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domingo, 28 de junho de 2020

Covid-19: um teste à resiliência dos Estados nacionais? (parte 2)


                            
                                                                                                                                                                        Fonte: DW.

Covid-19: um teste à resiliência dos Estados nacionais? (parte 2)

Paulo Sérgio Ribeiro

No texto introdutório (aqui), reconstituímos o problema da política visto a partir da instância decisória ocupada pelo Estado moderno[1]. Nesta continuação, trataremos do que a filósofa francesa Catherine Colliot-Thélène descreve como “socialidade estatal”, uma dimensão do poder cada vez mais tensionada por formas de dominação subjacentes à “socialidade de redes”. Tais pólos conceituais permitirão indagar sobre certas contingências na reconstrução de uma agenda pública no decorrer desta pandemia.

Para Colliot-Thélène, a análise do Estado moderno sempre se viu cindida entre aqueles(as) que o veem a partir das identidades coletivas e outros(as) que o concebem como administração de bens e pessoas em relação - ora conflituosa, ora conciliatória – com outros poderes. Na filosofia política, o primeiro enfoque deita raízes na ética, enquanto o segundo – mais próximo das ciências sociais que praticamos - focaliza o Estado a partir das relações de dominação que vinculam seus cidadãos.

Essa linha divisória não é, todavia, intransponível. Para a filósofa francesa, ela permite muitas confluências, sobretudo, ao observar uma afinidade entre Hegel e Weber acerca do conceito de soberania estatal. A seu ver, não haveria mesmo como operar tal conceito divorciando ética de poder, pois se com Hegel aprendemos que o Estado dota o indivíduo de uma identidade particular ao afirmar sua “preeminência” sobre outras fontes de socialidade (família, igreja, etc.), com Weber, admitimos que a vigência do poder estatal é indissociável da crença que seus cidadãos depositam em direitos e deveres com os quais mover-se por expectativas quanto a interesses materiais e ideais legitima uma autoridade pública.

Noutros termos, avaliar as condições objetivas da soberania estatal para concretizar aspirações coletivas – por exemplo, assegurar a integridade física de uma população diante de pandemias como a do Covid-19 – é perguntar-se como o Estado produz vínculo social. Eis a chave explicativa que Colliot-Thélène nos sugere desfazendo, por um lado, algumas ilusões e sinalizando, por outro, alguns perigos reais em um futuro que, ao que tudo indica, chegou sombriamente sem avisar.  

Comecemos pelas “ilusões” ao adentrar no que venha a ser “socialidade estatal”. Àqueles que, ainda hoje, requentam a dicotomia Estado/sociedade civil do pensamento político europeu do século XIX e aludem à questão democrática sem maiores preocupações quanto ao modus operandi dos processos decisórios, Colliot-Thélène pondera que a democracia é uma relação entre governantes e governados que não só se espelha como é viabilizada pela organização e funcionamento do Estado e que a cidadania é uma modalidade de pertencimento comunitário cujo suporte é o conjunto dos serviços públicos, caso tomemos o Estado por analogia à “cidade” como lugar de destino das comunidades naturais assim expresso por Aristóteles.  

Esse pertencimento comunitário é produto da transferência para o Estado de funções e prerrogativas até então preenchidas por comunidades não-estatais, configurando uma hegemonia conquistada sobre um território que nunca é definitiva, pois, assevera a filósofa francesa, trata-se de uma relação de forças com outras formas de fidelidade coletiva que, ao contrário de um ente abstrato e impessoal como o Estado, oferecem aos habitantes daquele território formas de solidariedade mais próximas do cotidiano vivido. Ora, no Brasil contemporâneo, ainda que seja notória a promiscuidade entre o Estado e fundamentalistas cristãos que torna em letra morta a laicidade, é inegável o conflito entre tais esferas de poder quando, por exemplo, igrejas protestantes desrespeitaram frontalmente a ordem dos governos estaduais e municipais de suspender seus cultos como medida necessária e urgente para conter a pandemia da Covid-19.

