma consequência não desejada, é, antes de tudo, uma necessidade. Sem a ditadura da opinião em detrimento do conhecimento, essa filosofia neoliberal não pode sobreviver e circular. Vejamos um exemplo:

Em conversas com fontes do governo, as respostas são as seguintes: Embora a receita seja obrigatória, acredita-se que muitas farmácias venderão sem a receita, o que levaria a um uso abusivo e indiscriminado do medicamento; médicos despreparados podem também exagerar na prescrição do medicamento, com as mesmas consequências; os ricos, com medo da epidemia, comprarão tudo das farmácias, esgotando os estoques. Faz sentido? Primeiro ponto: a análise considera que os brasileiros não sabem cuidar de si e, com liberdade de escolha, agirão de modo contrário aos seus verdadeiros interesses.[3]

    Ora, o cerne da liberdade de escolha para consumir um medicamento, em pleno contexto de pandemia, é o que o sustenta a defesa da cloroquina, da ivermectina, do tratamento precoce e afins. Em linhas gerais, o que se diz é que, na ausência de um medicamento eficaz comprovado, se o médico prescrever, com sua liberdade no exercício da profissão, e o paciente aceitar, no exercício de liberdade de escolha, qual é o problema? A citação acima, no entanto, não se refere à cloroquina, mas ao Tamiflu. Não foi Bolsonaro que o defendeu, mas o economista e jornalista Carlos Alberto Sardenberg, em 2009, na epidemia de H1N1. Há quem possa argumentar que, diferente da Cloroquina, o Tamiflu foi amplamente utilizado no combate à H1N1. No entanto,

[...] a Cochrane Collaboration — uma rede de cientistas independentes que analisam a eficácia dos medicamentos comercializados — divulgou que o antigripal Tamiflu, utilizado no tratamento da gripe A H1N1, não evita a disseminação da doença nem diminui as complicações que ela pode causar. Na verdade, segundo o estudo, ele teria o mesmo efeito do paracetamol (analgésico popular).[4]

    Ou seja, segundo os pesquisadores, o medicamento se mostrou eficaz apenas em casos de hospitalizados graves e com doenças crônicas, sem capacidade de prevenção[5], com uma série de relatos de eventos adversos graves, em especial eventos neuropsiquiátricos associado ao medicamento[6]. Além disso, a maioria dos estudos que atestaram a segurança e a eficácia do Tamiflu para a profilaxia e tratamento da gripe haviam sido feitos com financiamento da farmacêutica Roche (que comercializou e promoveu o fármaco)[7]. Porém, o que estava em jogo para Sardenberg não era a evidência científica nem a eficácia ou não do medicamento, mas, sim, o pressuposto de que a liberdade de escolha é um princípio universal e que não deve ser relativizado nem nesses casos mais sérios, que envolve saúde. O Estado, naquele caso, deveria aceitar como dado inquestionável que as pessoas não agiriam contra seus próprios interesses. E tem mais:

Mais ainda, por que os médicos do setor privado (incluindo os dos planos e seguros-saúde) seriam mais despreparados que seus colegas do setor público? Em resumo, há nessas objeções do pessoal do governo não apenas a ideia de que as pessoas não sabem cuidar de si mesmas, como também a desconfiança de que os médicos do lado privado, que atendem mais de 45 milhões de pessoas com planos ou seguros de saúde, são despreparados ou movidos por outros interesses. Mas imaginemos que aconteça tudo o que o pessoal do governo teme: que se vendam milhões de frascos sem receita, que os médicos distribuam ou vendam milhões de receita e que ocorra uma corrida às farmácias, com esgotamento dos estoques e alta de preços no câmbio negro (pois os preços na farmácia estão tabelados). E daí?[8]

    Ignorando a especificidade de um contexto epidêmico e que demanda atualização constante face às pesquisas que iam perseguindo a evolução da doença, Sardenberg tratou a questão da “competência” como atributo moral e não técnico. Como se alertar para o risco da falta de conhecimento acerca de uma doença nova, fosse desqualificar o profissional. Nem todo médico se mantém pesquisador. O protocolo visa justamente orientar aquele profissional – obviamente, importante para a saúde – que vai para o consultório e não consegue manter o monitoramento nas pesquisas sobre o desenvolvimento e a aplicação de fármacos em tempo real. Apenas isso!

    Por fim, o temor que esses profissionais sejam “movidos por outros interesses” não pode fazer sentido desde o ponto-de-vista em que ele fala: as pessoas possuem liberdade de escolha, fazem escolhas racionais e não contrárias aos próprios interesses e o mercado é a instância perfeita, que regula e corrige tudo o que for imperfeito na sociedade. Eis, o mistério da fé. O dogma na infalibilidade do mercado e da concorrência, nunca provado, mas sempre mobilizado.

