Mostrando postagens com marcador violência de gênero. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador violência de gênero. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Feminicídio: até quando seguiremos assistindo essa violência?

Feminicídio: até quando seguiremos assistindo essa violência?*

* Publicado originalmente em Brasil de Fato.

Luciane Silva** & Michely Lazarini**

No mesmo dia de junho de 2021, duas mulheres foram atingidas na cidade de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro, por homens com uso de armas brancas. Uma delas, foi atingida e assassinada em uma praça de alimentação de um shopping em seu horário de almoço. Jovem como seu assassino, buscava em um curso de enfermagem o mesmo que outras milhares de mulheres: qualificação.

Ao longo dos últimos anos temos produzido matérias, lives, textos, manifestos sobre o feminicídio. E ao revisar este material, era obrigatório pensar qual contribuição pode ser dada em um novo texto. Já falamos de socialização de meninas (e como se aprende o que é azul e o que é rosa), já falamos da violação de mulheres, da rede de pedofilia em Guarus, do levante feito por mulheres com o "Ele Não!" em 2018.

E de lá para cá todos os dossiês, institutos de pesquisas, dados de delegacia e manchetes de jornais, mostram o aumento de casos de morte de mulheres - tipificado como feminicídio desde 2015, sob a lei 13.104/2015 que altera o Código Penal. 

Servir-se da ciência em tempos de negacionismo é ir além do que já foi pontuado sobre o comportamento masculino. E mais, contrariar aquilo que muitas vezes é apresentado como explicação científica mas em nada coopera para compreender o fenômeno do aumento e da banalização da morte de mulheres.

Ao fazermos uma busca pelo termo “facada” na tentativa de compreender sua ocorrência, encontramos mais de 300 casos recentes espalhados pelo país. Novo Hamburgo, Belo Horizonte, Ribeirão Preto, Taguatinga, Campos dos Goytacazes, em pequenas, médias e grandes cidades do Brasil. O discurso de ódio se intensificou desde 2018 e precisamos ler o pesquisador alemão Theodor Adorno e sua produção sobre a personalidade fascista para entender as relações entre capitalismo, psicanálise e frustração.

Vamos apresentar esta discussão a partir de pontos que podem ser avaliadas pelos leitores:

- O uso de armas brancas e outros instrumentos domésticos é feito com emprego de crueldade contra a vítima. Desfigurar, mutilar após a morte arrancando pedaços do corpo, violar sexualmente, todos estes atos são parte do assassinato. Em um caso recente, ocorrido no Distrito Federal, o ex-namorado confessou à polícia ter permanecido no apartamento “vendo a vítima agonizar, gemer e gesticular”;

- É comum a alegação de que “nunca pensamos que isto irá ocorrer conosco”. Mas em uma pesquisa nas redes sociais de vítimas e analisando reportagens recentes, é possível encontrar casos que se entrelaçam, mulheres pesquisando ou militando pelo direito à vida que acabam assassinadas por motivos fúteis em via pública;

- Não são raros os casos em que um assalto se transforma em estupro e feminicídio. Em um caso recente, a servidora pública de 49 anos, Luciana de Mello, termina seu relacionamento ao saber da morte de Letícia Curado de 26 anos (ela passa a refletir sobre a natureza abusiva de seu relacionamento). O assassino de Letícia, confessa ter assassinado também Genir Pereira de Souza, no mesmo ano, na mesma cidade;

- A presença de filhos pequenos é uma variável importante a ser observada pois agrava a pena. Em um dos casos, a vítima foi jogada em um poço na frente do filho de oito anos de idade. Em outro caso, em Ribeirão Preto, ocorreu um feminicídio triplo. Não só a morte de uma mulher de 41 anos mas de suas duas filhas; 

- As acusações variam de traição até reclamações na volta de um bar. Recentemente uma mulher de 40 anos foi morta por discussão no Final da Copa Libertadores. Ele era corintiano e ela palmeirense. O casal tinha filhos gêmeos.

Em primeiro lugar, a idade dos envolvidos em casos recentes de feminicídio. Se estamos discutindo gênero e alguns alegam que estes são comportamentos de outra geração, o que vimos no caso do shopping de Niterói foi um jovem de 21 anos assassinar sua colega por recusar uma oferta de paixão. Esse caso aciona um sinal vermelho para as formas de socialização não apenas nas escolas mas em família, trabalho e círculo de amigos.

Em segundo lugar, toda a construção midiática das mulheres segue transformando seu corpo em objeto de consumo e erotização. Em sites adultos, esta erotização vem acompanhada de violência e frequentemente de submissão. A centralidade da propriedade sobre o corpo feminino segue sendo a principal forma de construção da masculinidade?

Precisamos discutir a forma de acesso destes adolescentes à pornografia e como eles imaginam que deva ser uma relação com outra mulher. Tão cedo já vemos um comportamento padrão: esperar meninas de 15 anos na frente da escola, afastá-las dos amigos e família, tudo isto, embora conhecido, continua sendo aceito e justificado. 

Os “surtos” de violência seguidos de pedidos de desculpa que instauram um ciclo cujo desfecho tem se tornado muito frequente. Bater com a cabeça da namorada contra a parede, impedir sua saída, trancar portas, forçar relações sexuais, produzir hematomas, deixar alguma marca permanente como lembrança e ameaça. Atos presentes em relacionamentos abusivos.

Em terceiro lugar, temos lido sobre transtornos, bipolaridade, esquizofrenia e comportamento na área de psicologia. É possível ir além:  é um erro patologizar o assassino como um homem com problemas psíquicos. Não só porque esta forma de matar mulheres é um fato social (e é objeto da sociologia a considerar a alteração recente do número de mortes) mas também porque banaliza a psicologia e o tipo de sofrimento que esta ciência trata em seus conteúdos.

Não estamos falando de nenhuma doença ou anomalia em 70% dos casos. Estamos falando de uma relação entre indivíduo e sociedade e não de um desvio biológico ou algo semelhante às teorias lombrosianas do século XIX. 

Para concluir, até que possamos enfrentar com seriedade o assédio cotidiano nas escolas, universidades, bancos, casas de família, delegacias, quartéis, igrejas, bares, enfim. Até que façamos algo que coloque limites as formas de assédio, não teremos qualquer avanço no combate ao feminicídio.

São dois fenômenos intensamente conectados. Precisamos de políticas públicas, redes de assistência, alteração da forma midiática de tratar o feminicídio. O que não precisamos é da insensibilidade e do ódio que culpam a vítima pela violência sofrida.

** Pesquisadoras do Núcleo Cidade, Cultura e Conflito da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Jojo Toddynho é apenas uma menina


Fonte: Gazeta.

Jojo Toddynho é apenas uma menina

 

Renata Saul*

 

Dia desses, eu estava em alguma rede social e, sabe Deus por quê, deparei-me com um vídeo em que a cantora de funk Jojo Toddynho declarava seu amor a um filme infantil chamado “O mistério de Feiurinha”. Eu sorri com a alegria da cantora e procurei alguns vídeos sobre ela.

Nascida em 11 de fevereiro de 1997, Jordana Gleise de Jesus Menezes tem 23 anos. Jojo Toddynho é uma menina.

Outra coisa que me chamou atenção foi a linguagem corporal de Jojo Toddynho nos vídeos. Confesso não ser especialista no tema, mas sou observadora, mulher negra e queria compartilhar algumas ponderações.

A menina Jojo anda sempre com a cabeça extremamente erguida e não no sentido figurado, aquele da metáfora da dignidade (coisa que ela demonstra ter), mas como se perguntasse: “Algum problema?”. Ombros para trás, externo muito projetado. Jojo Toddynho é negra, veio das classes menos favorecidas e é gorda. Ela precisou ser uma “afronta” para que não a atropelassem constantemente. A postura corporal é a de um corpo que está em constante alerta, pronto para se defender, pois o ataque virá.

