quinta-feira, 28 de maio de 2020

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Do reacionarismo para a imaginação política interditada

Do reacionarismo para a imaginação política interditada


George Gomes Coutinho

 Carreatas da morte. Pessoas de verde e amarelo nas ruas e praças bradando contra medidas de distanciamento social. Berram contra governadores e prefeitos que consideram corruptos, isso a despeito de ostentarem a insígnia da invariavelmente suspeita CBF no peito. Consideram que a economia deve ser protegida übber alles como diria aquele slogan famoso. As mortes e o sofrimento são fatalidades incontornáveis do destino. “E daí?” não é mesmo?


 Buscam um remédio a todo custo. Pode ser chá de boldo ou cloroquina. Afinal, se há remédio não há razão para que as pessoas fiquem em casa. Em meio a tudo isso discursos de ódio xenofóbicos. Há um “vírus chinês” e tudo o mais que lhe seja correlato, seja o próprio povo ou o Partido Comunista, deve ser encarado com nojo, desprezo ou violência.


 Sem dúvida temos acima fragmentos da atuação da extrema-direita que grassa no Brasil da Pandemia de Covid-19. Concordando com Ribeiro da Silva Jr (aqui) há a indiscutível presença do reacionarismo ou aquilo que Lynch já chamou de “conservadorismo culturalista” com fortes tintas autoritárias e anti-liberais. Há o que podemos definir como uma extrema-direita militante, organizada e dotada de alguma clareza ideológica sobre os seus valores, ideais, elementos simbólicos e normativos que devem constituir um projeto de Brasil para este século XXI.


Mas, vamos tentar supor
 que nem todos e todas que tenham ido para as ruas protestar nestes tempos de distanciamento social estejam organicamente vinculados a um projeto autoritário e reacionário de poder. Nas eleições de 2018 conhecemos o desconcertante voto “BolsoLula” ou “LulaNaro”[1] onde a genuína busca por “melhorar a vida” fez com que parte do eleitorado fosse capaz de votar no 13 e no 17 a despeito dos debates inerentes ao cipoal ideológico. O que mobiliza este eleitorado é a aposta em obter incrementos positivos, mesmo que conjunturais, apostando no rito e consequente sucessão eleitoral como uma via para obtenção destes objetivos.


E se parte do grupo raivoso presente nas ruas simplesmente sofrer do déficit de imaginação política ante o enfrentamento, por um caminho humanista, totalizante e empático, da pandemia? E se uma imaginação política pautada pela solidariedade for interditada, combatida e até mesmo ridicularizada por determinados grupos e setores que compõe a polifonia de nossa opinião pública?


O termo imaginação política foi apresentado por Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019) ainda na década de 1960[2]. Em última instância ele localizava, desde 1822, um conjunto de autores, temáticas e obras onde o Brasil era imaginado em suas instituições, políticas, modelos de governo, processos de auto-compreensão, etc.. Enfim, produção espiritual que não se pode enquadrar propriamente como articulação teórica sistemática, mas, animava e anima os debates e ações políticas concretas. São as articulações de nossa cultura política que segue dos panfletos ao que podemos chamar de “obras fundadoras”[3] do nosso processo de nation state building. Produtos culturais de origem diversa que alimentam nossa opinião pública.


Também é dado no campo da imaginação política o repertório do debate onde o possível se apresenta. E o impossível também.


É importante notar que parte dos grupos que vão para as ruas em plena pandemia protestar contra as medidas de distanciamento recomendadas pela Organização Mundial de Saúde talvez façam desta forma por simplesmente não vislumbrarem outra alternativa. Para ser mais preciso, não lhes foi dada uma alternativa concreta e segura para a manutenção de sua própria sobrevivência. Seja enquanto política pública ou por conta de um debate político interditado.


 A imaginação política acerca das políticas sociais e assistenciais por parte dos setores dos dois lados do espectro político sempre foi crítica. Não seria diferente em nossa conjuntura, por mais chocante que possa soar. Estes do lado destro[4] da política brasileira são os grupos que se encontram atuando no Governo Federal e em outros níveis de governo, em parte do mainstream da imprensa em jornais, revistas e TV. Também encontram representantes em associações empresariais, no setor financeiro, dentre economistas profissionais, etc.. Para estes qualquer ação remotamente dotada de natureza redistributivista é vista em perspectivas diferenciadas que se complementam em termos práticos: desde reduzidas a um mínimo constrangedor sob o argumento da racionalização fiscalista, o tal cobertor curto, até serem combatidas por gerarem um suposto desincentivo ao trabalho. Por vezes políticas sociais e assistenciais são até mesmo satanizadas e seus usuários estigmatizados.