    Avancemos 12 anos, façamos a alteração de H1N1 por SARS-CoV-2 e de Tamiflu por Cloroquina, Hidroxicloroquina, Ivermectina e/ou tratamento precoce. Os argumentos são os mesmos. Mas, então, porque a lógica bolsonarista é tida como obscurantista e negacionista e a de Sardenberg não? O que muda são os fatos. Sardenberg não foi confrontado com os fatos. Na ocasião, o país conseguiu vacinar sua população rapidamente e, junto a outros fatores, a epidemia foi controlada. Logo, o texto de Sardenberg não passou de uma peça banal do malabarismo retórico que alimenta a reflexão com base na “filosofia neoliberal”. Bolsonaro e o bolsonarismo não tiveram a mesma sorte de deixar suas posições na trincheira do enfrentamento ideológico. Os fatos se impuseram, as trapalhadas do governo e a dificuldade de acesso à vacina produziram mais de 450 mil mortos, tornando improvável esquecer a defesa de medicamentos sem comprovação científica como parte da tragédia. Nem Sardenberg (como ele mesmo disse na CBN, felizmente vacinado) pode ignorar o trágico resultado, ainda que faça críticas formais e sem substância e que dissimule sua adesão à lógica que nos trouxe a esse caos.

* Jefferson Nascimento é doutorando em Ciência Política (UFSCar), mestre em Ciências Sociais e professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP). membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA) Autor do livro “Ellen Wood – o resgate da classe e a luta pela democracia” (Editora Appris).

** Leonardo Sacramento é doutor em Educação, professor de ensino fundamental da Rede Municipal de Ribeirão Preto e pedagogo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, campus Sertãozinho. Presidente da APROFERP (Associação dos Profissionais de Ensino de Ribeirão Preto/SP). Autor do livro A universidade mercantil: um estudo sobre a universidade pública e o capital privado (Editora Appris).



[1] EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 50-52.

[2] ROUANET, Sérgio P. “A verdade e a ilusão do pós-moderno”. Revista do Brasil, Rio de Janeiro: Governo do Estado do Rio de Janeiro/Secretaria de Ciência e Cultura; Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, ano 2, n. 5, 1986

[3] SARDENBERG, Carlos A. “Por uma caixa de Tamiflu”. Estadão, Caderno de Economia, São Paulo, 10 ago. 2009. Disponível em: <https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,por-uma-caixa-de-tamiflu,416184>.

[4] Ver: <https://drauziovarella.uol.com.br/infectologia/tamiflu-so-e-indicado-para-casos-graves-de-h1n1/>.

[5]Tamiflu só é indicado para tratar H1N1 em casos graves, como os que envolvem doentes crônicos, gestantes, idosos e crianças menores de dois anos.Ver: <https://drauziovarella.uol.com.br/infectologia/tamiflu-so-e-indicado-para-casos-graves-de-h1n1/>.

[6] GUPTA, Yogendra K; MEENU, Meennakshi & MOHAN, Prafull. “The Tamiflu fiasco and lessons learnt”. Indian Journal of Pharmacology, v.47 (1), jan-fev. 2015, p. 11-16. Ver: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4375804/>.

[7] Ibidem.

[8] SARDENBERG, Carlos A. “Por uma caixa de Tamiflu”. Estadão, Caderno de Economia, São Paulo, 10 ago. 2009. Disponível em: <https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,por-uma-caixa-de-tamiflu,416184>.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Quem me colonizou? ou: os ouvintes de Rude Cruz

 

Fonte: MPLAFER.net.

Quem me colonizou? ou: os ouvintes de Rude Cruz*

* Publicado originalmente em Revista Contemporartes.

Esther de Souza Alferino[i]

Chamarei este escrito de uma tentativa ensaística de traduzir o que foi minha criação religiosa. Acredito que tentativa ensaística é um termo generoso demais para o que virá a seguir, mas não consigo encontrar nada melhor no momento. Outra coisa que pode estar passando pela mente do leitor é por que minha criação religiosa teria alguma relevância para alguém além de mim mesma. Tentarei justificar, e peço a generosidade do leitor, pois é a primeira vez que escrevo algo que se pretende acadêmico assim, em primeira pessoa, e ademais, para falar de mim mesma.

Eu nasci e cresci crente, evangélica, protestante, os nomes eram variados durante a minha infância, e ainda são. Mas eu não faço parte daqueles que têm uma história de conversão recente na família, eu sou a quarta geração de pessoas nascidas protestantes históricas. Originalmente presbiterianos, mas quando eu cheguei já metodistas. Isso remonta dos primeiros anos do século XX, primeiros mesmo, bem no começo do século, quando meus bisavós maternos, Palaio e Adelia, se converteram em alguma igreja presbiteriana, talvez da zona rural, talvez já na área urbana de Itaperuna, não sei exatamente. Minha avó materna, Drucila (nome peculiar, porém bíblico) nasceu em um lar cristão protestante, e foi assim que ela criou seus oito filhos que permaneceram vivos, duas meninas morreram ainda bebês, não sei se chegaram a ser batizadas, porque tanto a igreja presbiteriana quanto a metodista batizam crianças, bem diferente de outras tradições protestantes, e essa é uma das coisas que no senso comum pouco se sabe.

Mas por que tudo isso teria alguma relevância para além do meu núcleo familiar? Eu acredito ter, porque o Brasil não foi e não é apenas uma colônia portuguesa católica. Há quem tenha sido colonizado de outra forma, por outros, e isso também faz parte da História, com “h” maiúsculo que nos forma enquanto nação.