         Toda mulher sabe o que é sofrer pressão estética, como é ser constantemente questionada em suas atividades e até mesmo silenciada em razão do gênero. No caso da Jojo, agregue ainda a questão da classe social e da cor. As estatísticas no Brasil provam que ser mulher negra no Brasil é um eterno combate.

         Há entre nós o seguinte ditado: “A branca para casar, a mulata para fornicar e a preta para trabalhar”. Como se não bastasse o racismo, a objetificação da mulher, o ditado explicita o nosso tipo de racismo, alicerçado nos fenótipos (quanto mais características negróides, mais discriminação e racismo se sofre). Nesse ditado, a mulher branca “ganha” o status do título, da mulher casada, da que é apresentada à família, a que tem o direito ao matrimônio – gerar filhos para que o homem possa ter a quem entregar seu patrimônio, seu sobrenome. À mulata, palavra que tem origem no termo mula (animal híbrido, incapaz de gerar), cabe o papel da hipersexualização: não será apresentada à família. Por fim, temos a negra do último tom de pele: esta ainda luta para ser humanizada, já que, no ditado popular, não tem direito à afetividade ou à sexualidade: é ferramenta de trabalho. Jojo Toddynho é uma menina e é um “tiro, que samba e desfila com as amigas”, como diz sua música. Jojo é protagonista de sua história, mas ainda é apenas uma menina.

 

* Mestra em Cognição e Linguagem, Socióloga, Professora de Sociologia, Docente na rede municipal de educação básica de Campos dos Goytacazes-RJ e, não menos importante, neta de Dona Lourdes.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Cultura do estupro e o caso das "meninas de Guarus"?

                                                                                                            Fonte: Revista Galileu (aqui)

Cultura do estupro e o caso das "meninas de Guarus"?*

 

Publicado originalmente em Brasil de Fato (aqui).

        

Luciane Soares da Silva**

 

Em uma noite de sábado do ano de 2016, debatíamos o filme "As Sufragistas" lançado no ano anterior. No momento em que discutíamos o direito ao aborto, uma das convidadas lançou a seguinte questão: “e o caso das meninas de Guarus?". 


Minha resposta refletiu a condição de uma estrangeira que chegara em 2010 e sabia pouco sobre os fatos: “como alguém que não é de Campos dos Goytacazes (RJ), eu pergunto à essa plateia se alguém aqui presente não sabia o que acontecia, não sabia do caso dessas meninas?”.


Em 2018, conversando com uma juíza na capital, soube da complicada situação de que 17 juízes de Campos se declararam impedidos de atuar no caso. E isto revela muito sobre o judiciário brasileiro, sobre o caso Mari Ferrer, sobre o caso Robinho e seu problema com o movimento feminista. Sobre o cotidiano de violações, mortes e injustiças sofridas por mulheres no país. 


Estou trabalhando neste texto desde o início de ano. A dificuldade na finalização dele ocorre pelo conteúdo encontrado, pelo medo em relação ao que o caso explicita e principalmente, pela impunidade posta em tela com o fato de que vários envolvidos estão em liberdade a atuantes na sociedade civil local. 


Na memória da população campista, o caso mostrou exatamente a diferença entre o poder e a condição de mulheres e crianças que são objeto de cruel desumanidade de agentes públicos, comerciantes, empresários, policiais. Figuras que suspendem a lei e agem em redes de associação que não poderiam receber outra classificação que não associações criminosas. 

 

O caso

 

Em resumo, na cidade de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, em 2009, a Polícia Civil descobriu um ponto de exploração sexual em um hotel - que funcionava na verdade como um motel. No estabelecimento eram mantidas crianças e adolescentes entre 8 e 17 anos de idade. Escravizadas, viciadas e levadas ao cativeiro. Depoimentos coletados à época dão conta de dois homicídios e ocultação de cadáver. 


Essas meninas eram obrigadas a fazer uso de cocaína até que seu nariz sangrasse. Eram trancafiadas e retiradas do cárcere somente para programas em sítios, casas e hotéis da cidade. Levadas a festas com mais de 40 homens para realização de programas. Eram vigiadas por homens extremamente violentos que não teriam receio em levá-las até a morte para impor o terror. Sumir com corpos infantis não parecia um problema.


Levadas de um lado para o outro. Diariamente dopadas, desmaiadas e mesmo assim, abusadas. Seus serviços eram oferecidos nos classificados de jornais locais e contratados inclusive, por homens em passagem pela cidade. Homens com a tatuagem da família no braço. Meninas do Espírito Santo, de Minas Gerais, de Custodópolis. E “clientes” que ignoravam o inferno vivido pelo grupo de crianças residindo em uma casa com portas e janelas trancadas com cadeados.


Programas pagos de todas as formas, até com material de construção ao agenciador que seguia aumentando domínio e patrimônio. Donos de lojas e supermercados também contratavam os programas. Entravam e saíam de hotéis sem nenhum registro na portaria (ao que parece, caso necessário, telefones para programas eram fornecidos nestes estabelecimentos).

 

Investigações

 

Em 28 de agosto de 2013, a ex-vereadora Odisseia Carvalho (PT) compareceu à Câmara dos Deputados para depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a apurar denúncias de turismo sexual e exploração sexual de crianças e adolescentes, presidida pela deputada Erica Kokay (PT).


A transcrição de 42 páginas apresentava o caso que ficaria conhecido nacionalmente como “Meninas de Guarus”.  A sessão tratava de acusação “acerca de denúncias que atestam duplo homicídio, utilização de drogas e, ao mesmo tempo, cárcere privado, em função de uma rede de exploração sexual que existe – ou existia – nesse município”. Na sessão ainda estavam presentes os então deputados e deputadas, Keiko Ota (PSB), Antonia Lúcia (PSC), Jean Wyllys (Psol) e a relatora, deputada Liliam Sá (PROS). 


Essa rede de pedofilia operava, por óbvio, com colaborações múltiplas para manutenção dessas meninas em situação de cárcere privado. Sequer era conhecido naquele momento o paradeiro das mesmas após uma denúncia feita ao Conselho Tutelar por uma declarante de paradeiro igualmente desconhecido. O medo da denúncia corresponde ao lugar social dos envolvidos. Policiais, políticos conhecidos, figuras públicas locais. 


Importante informar que Guarus é uma região de Campos com alta densidade populacional, onde residem negros e negras, em condições sociais populares ou na linha da pobreza. Regiões com presença de conflitos urbanos constantes motivados principalmente pelas disputas do tráfico de drogas.


Ao mesmo tempo, grande parte da força de trabalho da cidade desloca-se diariamente desses bairros para os setores mais variados, do comércio às instituições de ensino, e trabalho doméstico. Embora o caso tenha ficado conhecido como "Meninas de Guarus", também estavam envolvidas meninas de outros estados, como o Espírito Santo. 


A relatora, deputada Liliam Sá, apresentou em sessão a mesma dúvida que eu apresentaria alguns anos mais tarde naquele debate: “por que o sigilo e por que abafaram o caso dentro do município? É isso que nós queremos entender: se foi uma coisa notória, se o próprio Conselho Tutelar disse que há mais de 600 casos notificados de pedofilia no município de Campos dos Goytacazes”.


O fato é que esse acobertamento tinha base no estranho desaparecimento de registros fundamentais para investigação. E ainda em decorrência de depoimentos prestados à alguns policiais, existiriam atos de extorsão quando o nome de empresários locais começaram a aparecer. Em resumo, chantagem por um lado e ameaça de esquartejamento dos filhos, caso a quadrilha fosse denunciada, por outro. O medo é compreensível. 