Estas disposições que explicam parte da constelação que forma a nossa opinião pública ajudam a entender o caminho acidentado de nossa Renda Básica Emergencial. Primeiramente sequer era algo concebível. Depois se apresentou em sua faceta esquálida, os famosos R$ 200,00  da equipe de Paulo Guedes. Por fim, após os já tradicionais e persistentes embates entre legislativo e executivo no Governo Bolsonaro, chegamos aos R$ 600,00 em 3 parcelas mensais, algo  que ainda não soluciona a questão.


O design da política pública foi feito para repelir os setores mais vulnerabilizados da sociedade: 1) aqueles que não detém cidadania formal no mercado (não são portadores de cidadania bancária digamos assim); 2) não detém a documentação necessária (não são reconhecidos formalmente pelo Estado); 3) não são “nativos digitais” (apresentam todas as dificuldades formais e concretas para que obtenham uma cidadania digital plena). Por conta dos motivos elencados há o risco de termos 7,4 milhões brasileiros elegíveis para este política pública sem qualquer cobertura[5]. Uma tragédia.


Dificuldades não menos relevantes podem ser indicadas quando falamos de micro e pequenos empresários que não raro constituem a fauna das tais carreatas da morte. Grupos que não tem caixa para aguentarem os meses de distanciamento social sem o auxílio de algum tipo de linha de crédito que lhes permita, sob 0% de juros ou taxas similares, manterem seus negócios e os empregos agregados. Na ausência de uma efetiva política de crédito temos as alternativas que envolvem dilapidar patrimônio, demissões, falências, etc. justamente de fatia do empresariado que emprega trabalhadores formais e informais em grande monta. Mas, Guedes foi enfático na reunião de abril, a tal reunião de horrores, onde afirmou: “Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas[6]. Neste caso temos a demonstração de como funciona a imaginação política de indivíduos e grupos mais próximos ao “andar de cima” da sociedade brasileira.


Em ambos os casos, seja nas expressões de nossa imaginação política que criminalizam políticas sociais ou assistenciais ou na preferência claramente expressa em prol do grande empresariado em detrimento de micros e pequenos, temos a interdição da solidariedade. É uma imaginação política que inviabiliza, até repele, qualquer tipo de medida de Welfare, de Bem-Estar Social. Seja por conta de um repertório supostamente racionalizante ou no campo semântico que considera políticas sociais, assistenciais ou até mesmo políticas econômicas para pequenos empresários simplesmente uma baboseira.


Não é simples. Mas, inserir mecanismos de solidariedade que envolvam práticas concretizadas em politicas públicas é  parte do exercício de imaginação política que diga que tipo de Estado-Nação queremos durante e após pandemia. É tarefa urgente e civilizatória para o Brasil. Talvez seja um dos caminhos possíveis para honrarmos o sofrimento coletivo que estamos vivenciando, incluso milhares de mortes desnecessárias, onde a imaginação política interditada simplesmente se demonstrou insuficiente para lidar com esta conjuntura.



[1] Mais detalhes podem ser obtidos na seguinte matéria da BBC Brasil: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45323102

[2] “A imaginação político-social brasileira” de 1967 publicado na revista Dados. O texto encontra-se disponível aqui: https://drive.google.com/file/d/1JZ11NqfUItw-VXAxI_McsROG734QxPcM/edit

[3] Sobre estas oportunamente Lynch nos questiona se não cabe considerarmos as mesmas como produção teórica: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582013000400001

[4] As criticas de parte do campo da extrema esquerda e da esquerda propriamente são de outro teor, o que envolve, dentre outros apontamentos, o esmaecimento da luta de classes. Não irei entrar nos meandros desta crítica neste momento pelo simples fato de que estes grupos não se encontram com instrumentos de tomada de decisão na conjuntura ao ponto de serem óbices ao enfrentamento adequado da pandemia em suas consequências sociais e econômicas.