Pierre Bourdieu (2002), o sociólogo francês, escreveu sobre o estudo de trajetórias nas Ciências Sociais, em uma tentativa de afastar tais estudos do conceito de biografia presente no senso comum, onde a vida segue um curso linear, em uma sequência de acontecimentos que obedecem ordem lógica e cronológica. Para uma análise sociológica, Bourdieu propõe que o pesquisador organize os fatos de maneira inteligível, e que o agente pesquisado seja considerado em sua totalidade, sujeito com nome próprio, que perpassa por diferentes campos. Mas nesse caso a pesquisadora sou eu, e a trajetória é a da mina família, seria isto possível?

Já Paulo Renato Guérios (2011) traz o conceito de história de vida, onde o sujeito pesquisado oferece sua própria perspectiva, geralmente por meio de uma entrevista concedida ao pesquisador.

Cada ator histórico participa, de maneira próxima ou distante, de processos de dimensões e níveis variáveis, do mais local ao mais global. Não existe portanto hiato, menos ainda oposição, entre história local e história global. O que a experiência de um indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma modulação particular da história global. Particular e original, pois o que o ponto de vista microhistórico oferece à observação não é uma versão atenuada, ou parcial, ou mutilada, de realidades microssociais; é […] uma versão diferente. (REVEL, apud. GUÉRIOS, 2011, p. 16).

Recorrendo à citação acima, e, mais uma vez, contando com a generosidade do leitor, arrisco aqui propor uma apresentação do meu contexto religioso familiar, em uma tentativa de, com isso, gerar uma reflexão sobre o Brasil que vai além do catolicismo, em sua formação. Não teremos aqui espaço para uma análise aprofundada do que estou chamando de colonização protestante histórica do Brasil do século XIX e início do XX, mas o objetivo deste escrito ensaístico é de provocação, para que se possa pensar em análises aprofundadas de trajetórias de vida, no sentido bourdiesiano, de sujeitos que não foram catequizados por jesuítas, franciscanos, ou qualquer outra ordem enviada ao país para salvar nossas almas, mas que foram catequizados por calvinistas, wesleyanos, arminianos, e que também compõe o Brasil profundo, o Brasil rural, o Brasil urbano desorganizado, do interior e das capitais, que fazem parte de gerações que nunca rezaram uma Ave Maria sequer.

Daqui, deste lugar de quem viveu essa outra colonização que neste espaço me proponho a brevemente narrar, recorro a Gilberto Velho (1978), para, mais uma vez salientar que o que está diante dos nossos olhos, neste caso, as famílias crentes há gerações, não estão necessariamente sendo vistas com curiosidade sociológica.

O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico mas, até certo ponto, conhecido. No entanto, estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismos como fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente. (VELHO, 1978, p. 126, grifos do autor).

Dito tudo isto, irei reproduzir abaixo um texto originalmente publicado em meu blog pessoal, espaço onde escrevo livremente sobre qualquer tema que me cause inquietação. Manterei o texto exatamente como foi publicado em 17 de novembro de 2020, às vésperas de minha defesa de mestrado, com todos os termos não ortodoxos, pois acredito que mantê-lo assim será a maneira mais fidedigna de contemplar o ser que sou, em todos os meus aspectos e por todos os campos pelos quais circulo. Ser social, que carrega nome próprio, ser biológico, ser individual, ser histórico, ser político.

O texto foi escrito em contexto de eleições municipais, de indignação com o campo político com o qual me identifico ideologicamente, o campo da esquerda progressista, e sua incapacidade, na minha visão, de dialogar com colonialidades outras, que não as suas próprias.

Quem me colonizou? ou: os ouvintes de Rude Cruz[ii]

Acho que estou finalmente na última semana da escrita da minha dissertação de mestrado, e, depois de uns longos minutos encarando a tela com as páginas já escritas, eu fiquei querendo pensar em outra coisa por um momento. A questão é que eu não sei mais no que pensar. Não faço a menor ideia. Eu estudo o que estudo já há alguns anos, com diferente recorte, diferente objeto, mas com a mesma temática: os crentes pentecostais brasileiros.

Eu poderia agora pensar no resultado das eleições de domingo, eu poderia pensar na pandemia que não sei quando nem se vai acabar um dia, poderia pensar que sexta-feira tenho análise, e que tenho muita coisa pra falar, como sempre tive, minha vida é um eterno falar demais, poderia pensar, sei lá, que está ventando muito e parece que vai chover. Mas eu não consigo tirar da minha cabeça que dentro de alguns dias vou defender as páginas que escrevi como se estivesse lutando pela minha vida. É exagerado e dramático, mas eu sou exagerada e dramática, dizem que é culpa do meu signo, o que me faz pensar por uma fração de segundo que meu aniversário é mês que ve4m e que em poucos dias o sol vai entrar em sagitário, e eu não faço ideia do que isso significa, mas vou aceitar a culpa dele pelo meu exagero e drama.

Eu poderia pensar em tudo isso que já falei, mas ainda assim estaria pensando nos crentes pentecostais brasileiros, porque esse país não funciona mais da mesma forma e isso também tem a ver com eles, e nas eleições de domingo eles foram em peso votar e porque tudo isso faz parte de quem somos enquanto nação, e eu pareço uma obcecada (talvez eu seja) e não retiro essas pessoas de nenhuma equação. Acho que o fato de que vou tentar ser “dotôra” logo depois da defesa do mestrado, e que vou seguir querendo analisar os pentecostais brasileiros tem a ver com tudo isso. Imagina minha ousadia de querer ser doutora?! Se eu fosse o resto do mundo estaria rindo da minha cara agora, mas eu não sou o resto do mundo, então vou dar ao mundo minha cara a tapa pra estar nesse lugar também, o lugar dos doutores, o lugar que me parece tão claramente não ser meu, mas que eu vou teimar em tentar. Ao menos tentar. Talvez isso também seja culpa de sagitário, sei lá.

Hoje cedo eu li um texto do Anderson França[iii], esse também sagitariano desajustado, tão diferente de mim, mas que me traduz em tantos momentos. Ele nem sabe que eu existo, mas ele me traduz. Ele falava sobre a colonização, não a dos portugueses (que inclusive ele vê melhor agora em seu exílio em Portugal), mas a colonização missionária protestante, que dá à pessoa crente outra visão de mundo, de país. Eu também sofri essa colonização. Não foi a Europa católica que me colonizou, mas foi a ética protestante, a doutrina histórica britânica, os europeus reformados que formaram minha identidade de colonizada. Eu sei muito pouco sobre o Brasil católico, assim como pontuou Anderson. Eu sou fruto de uma mistura de metodistas e presbiterianos, daqueles roxos mesmo, que levam os cânones junto da Bíblia e do hinário, claro. Eu nunca rezei um terço, não sei bem o que é um rosário. Lá em casa a gente cantava Vencendo vem Jesus, e nunca fizemos sinal da cruz. Eita, rimou, que cafona.

A minha forma de ser colonizada no Brasil, na América Latina, é muito estranha aos outros. É tão estranha que as outras esferas da sociedade ignoram que não fomos colonizados da mesma forma, e que, portanto, não pensamos nem agimos da mesma maneira.

Assim como os colonizados pelos televangelistas pentecostais estadunidenses, gente empreendedora, liberal na economia e conservadora nos costumes, que trouxe pra esse país não apenas o dom de línguas e o batismo no Espírito Santo, mas também a Teologia da Prosperidade e a linguagem de mercado. Eles também colonizaram, especialmente os pobres, especialmente os sem perspectiva e sem amparo estatal, especialmente os marginalizados, excluídos, da roça e do subúrbio, da favela e dos rincões distantes aonde ninguém vai. Não deixam nem os índios em paz.

Esse país não aprendeu a lidar nem com aquela ética protestante que não existe mais, será que vai aprender a lidar com o colonialismo neopenteca[iv] que oferece argumentos e recursos discursivos para uma expectativa de mudança de vida que os partidos políticos não são mais capazes de oferecer? Será que as exxxquerdas[v] tão limpinhas e desinfetadas vão saber falar com a tia do reteté[vi] ou com a avó que acorda cantarolando Céu lindo Céu? Até agora parece que não.

Eu não sou neta de bruxa nenhuma que não conseguiram queimar, eu sou neta de crente, mulher plantadora de igreja[vii], que equilibrava a criação de oito filhos com seu evangelismo simples e direto, mas muito eficaz. Não tente trazer os signos gramaticais das Laranjeiras[viii] pra quem foi colonizado de outra forma. Parem de achar que as pessoas são burras e bitoladas, que coisa mais feia e irritante.

Eu ando de saco cheio dessas exxxquerdas mais acéticas que os puritanos, ouvindo João Gilberto, mas também a nova MPB, claro, sem saber quem foi Luís de Carvalho, e nunca ouviu Rude Cruz, porque essas coisas de crente pra cima deles não, isso é lavagem cerebral. Ahhhh gente, faz favor, vai fazer a lição de casa, vai aprender o que é esse país e entender que ele vai muito além das nossas leituras eruditas.

Eu ando de saco cheio, mas a culpa deve ser do meu signo, assim o jovem místico me entende melhor.

Referências Bibliográficas:

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J; FERREIRA, M de M (Orgs) Usos e abusos da história oral. Trad. Glória Rodriguez, Luiz Alberto Monjardim, Maria Magalhães e Maria Carlota Gomes. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 183 – 191.

GUÉRIOS, Paulo Renato. O estudo das trajetórias nas Ciências Sociais: trabalhando com as diferentes escalas. In: Artigos, Campos 12(1): 9 – 29, UFPR, 2011.

VELHO, Gilberto. Observando o familiar. In: NUNES, Edson de Oliveira. A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 1 – 13.


[i] Cientista Social pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro

[ii] Disponível em <https://estheralferino.wixsite.com/meusite/post/quem-me-colonizou-ou-os-ouvintes-de-rude-cruz>

[iii] Anderson França é um escritor e ativista brasileiro, atualmente exilado em Portugal por receber ameaças de morte de grupos de extrema-direita brasileira.

[iv] Termo informal de tratar os neopentecostais, deixando claro que não há aqui intenção pejorativa.

[v] Termo informal e jocoso de falar do campo político de esquerda brasileiro, como forma de autocrítica, já que a autora se identifica como pertencente a este campo.

[vi] Termo comumente usado dentro do pentecostalismo brasileiro. Para mais informações consultar <https://seer.ufrgs.br/debatesdoner/article/view/96166>

[vii] Temo comumente usado no meio protestante para se referir a pessoas evangelizadoras, que iniciavam novas igrejas, geralmente chamadas de congregações.

[viii] Bairro do Rio de Janeiro conhecido por reunir pessoas do campo político de esquerda, em especial do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Com a precarização do licenciamento ambiental, Brasil abre caminho para mais desastres e violência

 


Com a precarização do licenciamento ambiental, Brasil abre caminho para mais desastres e violência*

* Publicado originalmente no Blog do Pedlowski.

Marcos Pedlowski

Ao aprovar por esmagadora maioria uma lei que fragiliza enormemente o processo de licenciamento ambiental ao isentar, por exemplo, o licenciamento ambiental dos sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto e usinas de triagem de resíduos sólidos, além de pecuária extensiva, semi-intensiva e intensiva de pequeno porte e cultivos agrícolas, a Câmara Federal também declarou guerra aos povos indígenas e quilombolas que agora terão suas terras ainda mais acossadas por uma série de atores que veem nas suas terras preservadas como um obstáculo à predação desenfreada da natureza no Brasil.

Curiosamente, esse projeto anti-ambiental começou a tramitar tendo como autor o deputado federal Luciano Zica (PT/SP) e teve sua costura final realizada pelo deputado Neri Geller (PP-MT), ex-ministro da Agricultura no governo de Dilma Rousseff (PT). Assim, ainda que se fale que a passagem desse projeto de destruição ambiental foi operada com inaudita maestria por Arthur Lyra (PP/AL), as digitais petistas estão presentes nessa verdadeira declaração de guerra ao meio ambiente e às comunidades que o defendem enquanto forma de preservação suas formas peculiares de produção e reprodução social.

Um dos detalhes mais vexaminosos dessa aprovação é que essa fragilização ocorre na esteira de dois grandes desastres ambientais causadas pela mineração de ferro em Minas Gerais (i.e., Mariana e Brumadinho), estado que hoje vive a antessala de novos mega desastres ambientais causados pela forma relaxada com que o processo de licenciamento ambiental tem sido aplicado pelo governo estadual daquele estado, em clara combinação com o governo federal, independente de quem seja o presidente.

A ideia de que o processo de licenciamento ambiental é uma barreira ao processo de desenvolvimento econômico reflete apenas uma forma primitiva de retirar recursos dos sistemas naturais. Já está mais do que demonstrado que o que se precisa mesmo é de sistemas de proteção ambiental que tenham processos técnicos rígidos para impedir que atividades poluidoras causem prejuízos sociais e ambientais maiores do que a renda que eventualmente os empreendimentos aprovados possam gerar. 

Um bom exemplo local, e que eu tive o desprazer de olhar “in loco” como tem sido realizado o licenciamento ambiental do Porto do Açu, que teve e continua tendo um processo de avaliação de impactos altamente fracionado e com praticamente qualquer salvaguarda para sequer monitorar os danos ambientais que estão ocorrendo no V Distrito de São João da Barra. A simples ideia de que vários dos componentes ainda em fase de planejamento sendo dispensados de licenciamento torna o Porto do Açu em uma espécie de bomba relógio que irá explodir bem longe dos especuladores financeiros que controlam o fundo de “private equity” que controla a Prumo Logística, o chamado EIG Global Partners cuja sede se localiza em escritórios para lá de confortáveis em Washington DC. Este conforto que é negado a centenas de famílias de agricultores familiares que não só tiveram suas terras tomadas, como hoje tem que conviver com a salinização de suas águas.

Um fato que os deputados federais e os grupos que impulsionaram este ataque frontal à regulação ambiental é de que a maioria das grandes corporações hoje é obrigada a responder a sistemas internos de governança que impedem o seu envolvimento direto em projetos que degradem o ambiente. Assim, restará para o Brasil depender de empresas que não possuem estes sistemas e que por isso tendem a ter menos freios para os danos ambientais que suas atividades causam. Além disso, a passada de boiada ambiental significará o aumento dos conflitos sociais nas áreas mais sensíveis ecologicamente para onde se quer levar o gado e a soja. Tudo isso somente aumentará o isolamento político e econômico do Brasil. Mas por hoje que se repita o que dizia o personagem Quincas Borba do livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Machado de Assis “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Genocídio, por quê?

Fonte: Greenpeace.


Genocídio, por quê?                                                                    

Paulo Sérgio Ribeiro

A palavra ganhou foro próprio: genocídio. Sua popularização vai ao encontro da denúncia de um governo cujos próceres flertaram há mais de um ano com a possibilidade concreta de uma morte em massa, a qual, mesmo descontada a subnotificação dos números da Covid-19, é simplesmente inaceitável. A urgência que a pandemia acarreta deve ser, pois, um estímulo para nos apropriarmos do genocídio como categoria de análise.

Não condeno o uso da palavra “genocídio” ante o acirramento dos embates cotidianos com os “negacionistas” de plantão, mas defendo que a delimitação do conceito, se levada a efeito, garante-nos um contraponto terapêutico aos delírios reacionários da malta “verde-amarela” que ainda constrange o país[1] e um acerto de contas com os liberais conservadores que, amalgamados com a primeira em outubro de 2018[2], normalizavam o prenúncio da tragédia que nos abateria.