Garantir a coesão social, isto é, rotinizar os vínculos de solidariedade entre milhões de almas num território, exige um mínimo de convergência em torno de uma identidade coletiva que, por sua vez, tenha por suporte o poder estatal, sobretudo, quando diante de identidades de grupo jamais suprimidas, tal poder se afirme pela capacidade de fomento da proteção social. Diante das lutas por reconhecimento jamais equacionadas pela exortação da nacionalidade, o Estado exerce sua soberania na medida em que sua gênese se confunde com a própria estruturação do campo da política ou, nas palavras de Colliot-Thélène, com a emergência de um “espaço de socialização original”:

A definição weberiana de política pode parecer altamente orientada para a esfera estreita e exclusiva do político, quer dizer, para a atividade dos homens que fazem da política sua profissão, mas permanece pertinente, parece-me, no sentido de que a política se torna uma forma específica da atividade social na medida em que se reporta ao poder de Estado. Ela não visa necessariamente dele se apoderar, no todo ou em parte, mas o pressupõe, quer dizer, pressupõe existir uma instância de poder identificável que decide em última instância os conflitos internos e externos[2].

A relativa perda da soberania dos Estados-nação é um dado, posto ser acertado que ele é cada vez mais tangido por outros poderes (blocos econômicos regionais, instituições políticas supranacionais etc.). Contudo, é duvidoso apostar ser fato consumado que o Estado, em sua dupla condição de instância de decisão e de pólo de identificação, deixe de continuar redesenhando a geopolítica. Aqui, alerta Colliot-Thélène, mora um perigo: quando múltiplos centros de decisão estabelecem lógicas de socialização independentes de quaisquer formas de identidade coletiva e sem estabelecer entre si uma hierarquia, senão uma “socialidade de redes”, despoja-se a supremacia do poder estatal (e alguns até podem se regozijar com isso), mas, não menos, desfaz-se qualquer prognóstico alentador sobre a linguagem política que teremos daí em diante.

Não se trata aqui de entronizar o status quo, mas de indagar - como provocativamente faz Colliot-Thélène – qual coletivo poderá reclamar para si o protagonismo para organizar a cidadania se esta não tem outra substância além do próprio arranjo institucional que lhe dá forma. Ora, se o Estado pode ser definido como uma abstração, dada à impessoalidade da dominação legal, constitui, através do atributo de soberania, uma “forma de poder à qual retornam essencialmente os atributos da personalidade”[3]

Decidir é um ato de vontade e este é próprio da pessoa. Ao esmaecer a ideia-força de nação em um cenário como o brasileiro em que as franquias de um Estado social esboçadas na Constituição de 88 são inviabilizadas pelo pacto intra-elites que sustenta até aqui um governo em ponto morto, resta-nos a dominação sem rosto das corporações (“o Mercado”) cujos emissários locais fazem “passar a boiada” em reformas de teor ultraliberal que dividem brasileiros(as) entre aqueles que poderão aderir à lógica privatista dos serviços da seguridade social, acesso à água etc. daqueles que estarão entregues à própria sorte em relações comunitárias desterritorializadas, isto é, sem pertencimento comunitário efetivo a um Estado que lhes proveja o “mínimo social” pelo qual todos se reconheçam como partícipes de uma mesma civilização.


[1] Prosseguimos a interlocução com Catherine Colliot-Thélène, tendo por referência seu artigo “O conceito de política posto à prova pela mundialização”, publicado pela Revista de Sociologia e Política em 1999 e disponibilizado na plataforma de periódicos científicos Scielo (aqui).
[2] Cf. COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. O conceito de política posto à prova pela mundialização. Revista de Sociologia e Política, nº 12, 1999, p.12.
[3] Ibid. ibidem.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Covid-19: um teste à resiliência dos Estados nacionais? (parte 1)

                                                                                                    Fonte: Foco Magazine (aqui).

Covid-19: um teste à resiliência dos Estados nacionais? (parte 1)

Paulo Sérgio Ribeiro

A epidemia do Covid-19 nos conduz ao debate sobre a globalização, uma expressão usual para designar uma gama de fenômenos que confere fisionomia própria à Modernidade, tendo sido popularizada há alguns anos no noticiário e estimulando desde então variadas abordagens teóricas sobre sua gênese no século XVI e desdobramentos no século XXI.

A interdependência sem precedentes dos povos, longe de ter feito do planeta um território comum, coloca-os diante de problemas inerentes à dinâmica de um mercado mundial que, entregue ao imperativos da acumulação capitalista, mostra-se incapaz de oferecer-lhes um fator de coesão, mesmo quando o que está em jogo é a sobrevivência do homo sapiens.

Longe de me fazer “apocalíptico”, é realmente perturbador enxergar os limites estreitos dos esforços empregados pelos Estados nacionais para salvaguardar pessoas quando deparamos com um cenário crítico para a saúde coletiva que atravessa fronteiras, quiçá, com velocidade tão vertiginosa quanto a das transações full time no mercado financeiro.

Contudo, é uma questão em aberto a resiliência do Estado nacional face às consequências imprevisíveis de uma modernidade que, paradoxalmente, sedimentou aquela relação de dominação; consequências as quais, como bem apontou George Gomes Coutinho em seu último texto (aqui), tendem a se intensificar com a sociedade de risco, esta prima facie do processo de globalização.

A perspectiva aqui adotada é fruto da interlocução com a filósofa francesa Catherine Colliot-Thélène, notadamente em seu artigo “O conceito de política posto à prova pela mundialização”[1], disponível na plataforma Scielo (aqui). Quais coordenadas analíticas Colliot-Thélène nos dispõe? Se as seguirmos, qual seria a localização da política e suas potenciais virtualidades quando se exige dos Estados nacionais o cumprimento de certas prerrogativas dentro de uma situação-limite como a que vivemos?

Em um momento que antecedera em quase uma década o crash de 2008, Colliot-Thélène indicava a crise de legitimidade dos regimes políticos ocidentais como sintomática do declínio de uma figura histórica determinada: o Estado Bem-Estar Social, que tomara corpo no pós-guerra e, por seu turno, indaga se a incapacidade de manter o escopo de sua política social pode ou não ser derivada de uma “transformação mais fundamental”[2], a saber, o deslocamento das instâncias de decisão para além de uma esfera do poder em torno da qual se articulava o conceito de política em sua acepção moderna: a soberania estatal.

Àqueles que decretam a perda de soberania dos Estados no atual estágio do processo de globalização, Colliot-Thélène faz duas ponderações. A primeira, de natureza factual: ainda que vigorem instâncias políticas e econômicas supranacionais (ONU, FMI entre outros) com poder de influência sobre a política interna dos países, não há necessariamente uma transferência de competências típicas dos Estados nacionais a novos poderes políticos, sejam estes regionais, supranacionais ou transnacionais.

Não obstante, ressalva a filósofa, ratificar tais competências ou funções estatais como insubstituíveis per se pouco ou nada diz sobre o atributo de soberania do poder estatal, considerando que este torna-se efetivo em sua dimensão propriamente simbólica: a integração e coesão sociais dentro de um território, antes de serem asseguradas pela coerção estatal pura e simples (poder de polícia), dependem de um senso de pertencimento a uma comunidade cuja orientação normativa seja a igualdade de direitos ou, simplesmente, de uma “identidade cidadã”.

A segunda ponderação é teórica e nos permite compreender como se constrói tal senso de pertencimento e, sobretudo, as prováveis implicações da sua corrosão. É instigante o modo como Colliot-Thélène se antecipa a um eventual rótulo de “estatólatra”. A seu ver, a centralidade do poder conferida por Weber à definição de política (um fio condutor de sua análise) não desmente a complexidade do espaço público – as disputas de narrativa em foros de opinião pública que pautam a ordem do dia - e o papel construtivo das lutas sociais – a participação organizada ou voluntarista das massas na resistência às decisões governamentais – como linhas demarcatórias da ação estatal.

Colliot-Thélène lembra-nos apenas o que nem sempre é tão óbvio assim: o Estado continua sendo uma instância de decisão, na medida em que possui a capacidade de organizar a política ao intervir nas redes de sociabilidade, as regulando e hierarquizando, ou, dito de outro modo, porque dele se exige tal capacidade quando “interpelado por indivíduos, grupos e coletivos, permanentes ou provisórios, que o fazem destinatário de seus protestos e reivindicações”[3]. Ora, até mesmo nossos liberais dublês de revisionistas, que flertam com o keynesianismo em seus prognósticos sobre a débacle econômica no Brasil, o confirmam.

Parafraseando Sigmund Freud[4], qual será o futuro desta formidável abstração chamada Estado moderno e qual a pertinência de responder a isso em uma época de tantas incertezas sob o espectro do Covid-19? Na segunda parte do texto, prossigo o diálogo com Colliot-Thélène, delineando, para os nossos próprios fins, aquilo que a filósofa francesa sinaliza como uma tensão entre a “socialidade estatal” e os processos sem sujeitos que defrontam a política com o beijo de morte da globalização.


[1] Cf. COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. O conceito de política posto à prova pela mundialização. Revista de Sociologia e Política, nº 12, 1999, pp.7-20.
[2] Op. cit., p. 8.
[3] Ibid., p. 10.
[4] FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. In: _______. Freud. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.85-128 (Coleção “Os Pensadores”).