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quarta-feira, 27 de maio de 2020

Do reacionarismo para a imaginação política interditada

Do reacionarismo para a imaginação política interditada


George Gomes Coutinho

 Carreatas da morte. Pessoas de verde e amarelo nas ruas e praças bradando contra medidas de distanciamento social. Berram contra governadores e prefeitos que consideram corruptos, isso a despeito de ostentarem a insígnia da invariavelmente suspeita CBF no peito. Consideram que a economia deve ser protegida übber alles como diria aquele slogan famoso. As mortes e o sofrimento são fatalidades incontornáveis do destino. “E daí?” não é mesmo?


 Buscam um remédio a todo custo. Pode ser chá de boldo ou cloroquina. Afinal, se há remédio não há razão para que as pessoas fiquem em casa. Em meio a tudo isso discursos de ódio xenofóbicos. Há um “vírus chinês” e tudo o mais que lhe seja correlato, seja o próprio povo ou o Partido Comunista, deve ser encarado com nojo, desprezo ou violência.


 Sem dúvida temos acima fragmentos da atuação da extrema-direita que grassa no Brasil da Pandemia de Covid-19. Concordando com Ribeiro da Silva Jr (aqui) há a indiscutível presença do reacionarismo ou aquilo que Lynch já chamou de “conservadorismo culturalista” com fortes tintas autoritárias e anti-liberais. Há o que podemos definir como uma extrema-direita militante, organizada e dotada de alguma clareza ideológica sobre os seus valores, ideais, elementos simbólicos e normativos que devem constituir um projeto de Brasil para este século XXI.


Mas, vamos tentar supor
 que nem todos e todas que tenham ido para as ruas protestar nestes tempos de distanciamento social estejam organicamente vinculados a um projeto autoritário e reacionário de poder. Nas eleições de 2018 conhecemos o desconcertante voto “BolsoLula” ou “LulaNaro”[1] onde a genuína busca por “melhorar a vida” fez com que parte do eleitorado fosse capaz de votar no 13 e no 17 a despeito dos debates inerentes ao cipoal ideológico. O que mobiliza este eleitorado é a aposta em obter incrementos positivos, mesmo que conjunturais, apostando no rito e consequente sucessão eleitoral como uma via para obtenção destes objetivos.


E se parte do grupo raivoso presente nas ruas simplesmente sofrer do déficit de imaginação política ante o enfrentamento, por um caminho humanista, totalizante e empático, da pandemia? E se uma imaginação política pautada pela solidariedade for interditada, combatida e até mesmo ridicularizada por determinados grupos e setores que compõe a polifonia de nossa opinião pública?


O termo imaginação política foi apresentado por Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019) ainda na década de 1960[2]. Em última instância ele localizava, desde 1822, um conjunto de autores, temáticas e obras onde o Brasil era imaginado em suas instituições, políticas, modelos de governo, processos de auto-compreensão, etc.. Enfim, produção espiritual que não se pode enquadrar propriamente como articulação teórica sistemática, mas, animava e anima os debates e ações políticas concretas. São as articulações de nossa cultura política que segue dos panfletos ao que podemos chamar de “obras fundadoras”[3] do nosso processo de nation state building. Produtos culturais de origem diversa que alimentam nossa opinião pública.


Também é dado no campo da imaginação política o repertório do debate onde o possível se apresenta. E o impossível também.


É importante notar que parte dos grupos que vão para as ruas em plena pandemia protestar contra as medidas de distanciamento recomendadas pela Organização Mundial de Saúde talvez façam desta forma por simplesmente não vislumbrarem outra alternativa. Para ser mais preciso, não lhes foi dada uma alternativa concreta e segura para a manutenção de sua própria sobrevivência. Seja enquanto política pública ou por conta de um debate político interditado.


 A imaginação política acerca das políticas sociais e assistenciais por parte dos setores dos dois lados do espectro político sempre foi crítica. Não seria diferente em nossa conjuntura, por mais chocante que possa soar. Estes do lado destro[4] da política brasileira são os grupos que se encontram atuando no Governo Federal e em outros níveis de governo, em parte do mainstream da imprensa em jornais, revistas e TV. Também encontram representantes em associações empresariais, no setor financeiro, dentre economistas profissionais, etc.. Para estes qualquer ação remotamente dotada de natureza redistributivista é vista em perspectivas diferenciadas que se complementam em termos práticos: desde reduzidas a um mínimo constrangedor sob o argumento da racionalização fiscalista, o tal cobertor curto, até serem combatidas por gerarem um suposto desincentivo ao trabalho. Por vezes políticas sociais e assistenciais são até mesmo satanizadas e seus usuários estigmatizados.


Estas disposições que explicam parte da constelação que forma a nossa opinião pública ajudam a entender o caminho acidentado de nossa Renda Básica Emergencial. Primeiramente sequer era algo concebível. Depois se apresentou em sua faceta esquálida, os famosos R$ 200,00  da equipe de Paulo Guedes. Por fim, após os já tradicionais e persistentes embates entre legislativo e executivo no Governo Bolsonaro, chegamos aos R$ 600,00 em 3 parcelas mensais, algo  que ainda não soluciona a questão.


O design da política pública foi feito para repelir os setores mais vulnerabilizados da sociedade: 1) aqueles que não detém cidadania formal no mercado (não são portadores de cidadania bancária digamos assim); 2) não detém a documentação necessária (não são reconhecidos formalmente pelo Estado); 3) não são “nativos digitais” (apresentam todas as dificuldades formais e concretas para que obtenham uma cidadania digital plena). Por conta dos motivos elencados há o risco de termos 7,4 milhões brasileiros elegíveis para este política pública sem qualquer cobertura[5]. Uma tragédia.


Dificuldades não menos relevantes podem ser indicadas quando falamos de micro e pequenos empresários que não raro constituem a fauna das tais carreatas da morte. Grupos que não tem caixa para aguentarem os meses de distanciamento social sem o auxílio de algum tipo de linha de crédito que lhes permita, sob 0% de juros ou taxas similares, manterem seus negócios e os empregos agregados. Na ausência de uma efetiva política de crédito temos as alternativas que envolvem dilapidar patrimônio, demissões, falências, etc. justamente de fatia do empresariado que emprega trabalhadores formais e informais em grande monta. Mas, Guedes foi enfático na reunião de abril, a tal reunião de horrores, onde afirmou: “Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas[6]. Neste caso temos a demonstração de como funciona a imaginação política de indivíduos e grupos mais próximos ao “andar de cima” da sociedade brasileira.


Em ambos os casos, seja nas expressões de nossa imaginação política que criminalizam políticas sociais ou assistenciais ou na preferência claramente expressa em prol do grande empresariado em detrimento de micros e pequenos, temos a interdição da solidariedade. É uma imaginação política que inviabiliza, até repele, qualquer tipo de medida de Welfare, de Bem-Estar Social. Seja por conta de um repertório supostamente racionalizante ou no campo semântico que considera políticas sociais, assistenciais ou até mesmo políticas econômicas para pequenos empresários simplesmente uma baboseira.


Não é simples. Mas, inserir mecanismos de solidariedade que envolvam práticas concretizadas em politicas públicas é  parte do exercício de imaginação política que diga que tipo de Estado-Nação queremos durante e após pandemia. É tarefa urgente e civilizatória para o Brasil. Talvez seja um dos caminhos possíveis para honrarmos o sofrimento coletivo que estamos vivenciando, incluso milhares de mortes desnecessárias, onde a imaginação política interditada simplesmente se demonstrou insuficiente para lidar com esta conjuntura.



[1] Mais detalhes podem ser obtidos na seguinte matéria da BBC Brasil: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45323102

[2] “A imaginação político-social brasileira” de 1967 publicado na revista Dados. O texto encontra-se disponível aqui: https://drive.google.com/file/d/1JZ11NqfUItw-VXAxI_McsROG734QxPcM/edit

[3] Sobre estas oportunamente Lynch nos questiona se não cabe considerarmos as mesmas como produção teórica: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582013000400001

[4] As criticas de parte do campo da extrema esquerda e da esquerda propriamente são de outro teor, o que envolve, dentre outros apontamentos, o esmaecimento da luta de classes. Não irei entrar nos meandros desta crítica neste momento pelo simples fato de que estes grupos não se encontram com instrumentos de tomada de decisão na conjuntura ao ponto de serem óbices ao enfrentamento adequado da pandemia em suas consequências sociais e econômicas.

[5] Dados do Centro de Estudos da Metrópole. É possível acessar as análises visitando o seguinte link: http://agencia.fapesp.br/pesquisa-apresenta-o-perfil-dos-elegiveis-para-receber-a-renda-basica-emergencial/33220/

[6] A transcrição da reunião ministerial de 22/04/2020 pode ser acessada aqui: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/leia-integra-da-transcricao-do-video-da-reuniao-ministerial-de-22-de-abril-entre-bolsonaro-e-ministros.ghtml



segunda-feira, 6 de julho de 2015

Mal-estar cotidiano e a ausência de projetos estruturais na (semi)periferia

Mal-estar cotidiano e a ausência de projetos estruturais na (semi)periferia



            Nos dias que correm no Brasil é compartilhado um mal estar coletivo palpável. Não que este sentimento seja exatamente uma novidade na modernidade. Sigmund Freud em seu “Mal-estar da civilização”, texto datado de 1929, apontava o caráter paradoxal do progresso material, embora desigualmente distribuído pela própria estrutura inerente da sociedade, e uma sensação de fastio, melancolia, desamparo, etc.. Porém, nos cabe calibrar esta questão em termos históricos e contextuais.  Freud escrevia na Europa central, nos arredores da falência financeira desencadeada pelo colapso da Bolsa de Nova Yorque, um tanto perplexo com a convivência concreta do avanço da ciência e o que Jürgen Habermas chamaria posteriormente no final do mesmo século de “promessas não cumpridas do iluminismo”[i]. Em verdade, o que o chamado “pai da psicanálise” assinalou foi a constatação de que novos modos de viver produzem novas formas de sofrimento, dado que o objeto de análise  freudiana era nada menos que a falência da sociedade tradicional e a substituição desta por uma modernidade sempre a se construir. O sofrimento de Sísifo se atualizaria historicamente na chave menos ensolarada da interpretação da sociedade, tal como Adorno e Horkheimer procuraram igualmente demonstrar[ii].

            Retomando ao Brasil e particularizando este sofrimento, que não é um privilégio verde-amarelo e detém suas facetas singulares entre nossas fronteiras, é edificada a “sociedade de condomínio”, tão bem retratada por Christian Dunker[iii]. Esta sociedade de condomínio, falarei em termos bastante sumários, projeta uma forma de sociabilidade especial dotada, por um lado, na centralidade do consumo e uma (re)feudalização do espaço urbano.  O consumo como projeto de realização existencial, como se pode supor, não tem redundado em uma reflexividade mais robusta e avançada. De outro lado, a  (re)feudalização do espaço apenas torna mais aguda a separação dos desiguais envolvendo a apartação de formas de viver até fisicamente. Disto redundamos na ignorância mútua dos agentes e um empobrecimento discursivo/subjetivo importante, percepção somente amplificada pelo acompanhamento cotidiano das redes sociais.

            Nesse ínterim, tentando observar diretamente nossa conjuntura política nacional, a sensação de desconforto é persistente. Se por um lado não é injusto declarar que a esquerda não conseguiu construir um projeto interpretativo e programático suficientemente eficaz para os desafios de uma realidade (semi)periférica como a nossa[iv], por outro lado, a direita também aparentemente não tem conseguido fazê-lo. Em verdade, salvo soluções autoritárias de curtíssimo prazo, onde se produz uma sensação de segurança a partir do medo, a direita aparentemente fracassou entre nós em toda a nossa história. A esquerda, uma alternativa histórica suprimida por quase todo o século XX, falha miseravelmente em nossa conjuntura.

Neste vácuo de imaginação estrutural, até o presente momento parte dos debates que mais tem seduzido a chamada “opinião pública”, a despeito desta existir ou não[v], tem se centrado em “pautas de questão única”. Na literatura dos mecanismos de explicação dos gatilhos da ação coletiva, as chamadas “pautas de questão única”, envolvendo agentes específicos como o movimento LGBT, grupos étnicos e a “difusa agenda ambiental”, se tentam produzir avanços civilizatórios fundamentais, por outro lado, apenas de forma tangencial se defrontam com uma agenda estrutural. As vitórias neste sentido são vitórias de Pirro. Necessárias, decerto, porém insuficientes sem um projeto de sociedade que as torne sólidas e duradouras.

            Ainda, em nossa conjuntura, onde há um discurso combativo sistemático de enfrentamento das forças progressistas, seja criminalizando-as ou simplesmente tornando seu conteúdo reivindicatório objeto de ridicularização, soluções falseadas, não por acaso, tem pipocado e se alastrado mais que “chuchu na serra”. Justamente a pauta conservadora tem se construído a partir de “questões únicas”: a redução da maioridade penal como encaminhamento desejável e solução para a violência estrutural; o resfriamento dos avanços simbólicos e jurídicos que protegem agrupamentos étnicos ou LGBT; a destruição sem tréguas do Partido dos Trabalhadores como remédio para os males da política formal.

            Progressistas e conservadores, assim, armam seus grupos de forma mais similar do que pode supor nossa vã filosofia. Em paralelo, nosso projeto coletivo paradoxal  e realmente existente de “social rentismo” prossegue e preguiçosamente todos recusamos a pensar soluções complexas e estruturais para problemas que, em última instância, são da mesma natureza.  Talvez a reflexão de Marcos Nobre que nos convida a “Pensar o Brasil”[vi] faça todo sentido nos dias que correm. Ainda, intuitivamente arrisco afirmar que se não há “solução mágica”, o retorno das propostas estruturais, que envolvem modelar novos projetos de sociedade, se não elimina o mal-estar inerente, nos permite reabilitar uma esperança secularizada. Não mais e não menos.

George Gomes Coutinho




[i] HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo, Martins Fontes, 2002.

[ii] ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

[iii] DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.

[iv] Neste sentido que interpreto o mote de Wanderley Guilherme dos Santos postado em seu blog: “CHEGA DE TRANSFORMAR O MUND0; É INDISPENSÁVEL INTERPRETÁ-LO!”. Disponível em: http://insightnet.com.br/segundaopiniao/?p=100

[v] Bourdieu em seu texto clássico “A opinião pública não existe”. O texto, ácido e implacável, encontra-se disponível em formato PDF. Eis aqui um dos possíveis links de acesso: http://pt.scribd.com/doc/72698331/A-opiniao-publica-nao-existe-Pierre-Bourdieu

[vi] http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002014000300097&script=sci_arttext