De pronto, uma indagação: tragédia ou crime?                                        

Se longe estamos de uma perspectiva ex post facto da pandemia de Covid-19 no cenário brasileiro, passado mais de um ano do alerta mundial da Organização Mundial de Saúde (OMS)[3], já podemos focalizar - tal como o fez Maria Mano, Nara Ramos e Amarildo Trevisan - o “momento da tragédia”[4]. Apoiando-se na literatura sobre desastres, tais autores expõem os limites factuais da distinção entre fatores naturais e os propriamente humanos de uma tragédia ou, em seus próprios termos, sugere que observemos não apenas “para os processos que desencadeiam, tampouco para os processos que derivam de uma catástrofe”[5], mas também para o “entremeio das fibras que a compõem, que a mantém, que a fazem ser mais cruel”[6].

Há uma zona nebulosa a separar o inesperado do previsível quando abordamos a pandemia de Covid-19 sob o signo da tragédia. Atravessá-la sem nos perder requereria contrabalançar “acaso” e “vulnerabilidade” em relação a contextos específicos. Em “Os semblantes conhecidos”[7], Carlos Valpassos descreveu (com a mão talentosa de etnógrafo que só ele tem) a progressão da pandemia no Brasil, evidenciando a ausência de uma tomada de providências do Governo Federal que poderia ter sido facilitada pela relativa “vantagem” que o país inicialmente possuía, dado o foco originário da Covid-19 localizar-se na Ásia.

As visões espontâneas da pandemia como um imponderável do mundo natural nada nos dizem sobre a exposição sistemática de pessoas a situações de vulnerabilidade e os impactos diferenciados que eventos adversos – epidemias, terremotos, furacões, secas prolongadas etc. – têm em suas populações. Ora, a própria pandemia da Covid-19 não poderia ser classificada como um desastre ou catástrofe “natural”, caso levemos a sério a correlação, apontada por Allan Silva[8], entre a propagação dessa doença e a criação intensiva de animais em escala industrial.

A pecuária industrial que tomou forma nos Estados Unidos dos anos 1940 se difundiu como o paradigma da produção animal a leste e a oeste do Meridiano de Greenwich. Seu principal atributo de eficiência – o melhoramento genético – encontraria, na promessa civilizatória de eliminação da insegurança alimentar crônica entre os povos, a primazia de um argumento que pareceria resistir ao desgaste do tempo. Contudo, no terreno dos fatos, tal promessa nunca foi cumprida e, provavelmente, foi (e é) tão somente mais um ardil da ideologia da modernização capitalista. Tomando por referência a obra do biólogo evolucionista Rob Wallace[9], Allan Silva nos lembra que a revolução agropecuária do século XX condicionou a criação de animais para consumo ao “monocultivo genético”, que, para o geógrafo, trata-se de uma verdadeira “bomba-relógio microbiológica”.

Se, por um lado, a Covid-19 ainda não teve sua origem confirmada em pesquisas, por outro, o confinamento de animais para consumo marcada pela uniformização genética configura a antessala de novas epidemias cujo potencial destrutivo se mostra inaudito:

 

O enfileiramento de milhares de animais geneticamente similares nos galpões do agronegócio também funciona como uma plataforma de testes para o transbordamento de doenças zoonóticas para as populações humanas. A qualquer momento uma cepa recém–emergente de um coronavírus ou influenza pode assumir um rearranjo genético capaz de infectar humanos – geralmente um trabalhador do agronegócio –, e pronto: está aberta a longa rampa de mais uma epidemia mortal[10].


Se no meio ambiente que ainda possamos chamar de “natural” e nos antigos modelos de criação ao ar livre de animais, a biodiversidade nos assegurava uma “barreira epidemiológica”, o vertiginoso avanço da fronteira agrícola sobre o Pantanal e a Floresta Amazônica chancelado pelo Governo Bolsonaro promove uma interface perigosa entre a fauna (com todos os patógenos conhecidos ou não que contiver) e os complexos agroindustriais:

 

No Pantanal, a criação de aves, a pecuária bovina e a produção intensiva de soja, milho e cana-de-açúcar avançam pari passu com a drenagem das áreas úmidas. A região pan–amazônica é o outro bioma sob profunda ameaça sanitária, já que se trata, com toda a probabilidade, do maior repositório de coronavírus do planeta. A ecologia da Amazônia, profundamente complexa, contém cascatas de controle epidemiológico que os cientistas com muito esforço começaram a desvendar. Vale lembrar que a destruição das florestas tropicais africanas e a pressão do agronegócio do óleo de palma produziu a maior epidemia de ebola da história, que levou 11 mil pessoas à morte entre 2013 e 2015[11]


Em resumo, postular a pandemia de Covid-19 como “a tragédia que ninguém poderia prever” é, errônea e cretinamente, atribuir à natureza uma alteridade absoluta, conferindo às sociedades humanas um salvo-conduto àquilo que dela se fez na esteira da civilização urbano-industrial. Se, como aponta Allan Silva (op. cit.), além das grandes unidades de produção do agronegócio – sobretudo, frigoríficos -, um dos percursos da “interiorização” da Covid-19 no país se desenha nas pistas de pouso para o garimpo ilegal em territórios indígenas, a questão do genocídio pode ser devolvida ao debate público sem um olhar autoindulgente para o “ser-espécie” que somos.

Se estamos diante de algo para além de uma tragédia, trata-se de um crime de genocídio?

O termo genocídio foi cunhado por Raphael Lemkin em 1944, consistindo em um “plano de desintegração política e social de determinados grupos em sociedade” (LEMKIN apud. VERGNE & VILHENA & ZAMORA & ROSA). Em acordo com o conceito elaborado pelo advogado polonês - que perdeu nada menos do que 49 membros de sua família (incluindo pai e mãe) em Treblinka, um dos campos de extermínio alemão onde judeus eram executados em câmaras de gás na Segunda Guerra Mundial -, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabelece em 1948 a Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio e, em 1952, o Brasil a promulga por meio do Decreto nº 30.822/1952, ratificando as hipóteses de genocídio em seu Art. 2º:

 

Na presente Convenção entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:

a) matar membros do grupo;

b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo;

e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

 

O julgamento de tal crime ocorrerá no tribunal competente no Estado onde tiver sido praticado ou na Corte Penal Internacional competente, se reconhecida sua jurisdição pelas “partes contratantes”. Passados quase 70 anos do acolhimento dessa Convenção em nosso ordenamento jurídico, o Superior Tribunal Federal (STF) deverá julgar notícia-crime contra o Presidente da República, Jair Bolsonaro, por suposto genocídio, por publicar a Mensagem nº 378 que veta parcialmente a Lei nº 14.021/2020 – que dispõe sobre a proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas entre outras medidas. Eis o que aquela Mensagem nega aos povos indígenas, comunidades quilombolas, pescadores artesanais e demais comunidades e povos tradicionais: 


§  acesso universal à água potável;

§  distribuição gratuita de materiais de higiene, de limpeza e de desinfecção de superfícies para aldeias ou comunidades indígenas, oficialmente reconhecidas ou não, inclusive no contexto urbano;

§  oferta emergencial de leitos hospitalares e de unidade de terapia intensiva (UTI);

§  aquisição ou disponibilização de ventiladores e de máquinas de oxigenação sanguínea;

§  elaboração e distribuição, com participação dos povos indígenas ou de suas instituições, de materiais informativos sobre os sintomas da Covid-19, em formatos diversos e por meio de rádios comunitárias e de redes sociais, com tradução e em linguagem acessível, respeitada a diversidade linguística dos povos indígenas, em quantidade que atenda às aldeias ou comunidades indígenas de todo o País;

§  provimento de pontos de internet nas aldeias ou comunidades, a fim de viabilizar o acesso à informação e de evitar o deslocamento de indígenas para os centros urbanos;

§  distribuição de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas diretamente às famílias indígenas, quilombolas, de pescadores artesanais e dos demais povos e comunidades tradicionais, conforme a necessidade dos assistidos;

§  inclusão das comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares como beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA);

§  planos de contingência para situações de contato para cada registro confirmado de indígenas isolados oficialmente reconhecido pela Funai;

§  planos de contingência para surtos e epidemias específicos para cada povo de recente contato oficialmente reconhecido pela Funai;

§  mecanismos que facilitem o acesso ao auxílio emergencial instituído pelo art. 2º da Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020, assim como aos benefícios sociais e previdenciários, de modo a possibilitar a permanência de povos indígenas, de comunidades quilombolas, de pescadores artesanais e de demais povos e comunidades tradicionais em suas próprias comunidades. 

A longa lista de omissões, por extenuante que seja, não assegura que o desfecho da notícia-crime seja favorável àqueles grupos vulneráveis, uma vez que passa pela Procuradoria Geral da República cujo titular, Augusto Aras, já manifestou-se favorável ao arquivamento[12].

O autor da referida notícia-crime, André Barros, representado pelo também advogado Luís Maximiliano Telesca, compreende que tal denúncia não se refere apenas à ameaça aos povos indígenas e às demais comunidades tradicionais, mas às ações do Governo Bolsonaro em seu conjunto[13], haja vista o estímulo deliberado ao não-isolamento da população brasileira que, por sua vez, teve na duvidosa “imunidade de rebanho” o fio condutor de uma estratégia sanitária permanente, conforme avalia Deisy Ventura, coordenadora de uma pesquisa empírica de fôlego sobre as normas federais e estaduais relativas ao novo coronavírus[14].

No último 19 de abril, data emblemática para a luta por reconhecimento dos povos originários, contávamos 1038 índios mortos e mais de 52 mil contaminados por Covid-19, segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)[15]. Dado o sombrio histórico de massacres de povos inteiros por motivações étnicas somente no século XX, voltar os olhos para este grupo social nos dá uma medida dos efeitos deletérios da “frente neocolonial” aberta pelo Governo Bolsonaro.  

Segundo Guilherme Mello[16], o bolsonarismo emerge como um polo organizador da política nacional que galvaniza o antipetismo sem, todavia, ser redutível a ele, pois destrona com igual vigor parte da centro-direita tradicional, assumindo, pois, o caráter de uma força antissistema que encarna uma nova “tese” a desafiar contendores no campo institucional e a eliminar “inimigos” no campo extra institucional. Sendo assim, o garimpo ilegal em territórios indígenas é a face mais brutal de uma frente neocolonial que sucedeu a frente neodesenvolvimentista ensaiada nos Governos Lula e Dilma. Para Mello, surge um novo equilíbrio de poder na classe dominante brasileira que, no Governo Bolsonaro, passa a ter uma agenda para chamar de sua com a seguinte conjunção de fatores:

a) o declínio da indústria de transformação vis à vis o fortalecimento da burguesia comercial – que abraça o projeto neoliberal consumado na reforma trabalhista;

b) o desembarque do setor financeiro da frente neodesenvolvimentista, posto que nunca enxergou no programa petista um “fiador” dos seus interesses de longo prazo;

c) o “libera geral” do agronegócio com o desmonte dos órgãos regulatórios do setor;

d) a crise do setor extrativista de grande escala deflagrada na Petrobrás (acossada por escândalos de corrupção novelizados pela mídia corporativa) e na Vale do Rio Doce (os desastres anunciados em Mariana e Brumadinho), dando margem à maior atuação dos capitalistas ligados ao extrativismo primitivo (grileiros, posseiros, madeireiros e garimpeiros).

A expansão dos negócios daqueles que Mello denomina de “pequenos capitalistas”, correspondentes à alínea “d”, em territórios indígenas e áreas de proteção ambiental são um saque irremissível ao futuro que poderíamos compartilhar com os povos originários. A mineração ilegal é uma atividade que agrega centenas ou até milhares de homens das mais variadas procedências que, em um território indígena, pode resultar em dizimação por serem vetores de uma doença mortal como a Covid-19. As informações do sistema Deter, administrado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) – confirmam que “72% de todo o garimpo realizado na Amazônia – entre janeiro e abril de 2020 – ocorreu dentro dessas áreas – que deveriam ser – ‘protegidas’”[17].

A julgar pela atualidade do conceito de genocídio que um sobrevivente do holocausto nos legou e pela pertinência da hipótese legal de genocídio concernente a “submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial, sim, não resta dúvida de que o Brasil é o palco de uma “Auschwitz tropical”.

Sim, eu sei, há uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apura as macabras escolhas do Governo Bolsonaro sob a pandemia do novo coronavírus, como também sei que corpos pretos foram massacrados pela polícia civil fluminense na comunidade do Jacarezinho qual uma operação de rotina de soldados nazistas no “Gueto de Varsóvia”.

O que me deixa em dúvida é até onde vai nossa cumplicidade com o colonialismo em relação ao genocídio indígena e até onde nos deixaremos levar pela ilusão de que a guerra aos pobres não nos destrói como a nação que um dia poderíamos ter sido.



[1] Jornal Estadão. Bolsonaristas fazem atos presenciais de 1º de Maio; críticos se manifestam nas redes sociais. Edição de 01/05/2021. Disponível aqui.

[2] Submersos nesta crise sanitária e, mesmo sugerindo a corrida presidencial de três anos atrás como um marcador importante da cronologia que se queira fazer deles, importa compreender como as condições subjetivas daquele resultado eleitoral podem ou não prevalecer na construção da memória social da pandemia no país.

[3] Jornal Estadão. Do H1N1 ao coronavírus: as 6 vezes em que a OMS decretou emergência global de saúde pública. Edição de 31/01/2020. Disponível aqui.

[4] MANO, Maria Amélia Medeiros; RAMOS, Nara Vieira; TREVISAN, Amarildo Luiz. O momento da tragédia: o papel da educação e da saúde na perspectiva da justiça social. Avaliação (Campinas),  Sorocaba ,  v. 24, n. 2, p. 545-565,  out.  2019 .   Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-40772019000200545&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  20  abr.  2021.  Epub 26-Set-2019.  http://dx.doi.org/10.1590/s1414-40772019000200013.

[5] Op. cit., p. 546.

[6] Idem.

[7] Jornal Folha da Manhã. Os semblantes conhecidos. Edição de 13/06/2020; republicado em nosso blog em 20/06/2020. Disponível aqui.

[8] Le Monde Diplomatique Brasil. A pandemia e o agronegócio no Brasil. Edição nº 162, de 28/12/2020. Disponível aqui.

[9] Cf. WALLACE, Rob. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante e Igrá Kniga, 2020.

[10] Le Monde Diplomatique Brasil. A pandemia e o agronegócio no Brasil. Edição nº 162, de 28/12/2020. Disponível aqui.

[11] Idem.

[12] Rede Brasil Atual. Cármen Lúcia pede investigação contra Bolsonaro por genocídio. Edição de 13/04/2021. Disponível aqui.

[13] Idem.

[14] Jornal El País. Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”. Edição de 21/01/2021. Disponível aqui.

[15] Portal G1. No Dia do Índio, projeções no Congresso Nacional lembram indígenas mortos pela Covid-19. Edição de 19/04/2021. Disponível aqui.

[16] Le Monde Diplomatique Brasil. A frente neocolonial. Edição nº 163, de 01/02/2021. Disponível aqui.

[17] Greenpeace Brasil. Em meio à Covid, 72% do garimpo na Amazônia foi em áreas “protegidas”. Edição de 25/06/2020. Disponível aqui.