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quarta-feira, 6 de maio de 2020

Em tempos de pandemia



Em tempos de pandemia
                                                                                                                                 Renata Saul
            Professora e socióloga.

Meu primeiro contato com os textos de Hannah Arendt[1] foi na disciplina de História a partir do livro Origens do totalitarismo. Fiquei impactada. Mas na correria da graduação, das aulas (como arrimo de família, já lecionava na rede municipal) na Educação de Jovens e Adultos (EJA) em uma comunidade cheia de problemas, a vida foi seguindo. Verdade é que, desde a escola, estudar sobre os horrores do nazismo deixou marcas. Meu bisavô paterno também veio para cá fugindo de todo aquele mal.

Mas nós, brasileiros, também temos nosso quinhão de maldade para com a humanidade: genocídio dos povos indígenas, a escravidão que estruturou a desigualdade extrema deste país, o grande número de crimes de gênero (femínicidios e todo tipo de violência contra a comunidade LGBTQI+)[2], as perseguições religiosas com o povo preto. Como eu disse, temos o nosso quinhão.

Seguindo rumo ao término da graduação, Arendt entra de novo em cena: Entre o passado e o futuro é o livro da vez. Não teve jeito. É preciso atentar para o que ela diz. O momento histórico em que eu estava lendo Arendt é muito bom: democratização das Universidades, debate acirrado sobre cotas, descoberta do Pré-Sal. Há desigualdade, há tantas pautas ainda em debate. Há debate, há espaços de fala e cada vez mais eles aumentam: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte. A gente quer a vida para qualquer parte”[3]. Meu cenário acadêmico é a UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense), construída em cima de um lixão, olhando para os condomínios fechados que se erguem à sua frente e de costas para a favela. Queremos mais. Queremos mais acesso. Queremos escola pública de qualidade, mais empregos, queremos um Brasil que estava parado. E a fome e a sede são de tudo. Arendt aparecia para mim no combate dessa banalidade do mal[4] cotidiana, cruel, invisibilizando o outro. Mostrando que os discursos democratizantes corriam risco, mas nem em sonho eu poderia imaginar que sorrateiramente e, mais adiante, teríamos aqui o nosso Eichamman[5], mas não como um alto funcionário e soldado servil do Holocausto. O Eichmman aqui tem sede de mais, quer vingança, porque foi calado, ridicularizado, silenciado. O Eichmman aqui dá voz a todos que diziam que o politicamente correto é chato, ele não quer repensar nossa linguagem falada, porque repensar as linguagens caracteriza em mudança de pensamento: Ah!!! Pensar é exaustivo, empatia é chato, e as coisas são assim e não devem mudar.  Por qual motivo o status quo estaria feliz em cair do pedestal? Mas esse ódio está ali, sorrateiro, espreitando e a gente ouve uns murmúrios: Agora gato e cachorro tem carro; Não pode nem dar um empurrãozinho em mulher, que ameaçam com Maria da Penha; Universidade gasta muito o dinheiro público; Aeroporto agora parece rodoviária; Direitos humanos é coisa de bandido. E quem trouxe tanta desgraça para esse país?  A esquerda, claro! E quem são os líderes de esquerda? Esses políticos que enfrentaram todo um sistema para que houvesse eleições, liberdade de imprensa, de pensamento... Como eles fizeram isso? Assaltando bancos, sequestrando, fazendo passeatas, enfrentando a polícia... Ah, é? Bandidos, só pode. Quem enfrenta a polícia é bandido.

E dessa forma, no nosso país de democracia recente e de subalternidade e desigualdade por tradição, vai surgindo algumas narrativas que incutem a ideia de que a esquerda é o mal da humanidade, a perversão dos valores morais, o atraso, o comunismo, da perseguição implacável ao cristianismo. A bandeira vermelha comunista que representa o sangue dos trabalhadores que, ao longo da história, lutou por melhores condições de existência, parece que só clama por uma guerra civil onde quer que passe. A União Soviética não existe mais, o muro de Berlim foi derrubado em 1989, Cuba passeia pelo mundo levando seu conhecimento médico às nações que precisam, mas o mote de acabar com o comunismo ainda é bradado em alto e bom som.

Em 2016, temos um golpe na democracia brasileira, a presidenta Dilma é retirada do cargo sem crime de responsabilidade algum, mas as elites do país inflam a sociedade e financiam o golpe: temos enfim um sacrifício de purificação política: a corrupção e o mal que assola este país tem uma sigla conhecida - PT (Partido do Trabalhadores) -, e a política, campo das relações de poder, torna-se campo de torcida de futebol, com várias faltas favorecendo o status quo e nocauteando o trabalhador que assume o campo que não é o seu e ajuda a efetuar gols contra seu próprio time. As notícias falsas são um componente eficaz na goleada que o trabalhador toma.