Durante as investigações, o fechamento de uma casa de shows, do filho de uma importante figura pública na política local, ilustraria bem o quanto a rede era estruturada. Em documentos consultados, o local era utilizado para venda de drogas e proporcionava situações de exploração sexual. Um dos indiciados, que teria machucado gravemente uma das meninas, tinha cargo de confiança no governo municipal.


No cativeiro eram mantidas meninas e meninos. Ao voltar ao número de casos, a relatora Liliam Sá, demonstrara estarrecimento pelo fato de em uma cidade com 480 mil habitantes, existirem registros que informavam 600 casos de pedofilia. Erika Kokay observara que o desaparecimento da denunciante e de sua família, os recorrentes abusos sem efetiva resolução, mostravam os efeitos da impunidade: a naturalização do crime e o temor. 


A CPI da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes teria vindo ao Rio de Janeiro para cobrar um posicionamento das autoridades. Pelo então prefeito do Rio, Eduardo Paes (DEM), sequer foi recebida. As reivindicações foram apresentadas ao vice-governador. Nenhuma iniciativa concreta foi tomada. Ou seja, um delegado transferido, um Ministério Público omisso, executivo e grande parte do legislativo local acovardados (além é claro, de alguns cúmplices).


O fato de alegações chegarem a vereadores de Campos, como o publicamente citado Nelson Nahim (PSD), e parte da Câmara de Vereadores posicionar-se afirmando que as alegações não eram verdadeiras, colabora para entendermos como esta rede das “ Meninas de Guarus” entranhava-se em todos os níveis da sociedade campista. Na política, na economia, na justiça.


Em novembro de 2009 o vereador Nelson Nahim declarava publicamente que “alguém poderia estar se passando por ele”. Em dezembro de 2009 o senador e presidente da CPI da pedofilia, Magno Malta (Golpista) (PR/ES) declarava em rede nacional, no programa do Datena, que iria a Campos. Apuraria com sua vinda, a rede de pedofilia na cidade. Em 2012, o caso amargava um solene silêncio.


Em março de 2013, em decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STF), Leílson, o único preso até então, foi inocentado da acusação. Na audiência pública realizada em maio daquele ano, em Campos, com a ida de deputados da Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj) à cidade, presidida pelo então presidente da Comissão de Direitos Humanos, Marcelo Freixo (Psol), não havia nenhum representante do Ministério Público. O que causou estranheza aos presentes, pela gravidade do caso. 

 

Violação estrutural

 

A rede de exploração sexual tratada pela CPI na Câmara de Deputados, em 2013, ainda ressaltava o envolvimento de políticos no Amazonas e em Santa Catarina. Outras cidades, outras pessoas, as mesmas formas de exploração.


Em 2016, o STF concedeu o benefício da liberdade a seis acusados. Entre os nomes divulgados estão Gustavo Ribeiro Monteiro, Renato Pinheiro, o ex-vereador Marcos Alexandre dos Santos Ferreira e Cleber Rocha da Silva. Os internos cumpriam pena na Penitenciária Bandeira Stampa, em Bangu, no Rio.


Os casos de estupro, abuso sexual de crianças e morte de mulheres seguem como indicadores desse quadro de violação cotidiana. Em 1976, Ângela Diniz fora assassinada com 4 tiros de pistola por Doca Street em Búzios, no Rio. Ele não aceitava o fim do relacionamento que começara três meses antes. No julgamento, a defesa de Doca alegou “legítima defesa da honra”. Tese aceita para absolvição do assassino que teria “matado por amor”.


Ou seja, não é recente esta forma de tratamento do judiciário brasileiro. Esse caso é fundamental para a luta feminista no Brasil. No segundo julgamento, já em 1981, com forte atuação do movimento de mulheres e da opinião pública, Doca foi novamente a julgamento e então, condenado a 15 anos de prisão. O slogan “quem ama não mata” tornaria-se uma das principais bandeiras de luta pela vida das mulheres.


No caso Mari Ferrer é fundamental que o Brasil seja denunciado em cortes internacionais dos Direitos Humanos por graves violações já tipificadas na Constituição de 1988. 


Para concluir, essas violações são inseparáveis de um contexto de ataque a democracia. O Brasil conta com importantes documentos como a Recomendação Geral 35 sobre violência de gênero contra as mulheres do Comitê para eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. O documento faz parte da série de tratados internacionais de Direitos Humanos. 


O trecho do julgamento no qual Mariana Ferrer é humilhada recorrentemente pelo advogado de André de Camargo Aranha explicita a prática de misoginia desferida pelo advogado criminalista catarinense Cláudio Gastão da Rosa Filho. Sua conduta deve ser apurada. 


Apoiador do atual presidente da República, o advogado acha natural que Bolsonaro nada entenda de economia. É compreensível que nesse circo dos horrores, um advogado que pouco entende de ética e um promotor que defende a tese do estupro culposo representem a forma mais bem acabada do que vivemos desde a eleição de 2018.


Fundamentar a sentença de absolvição com base no princípio in dubio pro reo (mesmo com todas as provas coletadas) é jogar a definitiva pá de cal que faltava sobre o judiciário brasileiro. Ou seja, instituir o machismo, a misoginia e a violação de mulheres como modus operandi do governo Bolsonaro.

 

** Socióloga. Professora e Pesquisadora associada à Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Vice-Presidente da Associação dos Docentes da Universidade Estadual do Norte Fluminense (ADUENF).

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Solidariedade à Débora Diniz


Resultado de imagem para débora diniz


Por Paulo Sérgio Ribeiro

Uma professora e pesquisadora de uma das mais conceituadas universidades públicas do Brasil, Universidade de Brasília (UnB), vê-se obrigada a exilar-se em seu próprio país em face das ameaças de morte por seu posicionamento sobre a questão do aborto. Trata-se de Débora Diniz, antropóloga vinculada ao Instituto de Bioética (Anis) e à Faculdade de Direito da UnB, além de redes profissionais de saúde e associações de defesa do Direito das Mulheres em âmbito internacional. As agressões que vem sofrendo são operadas tanto na Internet, o que motivou um boletim de ocorrência na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM) em junho, quanto diretamente, ao ser abordada por um grupo de extrema-direita, todos homens ao que consta, na saída de um evento em que ministrara palestra em 18 de julho.  

Já tivemos oportunidade de discutir aqui no blog outros casos de violação da autonomia universitária e de censura ao pensamento científico. Não obstante, esse episódio é emblemático das imbricações do conservadorismo moral, enquanto corrente de opinião permanente entre nós, e do acossamento político de todo aquele que exerça a dissidência no plano institucional, considerando que a descriminalização do aborto, defendida por Diniz, é um divisor de águas sob um governo ilegítimo cujos próceres flertam com os pânicos morais para galvanizar o regime de força que o sustenta.

Débora Diniz não abdicou do seu trabalho intelectual e tampouco de suas franquias como cidadã ao mudar-se de Brasília sem informar a cidade de destino, mas, tão somente, lançou mão de uma medida urgente em face da regressão dos costumes na vida nacional que, no limite, inviabiliza a própria divulgação científica e as mediações que esta pode oferecer à construção de novos consensos no que toca às lutas por autonomia e reconhecimento das mulheres. Sua defesa da descriminalização do aborto é uma cunha no debate nacional, na medida em que põe em cheque as próprias bases psicossociais de escolhas de foro íntimo que são feitas (por mulheres, exclusivamente) tais como se adquirissem pertinência para a autoimagem da sociedade nacional. 

Ora, a defesa da descriminalização do aborto não colide com o direito à diferença dos membros de uma cultura hegemônica como o cristianismo. Desenhemos: a quase totalidade das mulheres que interrompem uma gravidez integram essa cultura hegemônica e, por conseguinte, não veem essa escolha como redutível à sua confissão religiosa, pois o que está em jogo é a própria definição de suas biografias em face das múltiplas filiações valorativas que as constituem como indivíduos.

Assim sendo, importa refletir o aborto como uma questão de justiça, considerando que é injustificável uma mulher não ser reconhecida como membro integral em um Estado de direito por ter recorrido ao aborto sem, antes, indagarmos se esse não reconhecimento é devido a padrões institucionais de valoração das práticas sociais que não foram construídos em condições de igualdade e que, portanto, subordinam indivíduos e grupos por suas características específicas ou pelas características que lhe são atribuídas. Bastaria aqui mensurar a elevada vulnerabilidade social das mulheres pobres que praticam o aborto.

O reconhecimento de um atributo do gênero feminino (não ser um mero apêndice de seu corpo na reprodução biológica) vai ao encontro da reivindicação por igualdade de status das mulheres. A interrupção desse debate, por sua vez, conduz à reprodução do valor diferencial das mulheres quando o que está em jogo é a maior redução possível do risco de morte e de sequelas físicas na prática do aborto.

Tematizar o aborto no terreno do universalismo moral (e não do moralismo) pode indicar com maior clareza condições intersubjetivas que assegurem a preservação da estima social como não dependentes da posição relativa da mulher frente ao status de cidadania. Do contrário, persistirá uma situação de injustiça social, pois apenas uma minoria de mulheres terá a prerrogativa de igualdade equitativa quanto aos melhores meios de conduzir soberanamente a sua vida reprodutiva. Noutros termos, uma meta pública se impõe: a ampliação da cobertura de um direito social – a saúde – fundamentada no mesmo valor moral dos membros do gênero feminino quanto às decisões que afetam a sua sexualidade e o seu bem-estar.

domingo, 25 de setembro de 2016

Cultura de Estupro

Cultura de Estupro *

George Gomes Coutinho **

Durante a semana o Datafolha, instituto privado de pesquisas, trouxe para a opinião pública dados feitos sob encomenda do Fórum Brasileiro de Segurança Pública acerca da percepção dos brasileiros sobre uma questão abjeta: o estupro. A repercussão foi imediata em diversas mídias, ainda mais pelo resultado alcançado no que tange a questão de se a vestimenta da mulher seria uma motivação legítima para a violência sexual. No universo de 3.625 entrevistados, 30%, dentre homens e mulheres, disseram sim. A vestimenta de uma mulher é justificativa para que seu corpo seja violado. Que a vítima não reclame. A partir daí a sociedade viu o reflexo do monstro que ela própria alimenta na divulgação da pesquisa.

Esta resposta certamente não surpreende em uma sociedade hipererotizada. Mas, apavora qualquer um que deseje um marco civilizatório onde impere a igualdade civil, política e social a despeito de gênero. Ou seja, dentro do estereótipo do crime sexual, usualmente onde a imaginação social projeta o cenário de uma mulher no espaço público solitária ou não, o tipo de roupa que se usa é um convite. Portanto, a perspectiva de que as mulheres são donas de seu próprio corpo é ignorada em dois aspectos: a) ela não deve utilizar a roupa que julgar melhor para si. A moral não permite a priori; b) se utilizar, dado que não deve haver transgressão sem punição, que não reclame se sofre assédio, abuso ou simplesmente o estupro em si.

Quando utilizamos o termo “cultura” estamos nos referindo a um conjunto de elementos simbólicos, expressos materialmente ou não, que articulados conferem identidade a indivíduos, grupos, práticas, etc.. Legitimam ações e instituições. Neste sentido, se não há uma cultura de estupro legítimo entre nós, realmente não sei o que mais os números supracitados poderiam nos informar. Afirmo isto a despeito dos outros 70% que discordam da vestimenta ser um pretexto para violência sexual. Minha preocupação é com os 30% que irão reproduzir a barbárie.

Só restou uma luz tênue no final do túnel. Dentre indivíduos com diploma universitário, a justificativa da vestimenta para o crime sexual cai para 16%. Ou seja, a educação formal pode amenizar as coisas. Contudo, só pelos 16% persistentes, já sabemos que não fará milagres.

* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 24 de setembro de 2016

** Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes