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quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

“Tudo que é sólido desmancha no ar” e lembranças maceioenses

Porto do Jaraguá visto do bairro Farol, Maceió/AL. Fonte: Arquivo pessoal.

“Tudo que é sólido desmancha no ar” e lembranças maceioenses

 

Os membros da burguesia reprimem tanto a maravilha quanto o terror daquilo que fizeram: os possessos não desejam saber quão profundamente está possuídos. Conhecem apenas alguns momentos de ruína pessoal e geral – apenas, ou seja, quando já é tarde demais. (Marshall Berman)

Paulo Sérgio Ribeiro

Há seis anos, dizia adeus a Maceió, cidade em que aportei em 2010 e na qual posso dizer que vivi as dores e os amores que conferem alguma grandeza à vida breve e banal que levamos.

Em 2010, percorríamos um Brasil um tanto diferente do qual submergimos com o golpe de 2016 e do qual tentamos sobreviver com a chegada da extrema direita ao primeiro escalão da política nacional em 2018. A comparação de cenários poderia ser feita com diferentes chaves de leitura e os processos nela focalizados demandariam tratar de elementos da conjuntura que a especialização nas ciências sociais nos induz a enxergar como que dotados de vida própria diante das pretensões de devolvê-los à historicidade dos macroprocessos.

Longe de mim estar à altura de tais pretensões neste epílogo. Mas na Maceió que deixei para trás (e que me assalta toda vez que a pulsão de vida pede passagem...) um fato torna sua lembrança um alerta sobre as ilusões que a percepção in flux dos acontecimentos nos ocasiona ao olhar de frente o espírito da modernidade ou, melhor dizendo, a sua contraface mais impiedosa: a modernização capitalista. 

Uma premissa: o espírito da modernidade é uma expressão objetiva do domínio do capital e das ruínas deixadas para trás com o suceder das suas crises de acumulação. O fato: Maceió está afundando. 

Os bairros Pinheiro, Bebedouro, Mutange, Bom Parto e Farol estão literalmente afundando, resultado de mais de 40 anos de exploração das minas de sal-gema que os circundam pela empresa petroquímica Braskem. O drama derivado desse crime continuado se traduz em mais de 65 mil famílias expulsas de suas residências, quase cinco mil empreendedores que perderam renda e, sem alternativa, demitiram cerca de 30 mil trabalhadores. Pasme, a degradação do solo urbano é de tal monta que se registrou um terremoto de 2,5 graus na escala Richter na capital alagoana em 2018[1].

Ter lido essa notícia me remeteu a uma célebre passagem do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, que tomei de empréstimo para o título:

“Tudo que é sólido desmancha no ar”.

Marx e Engels imprimiram naquele panfleto um autêntico testemunho das esperanças do oitocentos europeu atribuíveis à liberação das potencialidades humanas com o alvorecer da civilização burguesa sem, entretanto, ocultar seu fundamento na inevitável destruição dos modos de vida sob um sistema econômico cuja expansão ignora limites da vida material e destrona interdições da moral e da cultura tanto em vilarejos quanto em megalópoles.

Rever, pois, o desenvolvimentismo presente no Manifesto Comunista permite olharmos para a circunstância dos homens e mulheres maceioenses sem subestimar o enfrentamento das contradições que lhes atravessam e que, na referida obra, já se insinuavam na avaliação quase apologética da capacidade transformadora que a burguesia, enquanto classe que um dia foi revolucionária, revelaria ao mundo. Para tanto, nada melhor do que revisitar Marshall Berman, notadamente pelo modo como ele captou a dimensão fáustica de nossa civilização que o Manifesto ajudaria a iluminar.

Para o filósofo estadunidense, a maneira como Marx e Engels se deixavam levar pela torrente da vida moderna é a um só tempo crítica e “cúmplice” das revoluções burguesas. Em meio a acelerada transformação que delineava os contornos mais abrangentes da modernização capitalista – a emergência de um mercado mundial e a produção de massa capitalista que promoviam o êxodo de famílias campesinas despossuídas para engrossarem o proletariado das áreas urbanas cuja paisagem, por sua vez, confundia-se com as fábricas que tanto absorviam quanto solapavam os antigos mercados locais –, havia na verve incendiária de Marx a evocação de um ativismo burguês que, lembra Berman, surpreende o leitor do Manifesto por deixar os seus contemporâneos a um só tempo “excitados e perplexos”[2] ao descrever como a mudança social espelhada por aquele ativismo nos defrontava com a vida moderna enquanto uma “construção móvel que se agita e muda de forma sob os pés dos atores”[3]. Berman vai além:


O que é surpreendente nas páginas seguintes é que Marx parece empenhado não em enterrar a burguesia, mas em exaltá-la. Ele compõe uma apaixonada, entusiasmada e quase lírica celebração dos trabalhos, ideias e realizações da burguesia. Com efeito, nessas páginas ele exalta a burguesia com um vigor e uma profundidade que os próprios burgueses não seriam capazes de expressar (BERMAN, 1986, p.90).

Ora, mesmo em um autor não propriamente marxista como Yuval Harari, podemos escutar os ecos dessa revolução permanente quando o historiador israelense ressalta – de modo um tanto contraintuitivo[4] para consciências alardeadas pela crise climática – que o estoque de energia disponível no planeta não parou de crescer desde quando aprendemos a converter um tipo de energia em outro, viabilizando, pois, as bases técnicas para mudanças dos modos de produção as quais, para o bem e para o mal, permitiram ao gênero humano estender sua barganha com a natureza.

Por óbvio, devemos nos perguntar quais seriam os termos dessa “barganha” e até quando poderemos nos valer dela. 

Na obra de Marx, há um otimismo diante da janela histórica aberta pela revolução burguesa, a ponto de o pensador alemão arriscar a própria pele na organização do movimento operário europeu para contrapor-se às iniquidades da nova ordem do capital. Se assim o foi, indagaria o leitor, por que cargas d'água o “velho barbudo” quis enaltecer aquela revolução, se a ordem social que a sucedeu não teria outra consequência senão a mais atroz desumanização do trabalho? Haveria uma contradição em termos no Manifesto Comunista?

Berman observa que importava menos para Marx as inovações tecnológicas sobrevindas com o capitalismo e mais o dinamismo da civilização burguesa. O constante revolucionar dos meios de produção não deixaria margem à sacralização de um passado como o do ancien régime. De fato, a burguesia foi a primeira classe dominante cujo poder se estabeleceu não pela aceitação passiva das relações hierárquicas em uma estrutura social, mas pela pressão de inovar ativamente seus negócios em resposta à diuturna competição de uma economia de mercado. Ao fazê-lo, desvelaria um escopo inaudito da atividade humana promovendo uma “perpétua sublevação e renovação de todos os modos de vida pessoal e social”[5].

Contudo, esse novo ideal de “vida ativa” concernente à burguesia não poderia ser contemplado em todas as suas possibilidades, pois o seu papel revolucionário seria rapidamente suprimido pela redução de todos os processos ativos e esforços humanos que impulsionou a um único significado, a mercadoria, e a único propósito, acumular capital. Berman reconhece em Marx o seu débito com o “ideal desenvolvimentista da cultura humanística alemã”[6], uma tradição intelectual da qual ele se filiou de uma maneira sui generis: assimilando a estrutura de personalidade requerida pela economia burguesa ao mesmo tempo em que se fazia seu mais contundente crítico ao tentar “fazer história” formulando uma via emancipatória para os trabalhadores.  

O drama da modernidade, visto pelo prisma do materialismo histórico, é que realmente ninguém está alheio àquela estrutura de personalidade e que mudanças, por catastróficas que sejam, apenas confirmam que atividades humanas cada vez mais sofisticadas – como o extrativismo de minério em uma área urbana densamente povoada como a operada pela Braskem em Maceió – não têm um significado em si mesmas, pois são apenas meios para a consecução de um fim – fazer dinheiro , reservando às milhares de pessoas atingidas pela negligência a favor do lucro a impossibilidade de exercer a vida activa com a fluidez que uma sociedade supostamente aberta como a da economia de mercado estimularia.

A metamorfose do capital – sua transitoriedade quanto aos ramos de atividade em que é reinvestido –, será traduzida no futuro breve pelos novos anúncios do mercado imobiliário para a reconstrução dos bairros maceioenses afetados pela ação predatória da Braskem. Uma ordem grão-burguesa se consolida a despeito de vidas humanas e não-humanas serem aniquiladas por vorazes empreendimentos nas cidades litorâneas brasileiras como, entre tantos outros exemplos, construir torres residenciais fincadas no mar de Salvador[7]; o projeto de urbanização para o cais José Estelita, em Recife[8]; além claro do mundo bizarro criado com o alargamento da faixa de areia em Balneário Camboriú, em Santa Catarina[9].

A noção de “colapso” com a qual o noticiário reveste os dias de agonia na capital alagoana pode ser enganosa. Não há evidência alguma de que o que ocorre em Maceió e alhures seja um esgotamento da capacidade de o capital assumir novas formas em sua autodestruição inovadora. Mas esse prognóstico não nos desestimula a indagar, perante impactos ambientais cada vez mais severos, quais são as alternativas emancipatórias às “soluções” das grandes corporações cujo modelo econômico de sempre é agora requentado pelo discurso da transição verde”.



[1] Brasil 247. Documentário de Carlos Pronzato sobre o crime da Braskem que está afundando Maceió terá pré-lançamento em São Paulo. Edição de 19/07/2021. Disponível aqui.

[2] Cf. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido demancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1986, p.89.

[3] Idem.

[4] “O volume de energia armazenado em todo combustível fóssil na Terra é insignificante quando comparado ao volume que o Sol fornece todos os dias – e de graça. Embora apenas uma pequena fração de energia solar chegue até nós, ela equivale a 3 766 800 exajoules de energia a cada ano. [...] Todas as atividades humanas e indústrias combinadas consomem cerca de quinhentos exajoules por ano, o equivalente ao volume de energia que a Terra recebe do Sol em meros noventa minutos. E isso diz respeito apenas à energia solar. Além dela, estamos cercados de outras enormes fontes de energia, como a nuclear e a gravitacional – esta última mais evidente no poder das marés oceânicas causadas pela atração que a Lua exerce sobre a Terra”. Cf. HARARI, Yuval. Sapiens. Uma breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 359.

[5] Cf. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido demancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1986, p. 92.

[6] Op. cit., p.94.

[7] Blog  Nem amigo nem inimigo. A miamização da BTS. Acesso aqui.    

[8] Jornal Metrópoles. Sob críticas sociais e Lava-Jato, o Cais José Estelita, em Recife, é um problema. Edição de 23/05/2019. Acesso aqui.

[9] Diário do Centro do Mundo. Alargamento da faixa de praia consolida Balnerário Camboriú como o retrato escarrado da jequice bolsonarista. Edição de 28/08/2021. Acesso aqui

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

O genocídio palestino e nós: da má consciência à coragem moral


O genocídio palestino e nós: da má consciência à coragem moral

Paulo Sérgio Ribeiro

Em 2021, sobrevivíamos ao terceiro ano da Era Bolsonaro sob a ameaça permanente de uma pandemia ou, precisamente, aos crimes contra a humanidade perpetrados pela extrema direita então no poder. Os efeitos deletérios dessa crise ainda se fazem sentir em diferentes domínios da vida brasileira e revelaram ao mundo toda a brutalidade da frente neocolonial avalizada pelo Governo Bolsonaro sobre os nossos povos indígenas. Naquele momento, não hesitamos em seguir o argumento (ver Genocídio, por quê?) que imputava aos próceres daquele governo o genocídio indígena.

Iniciada a discussão, propus a um competente (e amigo) antropólogo que lhe desse continuidade com todo o repertório que, supunha eu, a antropologia brasileira dispõe sobre a questão indígena, mas ele declinou. A seu ver, a tarefa requereria um olhar mais experimentado do que as escolhas profissionais que fez permitiria ter e, em nome da honestidade intelectual, optou por deixar o assunto a quem lhe oferecesse uma dedicação à altura das exigências que o “fazer carreira” nas ciências sociais pressupõe (ou impõe).

Sejamos justos: mesmo uma opinião com rudimentos sociológicos pede um ponto de vista menos voluntarista sobre a agenda pública do momento, pois é inevitável confirmar o que Bourdieu certa vez sentenciou: a opinião pública “não existe”. Ora, se não podemos mesmo ter opinião sobre todo e qualquer assunto, não é tão óbvio assim que precisemos ser passivos à articulação dos interesses materiais e ideais que nos afetem como partícipes da história do tempo presente e, deste modo, gostaria de esboçar esta reflexão a partir da fatídica constatação de que somos testemunhas de outro genocídio, o dos palestinos sitiados em Gaza, elegendo a ética da Modernidade como posição irredutível.

Aos não “iniciados”: do que se trata a “ética da Modernidade”? Partindo aqui muito ligeiramente da abordagem de Habermas, poderíamos delinear essa ética pelo caráter responsivo que os “tempos modernos” exigem de cada um de nós perante a História, uma vez que a ruptura promovida pela era moderna é justamente a impossibilidade de fundamentarmos em outras épocas que não seja a atual uma orientação normativa para as nossas vidas, já que embarcamos, ao menos desde as grandes navegações no século XVI, em um processo de mudança social cujo moto contínuo é a sempre renovada expectativa do “novo”, abrindo, pois, todas as comportas da subjetividade humana.  

Contudo, essa viagem sem volta dos homens e mulheres modernos não é um vale-tudo: viver em um regime de historicidade em que não há mais uma fonte de sentido unitária para quaisquer preceitos e regras, tal como a religião um dia prometeu ser de maneira inconteste, fez com que ganhássemos um bônus e pagássemos um tributo, respectivamente, a autonomia do pensamento como o lócus do direito à crítica em um mundo onde não há um recôndito sequer da realidade que não possa ser posto em questão em um debate reconhecido por todos; e a vacuidade da condição moderna onde, não raro, vemos a nós mesmos “à deriva” com essa ausência de um elemento unificador das múltiplas filiações valorativas a que estamos sujeitos desde então.

Copo metade cheio, metade vazio, eis que somos instados a fazer escolhas e estas, para retomar o fio da discussão, têm uma inegável dimensão ética, sobretudo para quem não se vê obrigado a abrir mão do potencial crítico da Modernidade para adotar posturas dúbias como, por exemplo, a de quem presume (simulando até um certo charminho crítico) que todos os discursos sobre as relações entre o Estado de Israel e o povo palestino em Gaza e na Cisjordânia são verossímeis por terem igual pretensão de validade e, logo, caberia a quem está longe das chamas e dos destroços nada além do que isenção de ânimo. Afinal de contas, já temos problemas de sobra no Brasil para nos ater à geografia do Oriente Médio. Ademais, alguém de boa-fé poderia complementar: como não subestimar a complexidade daquele conflito sem se deixar levar pela propaganda de guerra de Israel nem pela retórica do Hamas?  

Eis uma resposta: ainda que nós, cientistas sociais, não deixemos de explorar todos os recursos semânticos possíveis da língua, materna ou não, em que desenvolvemos a nossa ciência para sermos eficazes na comunicação dos seus resultados perante nossos pares ou, em alguns casos, para sermos lembrados pelo mercado editorial, nem por isso a busca da verdade se deixa sacrificar pelo mero uso da retórica. Noutros termos, a verdade de uma proposição sobre a questão palestina não se confunde com um conjunto de crenças de um determinado público como a audiência cativa das mídias corporativas que se copiam no dito mundo ocidental retroalimentando o seu público com toda sorte de preconceitos sobre o mundo árabe e muçulmano.

A verdade, apreciável à luz de fatos históricos suficientemente documentados, ainda importa. Afirmar isso nos dias que correm não é só uma veleidade iluminista, mas sobretudo um ato de coragem moral. Não haveria exemplo mais bem acabado do que seja essa coragem do que o de Norman Finkelstein, cientista político estadunidense e judeu antissionista que, diante de uma ruidosa plateia alemã em 2008, desnudou as inversões ideológicas de alguns estudantes ali presentes sobre a opressão racista do Estado de Israel nos territórios palestinos ocupados:


Ser oriundo de uma tradição como o judaísmo e não ser cúmplice da sua distorção sob a forma de um verdadeiro apartheid do povo palestino mantido sem disfarce algum na expansão territorial de Israel com o advento do seu Estado étnico (1948) talvez seja a mais solitária das missões que um intelectual público possa vir a se comprometer. Mas para Finkelstein a condição moderna ainda traduz uma promessa de emancipação que valha a pena insistir ao aderir à solidariedade e ao internacionalismo quando defronta-se com a circunstância igualmente solitária dos povos – indígenas, no Brasil; palestinos em Gaza e na Cisjordânia – que vivem os horrores do imperialismo e do colonialismo no século XXI.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Greta Thunberg e a consciência social do nosso tempo


Greta Thunberg e a consciência social do nosso tempo

Paulo Sérgio Ribeiro

Iniciando os trabalhos em 2020, penso ser oportuno falarmos de Greta Thunberg, particularmente das tentativas de desqualificar sua intervenção na agenda ambiental.

Desde que recusou-se a frequentar a escola às sextas-feiras na longínqua Estocolmo para sentar-se diante do Parlamento à espera de medidas concretas contra o aquecimento global, tal iniciativa ganhou simpatia e adesão de outros jovens suecos e, doravante, repercussão em todas as latitudes do globo. De um protesto inusitado e inicialmente solitário, tomou vulto uma ação coletiva que conferiu a uma ainda adolescente – Greta completou 17 anos em janeiro deste ano - um assento em encontros relevantes tais como a Conferência do Clima da ONU e o Fórum Econômico de Davos e, não menos, notoriedade para uma indicação ao Nobel da Paz em 2019.

Contudo, o eixo de sua vida pública, por revelar os desdobramentos imprevisíveis e manifestamente catastróficos da relação entre sociedade e natureza que negligenciamos sob os princípios do desempenho, no plano individual, e do produtivismo, no plano societário, tem causado reações agressivas da extrema-direita que, atualmente, ganha proeminência no mainstream político da Europa e alhures.

Há duas razões, congruentes ente si, para o incômodo que Greta provoca em líderes ultraconservadores – Donald Trump, entre outros -, bem como para a perplexidade que seu ativismo desperta em cidadãos comuns: a) a possibilidade de delimitar um lugar não subalterno ao jovem na luta política; e b) o mal-estar que a questão ambiental suscita em nossa consciência diante da perspectiva de futuro que cultivamos no Ocidente.

No tocante ao item “a”, podemos dizer que, ao seu modo e circunstância, Greta filia-se a uma corrente de pensamento que encontra na rebeldia de jovens de classe média e alta sua expressão política e na revolução cultural experimentada nos anos 1950 e 1960 sua primeira feição paradigmática. Naquele cenário de época, rebelar-se contra as normas de conduta, longe de ser uma frivolidade juvenil, confirmava um sintoma da crise derradeira dos valores tradicionais e, tão logo, assumiria ares de ameaça real a uma ordem sócio-política cujos fundamentos jamais teriam na lealdade a gerações passadas um critério de legitimação.

Ora, alguém indagaria, então Greta Thunberg seria uma versão rediviva dos hippies ou beatniks? Seguramente, não. Todavia, como eles, Greta escancara uma obviedade: pôr em dúvida crenças arraigadas sobre as formas de agir no mundo será sempre um risco intolerável em dada estrutura de poder, pois esta assim se institui e perdura no tempo quando uma visão de mundo orienta os atos humanos sem a consciência dos seus agentes.

Em quaisquer épocas, é plausível supor, indivíduos ou grupos considerados “desviantes” são, no melhor dos casos, punidos socialmente com toda sorte de estigmatização. Aos olhos vigilantes de quem fala (ou é feito de ventríloquo...) em nome do status quo, a solidariedade social dependeria, pois, do controle estrito de quem “ouse” pensar para além do consentido.

Ora, por que imputar à Greta a alcunha de “pirralha”, se ela prova sua maioridade ao valer-se do próprio intelecto para julgar um fato sem concessões à autoridade do instituído?

Qual fato? A destruição irreversível do meio ambiente donde a vida humana retira sua condição de existência. Aqui, tocamos no item “b” que elencamos. Se, de um lado, temos uma perspectiva de futuro que toca o âmago da Modernidade, por outro, deparamos com a necessidade de matizá-la diante das contradições do capitalismo que se avolumam no tempo presente.

A perspectiva de futuro à qual aludimos é, sobremaneira, uma perspectiva utópica. Foi Jürgen Habermas quem magistralmente delineou a indistinção entre tempo histórico e utopia como traço exemplar da modernidade[1]. Para o filósofo alemão, o que nos singulariza como homens e mulheres modernos(as) é sermos partícipes de uma cultura que destronou a ideia cristã de um novo tempo como a “eternidade vindoura” para substituí-la por um horizonte de valores que encontra em nossa própria época uma configuração do futuro.

Noutros termos, a atualidade condensaria expectativas de mudança que não mais extraem de outras épocas as orientações normativas para prognósticos sobre problemas mundiais. “Abandonada a si mesma”, diz Habermas, a modernidade implica que enfrentar dilemas contemporâneos torna-se uma verdadeira “fuga para a frente” na qual eventuais virtualidades de uma tradição só ganhariam pertinência se justificadas por formas de pensar em permanente revisão. Esboçar projetos e programas, pois, traduzir-se-ia em disputar uma ideia de futuro.

Não obstante, as “energias utópicas” - que, há menos de um século, ainda comprometiam a luta política com a ideia de que poderíamos mobilizar recursos do próprio processo histórico no e pelo qual se vislumbrava estabelecer uma direção consciente - parecem ter chegado ao fim.

Tal sensação de esvaziamento da modernidade como experiência de significado também é debatida por Paulo Arantes. Em “O novo tempo do mundo”[2], o filósofo brasileiro desnuda o cenário da falência da sociedade do trabalho ao dimensionar a insegurança (não apenas econômica, mas, sobretudo, ontológica) que acomete populações inteiras, uma vez que estão condenadas a um estado de espera justamente porque não há mais uma grande narrativa histórica que sirva de lastro a uma grande expectativa. No lugar desta, vigora um encurtamento do futuro como promessa realizável. Nas palavras de Arantes:


Não basta anunciar que o futuro não é mais o mesmo, que ele perdeu seu caráter de evidência progressista. Foi-se o horizonte do não experimentado. Com isso o próprio campo de ação vai se encolhendo[3].


Ora, a sociedade de risco produzida pelo tempo intemporal da acumulação capitalista que coabita com uma espécie de tempo morto, isto é, o horizonte de expectativas frustradas de quem está coagido estruturalmente a esperar por nada ou, se muito, por um ganha-pão é, também, uma época de insurgência, pois, se o futuro figura como uma zona de incerteza, o impulso para a superação não será hipotecado para quando já estivermos mortos.

Parafraseando Arantes, Greta Thunberg e seus pares aceitaram o desafio de reencontrar o “futuro perdido” na justa medida em que a crise ecológica não os convida a adiar a tarefa. Apocalípticos? Não, apenas realistas.


[1] HABERMAS, Jürgen. A nova intransparência: a crise do Estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas. Novos Estudos CEBRAP, nº 18, set. 1987, pp. 103-114.
[2] ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
[3] Op. cit., p.96.