[5] Dados do Centro de Estudos da Metrópole. É possível acessar as análises visitando o seguinte link: http://agencia.fapesp.br/pesquisa-apresenta-o-perfil-dos-elegiveis-para-receber-a-renda-basica-emergencial/33220/

[6] A transcrição da reunião ministerial de 22/04/2020 pode ser acessada aqui: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/leia-integra-da-transcricao-do-video-da-reuniao-ministerial-de-22-de-abril-entre-bolsonaro-e-ministros.ghtml



sexta-feira, 22 de maio de 2020

ENTRE DOMINGOS JORGE VELHO E JOÃO FIGUEIREDO: a luta entre os conservadorismos no governo Bolsonaro


ENTRE DOMINGOS JORGE VELHO E JOÃO FIGUEIREDO: a luta entre os conservadorismos no governo Bolsonaro[1]
Christian Edward Cyril Lynch[2]

1.    A trégua ou transição do modelo fascista/reacionário de governo para o de um regime militar aguado, proposto pelos generais e pelo centrão nos últimos dias para a sua sobrevivência ("conservadorismo estatista"), não será aceito sem resistência do bolsolavismo e do gabinete do ódio, que forma a sua ala radical ("conservadorismo culturalista").

2.    As duas alas são em tese perfeitamente compatíveis, e sempre o estiveram em regimes conservadores na história brasileira, como o "saquaremismo" do começo do reinado de dom Pedro II, o Estado Novo e o Regime Militar. Mas a acomodação sempre supôs a subordinação do "culturalismo" ao "estatismo". Tristão de Ataíde não prevaleceu sobre Oliveira Vianna, nem Gustavo Corção sobre Golbery...
3.    Mas nunca houve, como hoje, um "culturalismo" tão reacionário e virulento, a ponto de ser revolucionário. Ele tem dado o tom central do Bolsonarismo, com sua utopia regressiva de volta ao século 17, pleiteando essa liberdade "colonial" ou "bandeirante" marcada pela ausência de limites sociais, pelo direito de mentir, de matar, de oprimir minorias, de depredar a natureza, de negar conquistas do Iluminismo e até do humanismo renascentista. Bolsonaro é simbolicamente um Domingos Jorge Velho no poder, ou seja, o sertanista bandeirante cujas milícias foram contratadas pelos senhores de engenho para arrasar Palmares. Com a diferença de que, na modernidade, eles se apresentam com tintas integralistas, e por isso parecem fascistas.
4.    Esse conservadorismo culturalista para quem a "liberdade americana" é o direito que o patriarca branco, hétero, tem de fazer o que bem entender contra as minorias e contra a regulação do Estado, choca-se com o conservadorismo estatista que exige a ordenação do caos socioeconômico pela agência racionalizadora de um Estado forte. O marquês do Pombal vem exatamente para acabar com o primado dos Domingos Jorge Velhos, criar uma nacionalidade ordenada em meio a uma sociedade percebida como anárquica torno do eixo do Estado. É um discurso que permeia o que vem sendo veiculado pelo comandante Pujol e pelo vice Mourão.
5.    A pacificação do governo, para os conservadores estatistas, passa por sua normalização, subordinando o espírito bandeirante/integralista (culturalista) à tradição imperial/estadonovista (estatista). Isso impõe transformar Bolsonaro numa espécie de Figueiredo, em um governo de retórica autoritária, mas desmobilizada em termos de população, ou despolitizado, em nome da "união nacional".
6.    Mas o "coração" do Bolsonarismo, porém, é o radicalismo culturalista, orientado pelo ideal colonial bandeirante de liberdade como predação e destruição, baseado na mobilização e na polarização permanente. O pessoal ligado ao Olavo sabe que a tradição no Brasil tem sido essa, de subordinação do culturalismo ao estatismo, e por isso não está disposta a entregar a rapadura tão facilmente dessa vez. Então nenhuma acomodação será possível, nos termos no passado.
Concluindo, a chance de que a corda acabe rompendo não é nada desprezível. E isso pode pesar em um eventual futuro abandono de Bolsonaro pelos militares, como um fardo demasiado grande para carregar. Afinal, o vice é o general Mourão. Por isso, os culturalistas elevam sempre os custos de ruptura, e atacam os generais com o populismo de que não dispunham nas outras ocasiões.


[1] Texto republicado com autorização do autor. Post originalmente publicado em: https://www.facebook.com/christian.lynch.5/posts/10219651084480032

[2] Professor da grande área de Ciência Política no IESP/UERJ. É autor de “Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia” publicado pela editora da UFMG, “Wanderley Guilherme dos Santos: a imaginação política brasileira - cinco ensaios de história intelectual”  publicado pela Revan, dentre outras obras, coletâneas e inúmeros artigos nos campos do Pensamento Político Brasileiro, Teoria Política e História das Ideias Políticas.



Novo Normal?*




Atualmente somos bombardeados semanalmente por novos termos e expressões. A durabilidade de cada um varia, mas o tormento de ouvir a mesma expressão repetidas vezes parece ser algo que se renova a intervalos cada vez mais curtos. Não faz muito tempo, escutei pela primeira vez alguém falar em “novo normal”. De imediato, não entendi e, por questões de autopreservação, adotei a medida da sabedoria: ignorei. Todavia, não tinha como fugir e a expressão começou a brotar por todos os lados. Chegou ao ponto em que vi um debate sobre o termo utilizado na capa da revista Vogue, onde aparecia a top model Gisele Bündchen e, abaixo dela se lia: “Novo Normal: Simplificar a vida e se concentrar no essencial são os caminhos para um futuro mais ético e saudável”. A Vogue destacava, assim, uma tendência da expressão: algo relacionado à espiritualidade e ao consumo sustentável. Depois disso, passei a observar que havia um apelo à dimensão ética e ambiental na expressão. Fui me informar melhor e descobri que o “novo normal” era uma expressão para abordar o mundo pós Covid-19, algo do tipo: “agora que tudo deu errado, vamos nos reformular e buscar novos caminhos”. Fiquei incomodado, mas acreditei que não valia o esforço.

Dias depois, por acaso, li um artigo de opinião da Lilia Schwarcz intitulado “De perto ninguém é normal (ou o ‘novo normal)”, onde a antropóloga demonstrava um incômodo semelhante ao meu diante da expressão. Segundo ela:  


A expressão “novo normal” tem sido muito utilizada nos últimos meses, quando se percebeu que o coronavírus há de acarretar mudanças para todo o planeta. Isto é, que os efeitos da Covid-19 não se limitarão ao dia em que a pandemia for dada por terminada. E é certo: a história mostra que não se sai de crises como essa da mesma maneira que se entrou. “Novo normal” não é, porém, um termo recente; tampouco se sabe a origem dele. No entanto, tem sido crescentemente associado a momentos da história em que toda a sociedade é obrigada a se reinventar diante de períodos de crises de ordem política, militar, econômica ou sanitária”.

Essa ideia de reinvenção diante da crise foi o que chamou minha atenção no “novo normal” – e que passou a incomodar, mesmo, depois da capa da Vogue. Por que a capa da Vogue é importante? Bem, porque ali fica explícito que a ideia de “normalidade” é muito variável. Ou você acha que a sua normalidade é igual à da Gisele Bündchen? Pois enquanto a celebridade se preocupa em “simplificar a vida e se concentrar no essencial”, há muita gente que vive a normalidade de não saber se vai conseguir a próxima refeição. Independente do extremo dos exemplos, o que quero frisar é que aquilo que é normal para a senhora Bündchen seria um sonho para cerca de 99% da população mundial - e que aquilo que se tornou normal para 40 milhões de brasileiros – sofrer nas filas para obter os R$600 de auxílio do governo – seria algo absolutamente anormal para ela. O conceito de “normalidade”, portanto, é relativo e contextual.

Boa parte das Ciências Sociais dos séculos XIX e XX estiveram preocupadas com a normalidade. Para ser mais específico: a Sociologia nasceu com o propósito de ser uma engenharia social capaz de trabalhar pela manutenção da ordem. As formas de “representação”, as categorias classificatórias e as “estruturas sociais” foram temas centrais na história das Ciências Sociais. Após a Segunda Grande Guerra Mundial – com o mundo sacudido por um evento que criava um “novo normal” da época -, ficou claro que era importante entender as formas de transformação da vida social. Um grupo de antropólogos, sob a liderança do sul-africano Max Gluckman, ficou conhecido como “Escola de Manchester” e teve suas pesquisas marcadas por uma ênfase na mudança social. Para tanto, uma forte preocupação foi direcionada aos conflitos sociais – que deixaram de ser vistos como algo de menor importância. A vida era marcada por conflitos e neles estaria a força motriz das transformações das diferentes sociedades do mundo.

Nesse grupo de pesquisadores, destacou-se um escocês, chamado Victor Turner, que formulou o conceito de “drama social”. De modo sintético, podemos dizer que os dramas sociais são rupturas do cotidiano “normal”. Quando algo acontece que tira as pessoas dos seus fluxos “normais”, então temos o início de um drama social. Isso significa que existem dramas sociais de pequena e de larga escala: dramas de pequenos grupos ou dramas de cidades, regiões ou países. Podemos encontrar expressões de dramas sociais em traições, conflitos armados, rupturas políticas, desastres “naturais” etc. Os dramas sociais podem se envolver uns nos outros - quando um drama familiar se insere em um drama nacional, por exemplo. A importância do drama social reside na ênfase que dá aos conflitos sociais, pois o “cotidiano” ou a “normalidade” tendem a esmaecer as tensões e as oposições – expressas ou latentes – que caracterizam a vida social. Assim, as ocasiões dramáticas teriam, para os antropólogos, a capacidade de descortinar as divergências dos grupos sociais, destacando valores e resistências a esses valores, ou mesmo valores em oposição. Em outras palavras: os dramas sociais são reveladores, pois os conflitos expõem os axiomas sociais.

Turner dividiu os dramas sociais em quatro etapas sequenciais. A primeira etapa foi chamada de “ruptura” e consiste na exposição pública de algum evento que signifique a quebra da normalidade: pode ser tanto a descoberta da violação de uma regra social quanto algum evento climático que altere o cotidiano drasticamente. A partir daí inicia-se a segunda etapa, que é conhecida como “escalada da crise”. Nesse momento, o problema originado na ruptura tende a se expandir envolvendo cada vez mais pessoas e grupos. É importante lembrar que Turner não escolhe o termo “crise” aleatoriamente, pois ele entende que as crises constituem momentos de aguda reflexividade, onde é necessário ponderar sobre passado, presente e futuro. Isso ganha força na terceira etapa, quando “ações de reparação” são adotadas para minimizar os efeitos da crise e tentar, assim, interromper sua escalada. Trata-se do momento mais “intelectual” do drama, na medida em que é aí que são discutidas as possibilidades de resolução das questões. Por fim, a quarta etapa: o cisma ou o retorno à estrutura. Aqui o argumento é que se a fissura no tecido social for irreparável, haverá uma divisão do grupo social – como em um casamento, quando não é possível reatar e o casal se divorcia. O retorno à estrutura seria algo como retorno à “normalidade” – mas é preciso enfatizar que Turner sinaliza que a “estrutura” já não é exatamente a mesma, pois ela carrega em si as marcas históricas dos eventos dramáticos.

Quando leio sobre o “novo normal”, lembro dos dramas sociais de Victor Turner. A transformação social é constante, mas ela não costuma ser abrupta. Mesmo os cismas, quando ocorridos, fundam-se sobre valores e modelos da estrutura social anterior. Do mesmo jeito, o retorno à estrutura representa uma transformação. Imagino que o drama social da Covid-19 não nos transformará radicalmente em pessoas solidárias e espiritualmente elevadas, preocupadas com a preservação ambiental e com o consumo consciente – tal como tem sido imaginado por inúmeras pessoas. Quando países europeus iniciaram a reabertura, filas enormes se formaram para comprar produtos da Apple e da Louis Vuitton. A Zara parecia estar com promoção de 90% de desconto – mas não estava. No que diz respeito ao consumo, as coisas não foram radicalmente alteradas e aquele consumo que ficou suspenso ao longo do isolamento social estava apenas esperando a oportunidade para sua satisfação.

Do mesmo modo, aqueles que pensam em um cenário distópico pós-Covid não devem esperar que o país se transforme em um “Mad Max” da noite pro dia. As transformações são dadas de passo em passo e o que virá será a continuidade de algo que já estava em andamento há muito tempo no Brasil. Seja um quadro de miséria extrema ou de um governo autoritário e ditatorial, não podemos dizer que isso se apresentou como consequência da pandemia, pois a pobreza e a desigualdade já estavam consolidadas em nossa sociedade há muito tempo; tal como certas inclinações autoritárias com fetiches por fardas e fuzis.

Seja como for, para além das especulações sobre o futuro, precisamos trabalhar com as questões fáticas. Vivemos em um país polarizado politicamente, sem compromisso com a educação e com o conhecimento científico, onde as desigualdades são naturalizadas e o racismo é estrutural. Nesse contexto, depois de anos em uma profunda crise econômica que se pretendia sanear por um modelo de pirotecnia neoliberal, presenciamos o coronavírus estagnar a economia e o desemprego aumentar acompanhando o número de mortes. Enquanto isso, o governo federal continua a gerar crises e a fracassar na apresentação de ações para reduzir os estragos pandêmicos. Ao final, pode até ser que uma parte das pessoas entre na mesma “onda” da Gisele Bündchen, simplificando a vida e focando no essencial enquanto buscam uma existência espiritualmente plena. No entanto, é preciso se lembrar que, enquanto isso, milhões de pessoas estarão em notável vulnerabilidade social, em um país em recessão, com crise política, intelectual e social de todas as ordens.


Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.


* Publicado originalmente em 19 de Maio de 2020 no Jornal Folha da Manhã  - http://www.folha1.com.br/_conteudo/2020/05/artigos/1261616-carlos-valpassos-novo-normal.html

segunda-feira, 18 de maio de 2020

É possível conversar com um reacionário?


É possível conversar com um reacionário?

Paulo Sérgio Ribeiro

A indagação inspira-se, por óbvio, no livro da filósofa Márcia Tiburi: Como conversar com um fascista?[1] Tal como Tiburi, bebemos uma certa dose de ironia na resolução deste enigma sob o risco iminente de sermos por ele engolidos em caso de insucesso. Sendo assim, uma maneira de não nos perdermos em meio às sombras do Brasil pós-golpe é selecionar bem as categorias de análise. Opto, pois, pelo termo “reacionário” ao invés dos já consabidos e populares “bolsonarista”, “bolsominion” ou, simplesmente, “minion”, todos estes vocalizados como sinônimos de “fascista”. Não que tais expressões não tenham lá sua serventia em momentos de posicionamento na luta política, mas, para fins de pensar a comunicação entre divergentes, é oportuno ceder a vez a um exercício de escuta do “outro” enquanto depositário de uma subjetividade que ele próprio não consegue dar conta e que, por sua vez, indispõe-no a qualquer forma de vida que ponha em xeque sua miséria humana: a instrumentalização política de afetos primários como o ódio.

Firula conceitual? Não, pois o comportamento político não espelha necessariamente uma dicotomia entre progressistas e conservadores descrita em um manual de ouro, mas gradações sutis entre tais pólos. Sendo isto plausível, nós, progressistas, a despeito de tudo o que nos singulariza e antagoniza, temos de tomar para si a tarefa (inglória para alguns, impossível para outros tantos...) de estabelecer alguma maneira de repactuar limites com indivíduos e grupos cujo “estar no mundo”, por assim dizer, revela concretamente o que se convenciona por reação: anular os efeitos de uma mudança qualquer. Trata-se de uma tarefa sensível tanto na esfera pública quanto na esfera das relações íntimas de afeto. Talvez, mais gravemente na última, dado o sofrimento moral acumulado após tantas decepções com quem, um dia, já fora destinatário(a) de nossos sentimentos mais gregários.

Esta nossa tão universal necessidade de afiliação nunca se viu tão desmentida por escrúpulos atribuíveis, quiçá, a uma necessidade subjetiva de identificar-se (e comprometer-se) com a sorte do gênero humano em sua inteireza. Afiliação não se realiza sem pagar tributos à necessidade de poder e, cedo ou tarde, teremos de lidar com o ônus de navegar o mesmo mar dos que militam pela reação sem, todavia, abrirmos mão da bússola histórica que nos mostre uma rota consciente no entrechoque das correntezas que arrastam a todos.

Tomemos um exemplo: a reação ao lockdown decretado pela prefeitura municipal de Campos dos Goytacazes-RJ, minha cidade natal, com início para segunda-feira (18/05/2020)[2]. O reacionarismo manifestou-se na convocação, por parte de grupos de extrema-direita organizados localmente, de um protesto contra o lockdown no espaço que condensa toda a potência do que seja um ato público em solo campista - a Praça São Salvador – e no lugar que, por definição, corporifica a instituição do direito – a Câmara de Vereadores ou, precisamente falando, suas escadarias.

Qual é a “pauta” desses grupos? Basicamente, o retorno a uma vida civil cujo verniz liberal são incapazes de simular com suas patriotadas vazias. Ora, na tradição liberal bem compreendida, a autolimitação do Estado é um ato de vontade do soberano que busca assegurar, através da não interferência na esfera da consciência e da iniciativa econômica, a autonomia civil de cada um(a). Contudo, na crise de saúde pública de alcance global ocasionada pelo Covid-19, o ajustamento íntimo de cada um(a) a novas rotinas torna imperativo que o Estado lembre aos seus cidadãos (com uso do poder de polícia, se necessário) que eles também têm de observar a autolimitação em nome de um bem primário – a vida.

A violação da ordem pública pelos meus conterrâneos reacionários é sintoma de uma irracionalidade que tanto reflete a negação da ciência quanto dela se retroalimenta. Ora, a ciência é uma prática social que tem em seu horizonte o exercício da dúvida sistemática na comprovação de relações de causa e efeito sobre os fenômenos. Admitir-se em erro não é, para um(a) cientista profissional, propriamente um motivo de aflição, mas uma exigência ética ao demonstrar um fato passível de exame geral. Ora, se é factível que o contágio ocorre em velocidade exponencial e que não há outra medida ao nosso dispor, exceto o isolamento e distanciamento sociais como meios de abreviar o período de quarentena e mitigar os custos da recuperação econômica pós-pandemia é, no mínimo, inconsequente o lobby da Câmara dos Diretores Lojistas (CDL) na agitação suicida dos verde-amarelos de plantão.

Por que é tão improvável um(a) reacionário(a) admitir que possa estar errado(a) sobre suas próprias motivações? O rechaço ao sistema político como prova de “isenção” ante os jogos políticos tradicionais é produto de afeições que, para um certo segmento da população que transcende divisões de classe, caracterizam um estado de desamparo diante das mudanças de posição e de status advindas com a incipiente mobilidade social verificada nos governos de centro-esquerda – gestão federal do Partido dos Trabalhadores (PT) – sem, todavia, terem sido revertidos os condicionantes estruturais da desigualdade socioeconômica reproduzida pelo racismo de classe e de cor e, não menos, pela misoginia.

O código de virilidade exibido em protestos de rua contra as instituições de direito e de justiça, sob o pretexto de questionar as medidas de restrição às liberdades públicas em um cenário de pandemia, apenas evidencia o desejo um tanto caricatural de volta a uma “normalidade” que, nada mais é, do que o estado de sítio mal disfarçado de pessoas – em sua maioria, homens e pequeno-burgueses – que veem o seu lugar no mundo ameaçado por mudanças que não compreendem.

O ressentimento decorrente desta invalidação da existência social da fração proto-fascista da classe média – o “tio do churrasco” que perdeu a graça; a vivandeira de quartel saudosa do “milagre econômico” para o 1/4 de sempre; o(a) concurseiro(a) que clama por Estado mínimo – serve de referencial ao conservadorismo moral das camadas populares que não têm outro recurso senão a severidade nos costumes como forma de distinção social que, por convicção sincera e deveras inútil, mimetiza o moralismo hipócrita das classes que, por arrivismo ou simples desprezo ao lumpenproletariado que explora, dita quem vive e quem morre com o falso dilema traduzido em “salvar a economia ou preservar vidas”.

Daí, não é surpreendente que a tempestade perfeita esteja longe do fim e que sua nuvem mais pesada paire sobre a planície fluminense confirmando o quão lenta pode ser a história entre nós campistas.



[1] Cf. TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista? Rio de Janeiro: Record, 2018.
[2] Jornal Folha da Manhã, edição de 18/05/2020, disponível (aqui).

sábado, 16 de maio de 2020

A banalidade do caos*


A essa altura do campeonato, o Brasil já ultrapassou a marca oficial dos 10 mil mortos por Covid-19. O último informe do Ministério da Saúde indicava que tivemos 751 mortes em 24 horas, o que nos colocava em segundo lugar no ranking global de mortes diárias – superados apenas pelos Estados Unidos. Enquanto me atualizava sobre a escalada da pandemia, lembrei de um jornalista que escutei dias atrás se queixando publicamente da imprensa que “só noticia morte!”. Dizia ele que a mídia não falava de outra coisa e que era preciso também mostrar coisas boas, que era necessário considerar o comércio e outras coisas mais. De fato, creio, é necessário considerar o comércio e todas as questões econômicas. Espanta-me é que as pessoas que argumentam pela abertura do comércio e pela “salvação de empregos” não tenham se mostrado indignadas com as medidas parcas adotadas para garantir a preservação econômica. Países mais pobres do que nós foram muito mais ousados na hora de proteger seus compatrícios. Aceitamos como dado que o governo fez o que pode, mas a impressão é de que poderia muito mais – com sofrimento e dificuldades, claro, mas com ações que materializassem o discurso de real preocupação com a salvação das empresas. Fico com a impressão de que tivemos uma aula prática sobre o pior que pode acontecer quando se arde de paixão por um modelo liberal tacanho. - Também me atormenta uma constante indagação: sobre o que mesmo a mídia deveria falar quando mais de 500 pessoas morrem todos os dias no país? Quando uma hecatombe está em curso, sugerir assuntos “leves” soa como cinismo irresponsável.
Na tarde de ontem, antes da divulgação dos dados sobre o avanço da Covid-19, assisti a uma entrevista com a antropóloga Daniela Velásquez, que está na França desde antes do período de confinamento. Ela estabeleceu uma cronologia para explicar que a França passava por um momento de grande agitação em virtude dos movimentos sociais que se opunham às reformas liberais do governo Macron. Foi nesse contexto que o país entrou em contato com a pandemia. Era o início da primavera e as pessoas não estavam exatamente dispostas a aceitar as orientações de distanciamento social. O presidente, buscando alcançar um consenso, estabeleceu um discurso que interpretava a situação francesa como uma guerra sanitária onde sacrifícios seriam impostos. As medidas de isolamento e as restrições de liberdades eram uma novidade em tempos de paz, mas eram as medidas necessárias para uma guerra contra o coronavírus. O chamado à responsabilidade social e ao compromisso individual que cada cidadão tinha - com sua própria vida e também com a vida de seus compatriotas – foi o tom da narrativa que se estabeleceu para alcançar um consenso sobre como o país enfrentaria a Covid-19.
Mais tarde, “fui” – esse verbo que ganha novos sentidos em contexto de pandemia na era digital – a uma festa virtual de aniversário. Como não podia ser diferente, em determinado momento o assunto em pauta foi a pandemia. Uma engenheira que morou na Suécia falou sobre como o governo de lá estava lidando com a situação. O distanciamento social foi recomendado, mas não houve imposição de isolamento por parte do governo e as atividades ficaram próximas ao “normal”. A Suécia possui suas particularidades – como as regras de etiqueta, as cidades não tão populosas, uma grande quantidade de domicílios ocupados por apenas um habitante etc -, mas mesmo assim suas taxas de mortalidade em virtude da Covid-19 são muito superiores às taxas dos países vizinhos. Todavia, há uma estratégia  governamental. Argumenta-se que os países que impuseram o confinamento terão problemas na hora da reabertura, então optou-se por não confinar para que os danos da epidemia não se desenrolem por muito tempo. A China já está em processo de reabertura e alguns países europeus também estão ensaiando tal processo –  e em ambos os casos a retomada da vida não parece ser tão problemática quanto imaginou o governo sueco. A Suécia, um país com cerca de 10 milhões de habitantes, já contabiliza 3175 mortes e, apesar dos questionamentos às medidas adotadas, o governo do país não foi taxado como “negacionista” e parece administrar a situação sem o fervor ideológico que paira sobre o Brasil.
Assim, entre uma “live” e uma conversa de “festa”, surgiram dois exemplos de nações que encontraram algum grau de consenso para enfrentar a pandemia. Isso destaca a importância de uma liderança governamental minimamente estável. Pois, quando olhamos para fora de nosso contexto para pensar sobre nós mesmos, vemos países mais pobres com resultados mais promissores no combate à pandemia – mas foram países onde os governantes agiram com razoabilidade. É possível pensar também no caso de um país muito rico, os Estados Unidos, onde um presidente instável chegou a recomendar que as pessoas tomassem desinfetante para combater o coronavírus. E muitas pessoas seguiram o conselho do líder máximo de sua nação: tomaram – e morreram. Caminhando pelas trilhas da indefinição e da ambiguidade, na falsa argumentação da oposição dualista entre vida e economia, os Estados Unidos presididos por Trump já se aproximam dos 80 mil mortos e estabelecem recordes históricos de desemprego e contam com uma economia pra lá de abalada. Disseram que prezavam por empregos – não salvaram empregos e nem a vida de dezenas de milhares.
Por aqui, ao que tudo indica, nos afastamos da França e da Suécia enquanto seguimos os passos dos Estados Unidos: na falta de critérios, de medidas e de tirocínio no enfrentamento da pandemia. De resto... bem... de resto eles possuem o Dólar e nós temos o Real... e 1 dólar custa quase 6 reais em nosso país que não salva empregos, que ceifa vidas, que banaliza o caos, mas que segue com uma “esperança equilibrista”.


Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.

* Texto publicado no site do Jornal Folha da Manhã em 10 de Maio de 2020. https://www.folha1.com.br/_conteudo/2020/05/artigos/1261283-carlos-valpassos-a-banalidade-do-caos.html