Notas sobre o
antifascismo à brasileira – parte I
“Nada
mais parecido com um fascista que um pequeno burguês assustado” – Bertold
Brecht.
Paulo Sérgio Ribeiro
Na
expressão fascismo, há uma tessitura
histórica a recomendar cautela ao observador contemporâneo, pois é grande o
risco de se perder em sua labiríntica polissemia. Por sua vez, se o antifascismo se insinua como um front em meio ao descalabro que é o
Governo Bolsonaro, é fortuito esboçar sua análise conceitual sem deixar de lado
a matéria viva na qual ela se faz possível, a saber, a situação concreta na
qual estamos metidos até o pescoço em busca de uma direção consequente.
Primeira
observação: evocar o antifascismo como forma de opor-se a Jair Bolsonaro e a
tudo que sua trajetória pública implica – sobretudo, quando vomita o
revisionismo histórico de 1964 – não é algo nascido no calor das últimas horas.
Lembremos, para ficar num só exemplo, a proibição, por parte do Tribunal
Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ), de uma faixa antifascista no
pórtico da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), em outubro
de 2018[1], para
não subestimarmos o caráter disruptivo que a denúncia do fascismo mantém após
décadas de sua gênese na Itália dos anos 1920, liderada por Benito Mussolini, o
Duce, até os estertores da Segunda
Guerra Mundial.
Mesmo
sem pretensão de realizar uma exegese do fascismo italiano, convém indagar como
aquela experiência serve de diagnóstico àqueles(as) que vislumbrem no antifascismo
um horizonte comum das lutas sociais impulsionadas pela irresponsabilidade do Executivo
Federal na gestão da crise econômica e da pandemia da Covid-19. Desde já,
livremo-nos de uma exigência tola de formalismo metodológico: provavelmente, a
maioria das pessoas que replicam em suas redes virtuais o símbolo antifascista
não tem a menor ideia do que foi o fascismo em solo europeu e isso, em si, não
chega a ser um problema para quem almeje a revitalização da esfera pública. Se
o pensamento político nada mais é do que um movimento de pensamento, não serei
eu a exigir duas cópias autenticadas no cartório oficial da cultura erudita
para quem queira fazer do antifascismo sua causa.
Para
tatear as pegadas deste monstro secular, recorro à interlocução de Eric
Hobsbawn em seu “Era dos Extremos”[2].
Tal escolha, por certo, não o toma por obra definitiva sobre o fascismo[3],
mas tão somente como uma referência oportuna para desatar alguns nós górdios do
que venha a ser o seu contraponto entre nós, brasileiros(as), diante da agenda de
reformas que se desenrola sob o bolsonarismo sem, todavia, estar reduzida a ele.
O monstro a que aludimos releva-se, em chave psicanalítica, como a
irracionalidade humana latente que engendra um movimento cíclico de
repressão-rebelião-restauração que, em cada época, adquire fisionomia própria.
Na
época focalizada por Hobsbawn, as três primeiras décadas do século XX, malgrado
o mundo já ter testemunhado sua Primeira Grande Guerra, a “civilização liberal”
ainda parecia um futuro promissor para um seleto grupo de Estados independentes
organizados em torno de valores antitéticos aos regimes de força. Mais do que
um arranjo institucional, tratava-se de uma cultura política herdeira do
Iluminismo, na medida em que seus principais atributos – governo constitucional
com representantes livremente eleitos e submetidos ao domínio da lei; e
liberdades civis asseguradas aos cidadãos enquanto um conjunto de direitos
sustentado pelo aprendizado coletivo sobre a dignidade da “pessoa humana” –
eram tributários de uma noção difusa de melhoria do gênero humano – o reluzente
progresso – a ser informada cada vez
mais pelo debate público mediado pela educação e pela ciência.
Desnecessário
dizer que a antessala desse (frágil) triunfo da civilização burguesa correspondia
à existência de domínios coloniais, sem, claro, esquecermos de alguns poucos Estados
que consistiam em verdadeiras autocracias. Contudo, no Ocidente, um vendaval
autoritário destronaria as crenças coletivas da modernidade oitocentista que mostrava
ainda vigor sob aquele verniz civilizatório: se, como aponta Hobsbawn[4],
antes da Marcha sobre Roma (1922), contavam-se mais de 60 Estados independentes
nos continentes europeu e americano que, com maior ou menor consistência,
poder-se-iam chamar de democracias liberais, em 1944, pouco mais de dez Estados
persistiriam com tais regimes políticos.
O
declínio do liberalismo ocorria pari
passu com o ensaio geral de uma nova conflagração entre potências
imperialistas. Não obstante, salienta Hobsbawn[5], a
ameaça às instituições que o espelhavam vinha apenas da direita política. A
contar com as teses estapafúrdias (e nem por isso menos eficazes na “guerra
híbrida” em que estamos) de uma extrema-direita hiperativa nas redes virtuais,
não surpreende que a regressão operada por forças políticas de variado
matiz conservador seja atribuída, pasmem, mais uma vez ao espantalho do comunismo.
Eleger o último como o álibi da violência estrutural do capitalismo sempre foi
um ardil irresistível em um sistema socioeconômico cuja incapacidade de
produzir solidariedade social nada mais faz do que devolver àquela violência estrutural
sua nudez e crueza nos períodos de agudização das crises de acumulação
capitalista.
Na
presente década (2011-2020), mal passado o crash
de 2008, tornou-se um dado sensível para a geopolítica a rearticulação de uma
direita internacional com virulência equivalente à sua congênere que flertou
com o fascismo no entreguerras. Todavia, tal aggiornamento reacionário não parece, até prova em contrário, uma
ameaça imediata aos regimes democráticos. Ao menos, é o que sugere um
insuspeito periódico liberal, The
Economist[6],
ao divulgar (adotando critérios teóricos e metodológicos que não discutiremos
aqui) um ranking de países segundo a eficiência
ou debilidade do desempenho de suas instituições democráticas. Nele, o Brasil seria
classificável como uma “democracia imperfeita”. Sim, eu sei, soa um tanto eufemístico
para quem sobreviveu até aqui em solo brasileiro.
Perdoem
o argumento de autoridade, mas se o maior liberista
que o Brasil foi capaz de oferecer ao mundo, José Guilherme Merquior
(1941-1991), admite que nem todas as conquistas democráticas no Ocidente podem
ser tributadas às forças explicitamente liberais[7], não
haveria por que ignorar o que está em jogo na reiteração de falácias sobre aquela que
viria o grande rival delas: a revolução social, como máxima expressão da
crítica ao capital e, não menos, como veio narrativo das tradições de esquerda
em disputa por uma consciência possível.
Na
longa guerra civil europeia (1914-1945), os comunistas propriamente ditos
sempre foram minoria nos movimentos trabalhistas da maioria dos países e,
quando se mostravam suficientemente fortes e coesos, foram ou estariam na iminência
de serem massacrados. O medo de uma revolução anticapitalista era real, porém
seus potenciais agentes não estavam incondicionalmente comprometidos com esse
fim: na Rússia soviética, o movimento revolucionário além fronteiras recuaria
depois da Primeira Guerra e os movimentos social-democratas (de orientação
marxista) aceitavam sem maiores senões a democracia representativa, convertendo-se
meramente em partidos da ordem [8].
Se
houve uma segunda onda revolucionária durante e após a Segunda Guerra, ressalva
Hobsbawn, o “perigo vinha exclusivamente da direita”[9]
quanto à derrubada de governos constitucionais. Guardados os condicionantes inerentes à “Era da Catástrofe” em face da falência do
programa neoliberal no século
XXI, é razoável indagar sobre o “perigo” da nova articulação global de uma direita tentada a dobrar a aposta diante da crise de legitimação do capital, pois,
tal como no aludido cenário de guerra total, é desaconselhável esquecer que o
“rótulo ‘fascismo’ é ao mesmo tempo insuficiente mas não inteiramente
irrelevante”[10].
Se
tal advertência procede, na sequência, buscarei sumariar como
Hobsbawn tipifica as forças que punham abaixo os regimes liberal-democráticos e,
por conseguinte, contextualizar tais dinâmicas no que concerne ao antifascismo
no Brasil de Bolsonaro.
[1][1]
UOL. TRE tira faixa antifascista da UFF e
fiscais vão à UERJ; OAB acusa censura, edição de 26/10/2018. Disponível (aqui)
[2]
Cf. HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos.
O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
[3]
George Gomes Coutinho faz um excelente cotejo de outras referências igualmente
relevantes em texto derivado de sua participação, a convite do Cineclube
Marighela, como debatedor do filme “A Onda”, intitulado “Reflexões sobre o
Fascismo” (aqui).
[6]
UOL. Brasil cai em índice que mede
democracias no mundo. Edição de 22/01/2020. Disponível (aqui)
[7]
Cf. MERQUIOR, José Guilherme. O
liberalismo – antigo e moderno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p.18.
[8]
Cf. HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos.
O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 116.