Nesse cenário político, nosso Eichmman cresce dando voz a tantos horrores que estavam enterrados: ele abre a caixa de Pandora e de lá saem o ódio como categoria política, o deboche, a mentira, a ignorância, mas o que não sabíamos é que esses componentes estavam à espreita em nossa casa, no vizinho ao lado e, de forma muito semelhante ao que Arendt narra de acordo com o Holocausto, matar vira a lei. Aqui neste momento não, mas a banalização da falas de ódio e de violência extremada como política de segurança vão tornando a morte, movimento natural da caminhada humana como processo biológico, possibilidade de política pública de combate a violência: milícia, ok; sucateamento do SUS, ok, sucateamento das escolas públicas, ok...

Mas 2020 pegou o mundo de surpresa. O mundo todo. A Covid-19, pandemia resultante da mutação de um vírus da gripe que assolou a China, a Itália, a Espanha, e a OMS orienta o isolamento como estratégia de controle, uma vez que ainda não há medicação para conter o vírus. Vírus este que possui alto grau de letalidade.

Hoje, 05 de maio de 2020, a China conseguiu conter o avanço do vírus com quase cinco mil mortes. Os Estados Unidos[6] está com algo em torno de 71 mil mortes e o presidente do Brasil, que venceu uma eleição pautada na política da ignorância, violência não nos desaponta, apesar das sub-notificações dos casos, estamos na casa das 7 mil mortes[7] e com incentivos do presidente a burlar o isolamento social. Seus seguidores estão por toda parte, agredindo médicos, insultando professores, ameaçando funcionários: a economia é mais importante que a vida, que a saúde e Arendt é atual: o mal é banal. Minimizam as falas do presidente como se fossem algo típico das pessoas de fala simples, Ele é do povo; É bronco, fala como uma pessoa comum... Ocorre-me que já tivemos um presidente do povo, homem simples, que com intuito de menosprezá-lo, chamaram-no de “presidente analfabeto”, pois não tinha diplomas acadêmicos. Não me ocorre que este presidente minimizou a fome ou a morte das pessoas.

O mal é banal. Mas o mal também é a raiz dos interesses de uma gente que não vai baixar o padrão de vida para proteger a vida dos que limpam suas casas, educam seus filhos, cuidam do seu idosos. Que morra o lumpemproletariado. Que morra o idoso que recebe aposentadoria, depois de anos de serviços prestados, que morram as crianças que, ao crescerem, acabam por ausência de estrutura escolar, de segurança, de transporte, de alimentação e de saúde, tendo só como meio de sustento servir à classe que está acima, tal como no filme O Poço. É esperar o resto como caridade e não a partilha como justiça social. O mal é banal e racional, porque aquele que o propaga sabe o que quer. É ausência de reflexividade, porque os que permitem sua propagação, mas de fato não querem ser objeto, olham para cima, na organização de extrema desigualdade querendo ser como eles e não melhor do que eles, já nos avisou Paulo Freire.

Em termos políticos, carecemos hoje de liderança com propostas claras e assertivas para enfrentar os desafios que desde o golpe nos tomaram. A pandemia nos faz ter ainda mais pressa.

O cenário é crítico e qualquer que seja a tomada de decisão será determinante ou para dar raízes mais fortes ao mal ou para uma virada histórica.



[1] Hannah Arendt (1906-1975) filósofa política  alemã de origem judaica,  estudou profundamente os regimes autoritários, em especial, o nazismo Cobriu jornalisticamente  o julgamento de Adolf Eichmann, alto oficial alemão do Terceiro Heich, para o jornal New Yorker.   Arendt propõe uma profunda discussão sobre o pensamento autoritátro, para que ele não se repita.. Com suas contribuições para a ciência polituca,  ocupa  um papel central nos debates contemporâneos.

[2] As pessoas costumam usar LGBTQ + para significar todas as comunidades incluídas no "LGBTTTQQIAA" (LGBTQQICAPF2K+ é a sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis, Queer, Questionando, Intersexo, Curioso, Assexuais, Pan e Polissexuais, Amigos e Familiares, Two-spirit e Kink. . Para melhor entendimento, sugiro este link : https://razoesparaacreditar.com/significado-lgbtqqicapf2k/


[3]  Comida (canção gravada pela banda nacional Titãs).
[4] O problema do mal atravessa toda a reflexão da obra arendtiana e não tem relação com o aspecto religioso. Na obra de Arendt, o mal tem raízes históricas e racionais, como se pode observar nos argumentos políticos, econômicos, tal como nos regimes totalitários ( em especial o nazismo), na escravidão. Arendt pontua que nem mesmo as teorias e categorias científicas, econômicas e políticas tradicionais se mostraram suficientes para captar e explicar o nazismo. A busca por tais explicações se faz necessária para que tal horror não venha a ser repetido na história da humanidade.
[5]  Eichmann foi designado pelo SS-Obergruppenführer (general/tenente-generalReinhard Heydrich para gerir a logística das deportações em massa dos judeus para os guetos e campos de extermínio das zonas ocupadas pelos alemães no Leste Europeu durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1960, foi capturado na Argentina pela Mossad, o serviço secreto de Israel. Após um julgamento de grande publicidade em Israel, foi considerado culpado por crimes de guerra e enforcado em 1962. https://pt.wikipedia.org/wiki/Adolf_Eichmann. Consultado e extraído em 05/05/2020.
[7] Dado extraído do site do Governo Federal em 05/05/20- https://covid.saude.gov.br/

sábado, 4 de novembro de 2017

Aviõezinhos da República

Aviõezinhos da República*

George Gomes Coutinho **

Neste ano o sociólogo potiguar Jessé Souza (1960) lançou pela editora Leya o seu “A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava Jato”. O livro retoma e atualiza o conjunto de interpretações ousadas e originais elaboradas por Souza nos últimos 20 anos de sua produção sociológica, onde o exercício da crítica avassaladora dos fundamentos de justificação de nossa sociedade é o motor que guia o exercício intelectual. Para além disso, como se já não fosse pouco, “A Elite do Atraso” prossegue no exercício de intervenção pública em consonância com obras anteriores do autor: tanto em “A Tolice da Inteligência”, de 2015, quanto no ano seguinte em “A Radiografia do Golpe”, ambos os livros  lançados também pela Leya, Souza traduz para o leitor situado além dos muros da academia questões que conferem sentido ao Brasil enquanto Estado-Nação. Conferem sentido e mantém o status quo de uma das sociedades mais desiguais do planeta.

Na busca pela comunicação honesta e eficiente com o leitor não especializado, nosso autor envereda num esforço lingüístico quase olímpico. Metáforas e figuras de linguagem em geral são utilizadas tendo por meta a diminuição da distância entre a sociologia contemporânea avançada e o público alvo do livro. Destacarei uma delas. A do político como “aviãozinho”.

Souza, no seu esforço em desnudar as relações de poder do Brasil contemporâneo, faz uma analogia absolutamente didática entre elites/classe política e grandes traficantes/aviõezinhos do tráfico. Ora, os “aviõezinhos”, os que levam as drogas para os usuários, não são nem de longe os maiores beneficiários do esquema. São apenas a face mais visível e operacional de uma relação econômica onde o “dono da boca” retira seus dividendos. Justamente por sua visibilidade, não por caso, os “aviõezinhos” são os primeiros a serem mortos, presos ou humilhados.

A relação entre a classe política e a fatia dos 1% mais ricos brasileiros é análoga. A classe política “integrada” e precificada viabiliza os mecanismos institucionais e legais que mantém ou aprimora para os reais privilegiados o atual estado de coisas. A atuação política espalhafatosa é absolutamente funcional: oculta a face silenciosa e invisível de quem realmente dá as cartas.

* Texto publicado em 04 de novembro de 2017 no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 4 de dezembro de 2016

O topo da pirâmide

O topo da pirâmide*

George Gomes Coutinho **

Há tempos os críticos questionam de forma dura, por vezes irônica, o uso do termo “elite” tal como é apresentado pelos militantes dos movimentos sociais, sindicatos, etc.. Diziam, não sem alguma razão, que “elite” teria algo de amorfo, não explicava o que pretendia explicar. Afinal, conceitos devem ter a pretensão da precisão. De outro modo nada elucidam.

Neste âmbito os dados que começaram a ser divulgados este ano ainda no governo Dilma Rousseff pela Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda são bem precisos acerca de quem seria, pelo menos, a “elite econômica” brasileira. Esta mantém rendimentos que permitem um estilo de vida inimaginável para a esmagadora maioria da população.

Os dados foram elaborados utilizando informações da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio), do Censo e, a grande novidade, se pauta também pelas informações do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). É este o ponto onde podemos olhar de perto uma economia fortemente concentradora de riquezas em funcionamento, algo que dá razão a analistas que vão desde Karl Marx no século XIX até Thomas Piketty no nosso século XXI. A grande verdade é que a economia de mercado, seguindo as regras que lhe são particulares, não distribui riquezas de forma eficiente. A tendência é de concentração, salvo intervenções redistributivas por parte do Estado.

No Brasil em especial os dados sobre o “topo da pirâmide” dizem muitíssimo. Trata-se de 0,3% da população. Pouco mais de 70 mil pessoas, sendo que a projeção da população total de brasileiros para 2016 é de 206 milhões de pessoas. Esta parcela ínfima mantém rendimentos mensais per capita de mais de 160 salários mínimos. É o grupo social que paga menos impostos proporcionalmente e teve redução de alíquotas em comparação com os outros grupos de declarantes de imposto de renda. É este o grupo mais protegido pela opção de tributação adotada no Brasil, profundamente centrada na circulação de mercadorias e não na renda.

Em uma conjuntura de crise econômica os perdedores são quase sempre evidentes. Mas, há os vencedores. Estes ainda permanecem ocultos no palco da opinião pública brasileira.

* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 03 de dezembro de 2016


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes