terça-feira, 24 de novembro de 2020

Entrevista - Campos refletida entre Wladimir e Caio como espelho do Brasil e do mundo

Fonte: Jotônio Vianna (aqui).

Entrevista - Campos refletida entre Wladimir e Caio como espelho do Brasil e do mundo*

 

Aluysio Abreu Barbosa

 

“Campos é o espelho do Brasil”? Na afirmativa, a frase é atribuída ao ex-presidente Getúlio Vargas, cujo legado ainda hoje divide cientistas sociais e cidadãos comuns. Como a cidade se dividiu, além do rio Paraíba do Sul que a formou, entre duas candidaturas na disputa do segundo turno a prefeito de Campos: Wladimir Garotinho (PSD) e Caio Vianna (PDT). Para saber o que esperar caso um ou outro vença o pleito final de 29 de novembro, a Folha ouviu, em ordem alfabética, o antropólogo Carlos Abraão de Moura Valpassos, professor da UFF-Campos; o advogado Carlos Alexandre de Azevedo Campos, professor da Uerj e Isecensa; a assistente social Erica Almeida, professora da UFF-Campos, a historiadora Guiomar Valdez, professora do IFF; e o cientista político Marcio Malta, professor da UFF. Além dos dois protagonistas do pleito, outros atores também estiveram sob análise, como sua revelação, a Professora Natália (Psol), e o atual prefeito, Rafael Diniz (Cidadania). Assim como a judicialização das urnas campistas de 15 de novembro, o monopólio masculino da nova Câmara Municipal “renovada” e o principal problema da cidade: sua grave crise financeira, em contraste com a miséria entre campistas que ela já gera. A partir de Campos, os cinco entrevistados deste painel também refletiram sobre a política do Brasil e do mundo.

---

Folha da Manhã – É atribuída ao ex-presidente Getúlio Vargas a frase: “Campos é o espelho do Brasil”. Considerando as três últimas eleições, isso parece realmente ter se dado, com a busca do “novo” no pleito local a prefeito de 2016 e no presidencial, de 2018, para se refletir em 2020 no movimento de retorno à aparente segurança de nomes e grupos políticos tradicionais. Como você enxerga esse movimento na cidade e no país? Quais seriam suas causas?

 

Carlos Abraão Moura Valpassos – A frase sugere a ideia de que é possível pensar a questão “macro” através da análise do “micro”. Campos é influenciada pelo contexto nacional e, nesse sentido, reflete o Brasil, país que sofreu uma crise econômica e política ao longo da década de 2010, que resultou em um aumento drástico das taxas de desemprego e pobreza. Quando somamos a crise econômica às denúncias de corrupção e sua exploração coordenada através da internet, observamos uma forte rejeição aos mandatários do poder, novos atores foram então eleitos, não superaram a crise e prepararam o retorno de seus opositores.

 

Carlos Alexandre de Azevedo Campos – Acho as causas relativamente parecidas, nunca idênticas. Em Campos, além dos problemas jurídicos com Garotinho e Rosinha, tivemos problemas de gestão mesmo, de descontentamento. Rafael apareceu como uma nova política, mas não teve o sucesso esperado na gestão, não obstante eu entendo que tenha se empenhado. Problemas de gestão não permitiram a sua reeleição. No Brasil, Bolsonaro também apareceu como nova política, mas não só isso. Bolsonaro fez com que todo tipo de reacionarismo saísse do armário, ou seja, também representou uma virada ideológica. Hoje, acho que seus exageros ideológicos e sua falta de gestão fazem com que ele perca votos com o grande grupo não extremista que votou nele anteriormente, e isso pode fazer com que ele tenha o mesmo destino de Rafael. Os ciclos podem vir a ser os mesmos, mas as causas são só parecidas.

 

Erica Almeida – Não é sempre que a conjuntura nacional interfere nas eleições municipais. Todavia, as últimas eleições, para presidente e governador, em 2018, e para prefeito em 2016 e neste ano, não podem ser pensadas sem considerarmos as ações da Lava Jato e seus desdobramentos na política, particularmente, contra o PT e o impeachment da presidente Dilma. Além disso, também tivemos neste período a prisão do Cabral, as denúncias contra Pezão, Witzel e contra a gestão da prefeita Rosinha. Como se vê, foi um contexto marcado pela retórica contra a corrupção e que, de modo geral, teve um impacto nas escolhas dos eleitores, relegando as trajetórias e as pautas políticas.

 

Guiomar Valdez – Do ponto de vista da História não temos respostas ainda consistentes nesta conjuntura destacada. Entretanto é possível que suas causas estejam na convergência da crise do capitalismo a partir de 2008, perene, e não mais cíclica, com uma crise terminal da Nova República, abrindo uma transição com os infortúnios da insegurança. Assim, compreendo no Brasil e em Campos, que o “novo” confunde com o passado como segurança; que o “novo” se confunde com monstruosidades políticas. Situações típicas de períodos de transição, onde o “novo” não nasceu e o “velho” ainda não morreu. Daí…

 

Marcio Malta – As eleições de 2018 foram impulsionadas por muita fake news e uso indevidos das redes sociais, com impulsionamentos pagos indevidos. O fenômeno na verdade foi mundial e deu margem para aventureiros chegarem ao poder. A sociedade aprendeu com a experiência negativa e rechaçou esse campo nas eleições de domingo. Além do bolsonarismo, o neoliberalismo e seus desastres na economia, com sua prática de ajuste fiscal, também não tiveram vez.

 

Folha – Em uma série de 11 painéis (confira-os aquiaquiaquiaquiaquiaquiaquiaquiaquiaqui e aqui), entre 18 de julho a 26 de setembro, a Folha ouviu 34 representantes da sociedade civil organizada, entre especialistas em economia, finanças, ciência política, sociologia e antropologia, além de gestores universitários, sindicalistas, empresários e juristas, sobre a crise financeira do município. Que pode ser resumida em um orçamento para 2021 entre R$ 1,5 bilhão a R$ 1,7 bilhão, com previsão total de gastos de quase R$ 2 bilhões, sendo R$ 1,1 bilhão só com folha de pagamento de servidor. Como fechar essa conta?

 

Abraão – A conta não fecha e não vai fechar. A cidade precisa criar receitas e para isso atrair a instalação de fábricas e indústrias, estimular o comércio, favorecer a agricultura familiar, incentivar a pesca artesanal e atacar em todas as frentes possíveis, em uma movimentação em diferentes multifacetada. É importante destacar o papel crucial desempenhado pelos servidores públicos em Campos, pois eles prestam serviços essenciais e também possuem autonomia em uma cidade marcada pelo clientelismo. O ataque aos servidores pode proporcionar ainda mais manipulação política.

 

Alexandre – Como disse anteriormente, mesmo com cortes de gastos de pessoal terceirizado e com algum aumento de arrecadação tributária, o novo governo vai precisar contrair empréstimos públicos. Buscar verbas federais também será fundamental. Salvo essas medidas, a conta não fechará.

 

Erica – Em entrevista, o prefeito eleito de Cabo Frio (PDT) disse que o servidor público não pode ser penalizado, nem com cortes de salário, nem com atrasos, porque são eles que realizam o governo. Penso que ele está certíssimo e que nós precisamos refutar as teses neoliberais sobre Estado mínimo, ajuste fiscal e avanço das privatizações. Somos um município com muitos problemas no que se refere ao emprego, à renda, aos direitos sociais fundamentais como infraestrutura urbana, mobilidade, saúde e educação. Defendo que o governo local se volte prioritariamente para estas questões revendo contratos abusivos, a dívida ativa e os excessos com relação aos terceirizados.

 

Guiomar – Vou responder sem muito entusiasmo sobre esse desafio. Porque a superação passaria por uma radical ação de transparência e honestidade do Executivo com a população e seus servidores, tratando do histórico da crise de forma clara e objetiva, do atual déficit orçamentário, bem como, organizá-los pedagogicamente em busca do consenso e de proposições juntamente com o quadro de especialistas. Novos investimentos e atividades econômicas e a articulação com as universidades estariam neste horizonte. O segundo turno, “é o novo que é passado”, logo, incapacitados para ousar novas formas de gestão pública.

 

Marcio – A questão não se resume a contas matemáticas. É preciso responsabilidade, mas não necessariamente com austeridade fiscal. É fundamental impulsionar a economia local, com uma perspectiva desenvolvimentista, pautada na inclusão de setores que passaram ao largo da história. A criação de uma moeda local, do turismo, fortalecer o comércio e indústria são algumas das medidas que poderiam estar no horizonte. Os temidos programas sociais podem auxiliar a roda da economia campista. Outro aspecto fundamental é não depender exclusivamente do petróleo, pois o preço dessa commodity é extremamente volátil.

 

Folha – No lado mais cruel da crise, Campos tem mais de 40 mil famílias na extrema pobreza. Condição que se acentuou com as crises sanitária e econômica da Covid-19, e pode ser vista no grande número moradores de rua em todos os pontos da cidade. Com déficit municipal estimado para 2021 em R$ 17 milhões/mês, como dar assistência social a essas pessoas, mantendo a atual folha de pagamento de pessoal e número de equipamentos municipais?

 

Abraão – Acho necessário levantar questões: alguém, conhecendo o histórico de nossa cidade e de nosso país, acredita, sinceramente, que o corte na folha de pagamento de pessoal e de equipamentos municipais vai, de fato, ser revertido em assistência social? Quando tivemos fartura, investimos em assistência social sólida e equipamentos municipais relevantes, que se converteriam em legados para as próximas gerações, ou assistimos ao gasto em serviços que se desmancharam rapidamente e em equipamentos “cruciais” como o Cepop e os arcos da Beira-Valão? Campos precisa de administração séria e novas receitas; não de novos bodes expiatórios.

 

Alexandre – Penso ser essencial que o novo governo reserve parte do orçamento para retirar essas pessoas das ruas, o que pode ser feito mediante aluguel social. Alimentação e tratamento de saúde também serão essenciais. Deve também buscar parcerias privadas para oferta de empregos mediante a criação de novas atividades. Deve priorizar gastos com essas pessoas, seja por razões de dignidade, seja pelos benefícios sociais em geral, inclusive no campo da redução de violência. Penso ser uma prioridade orçamentária. Uma opção política quase obrigatória ante os efeitos nefastos da Covid. Remanejar gastos orçamentários para tanto será necessário.

 

Erica – O governo atual foi o que menos gastou em Assistência Social, ainda que o município atravessasse uma das suas mais graves crises sociais desde os anos de 1980.  Em março de 2020, estima-se, que os extremamente pobres, ou seja, aqueles que vivem com uma renda familiar mensal de até R$ 89,00 por cabeçaatingiram 21,43% da população de Campos. Em 2010, eles eram apenas 3,67%. Isso é motivo suficiente, para que o novo governo junto com a sociedade civil estabeleça um pacto político que privilegia a vida, a segurança alimentar, a saúde e a educação das nossas crianças e jovens e não o inverso. É preciso hierarquizar as prioridades e proteger os mais vulneráveis.

 

Guiomar – O pano de fundo seria uma política de honestidade e de transparência “dos números” de forma qualitativa estabelecendo as prioridades. É importante desmistificar a Lei de Responsabilidade Fiscal e outras legislações que estabelecem o limite de gastos com pessoal. Para cortes não bastariam os números dos gastos “em si e isolados”, isso que caracterizaria a qualidade nas decisões. Ter o desafio orçamentário e o programa do eleito como referência na Assistência Social e os servidores públicos concursados da área como consultores e propositores das prioridades, dos gastos e até dos cortes.

 

Marcio – No tocante à folha atual de pagamento é preciso acabar com os RPAs e estabelecer concursos públicos. Os equipamentos municipais quando bem administrados não são um problema em si. O Palácio da Cultura é um exemplo, foi reformado recentemente e poderia estar em pleno uso da população. Parece ser uma lógica invertida, onde não é priorizado o bem-estar da população. A pobreza em Campos é estrutural, mas foi agravada com a gestão neoliberal da atual Prefeitura, que fechou espaços fundamentais no combate à fome, como o Restaurante Popular. É preciso gerar emprego e incentivar mecanismos de transferência de renda.

 

Folha – De volta à questão político/eleitoral, como analisa a renovação de 80% da Câmara Municipal? Foi um movimento inverso, no pleito proporcional, do eleitor que na majoritária optou pelo retorno das duas principais oligarquias políticas da cidade? Olhando as 21 caras da nova Câmara, à exceção dos quatro reeleitos, há outros quatro que já foram vereadores e cinco nomes novos que representam velhos ocupantes, além da cadeira cativa em rodízio entre pastores da Igreja Universal. Esse novo é tão novo assim?

 

Abraão – É preciso destacar que existe uma prática, já antiga, de os vereadores indicarem seus aliados políticos para ocuparem postos de trabalho na Prefeitura. Desse modo, cada vereador acaba por “empregar” na Prefeitura um contingente de pessoas. Entendo que a eleição de vereadores acaba por colocar em oposição pessoas que possuem perspectiva de terem seus interesses atendidos por seus candidatos. E que os candidatos que apresentam maior capacidade de retribuição, de modo personalista, do apoio político recebido, acabam obtendo maior apoio e, consequentemente, sendo eleitos. Não observei mudança significativa nos atores dessa antiga peça.

 

Alexandre – Não vejo assim que o campista escolheu voltar ao velho na eleição majoritária. Não sou tão cruel assim com o fator hereditário. Filhos não devem carregar para as suas vidas os erros dos pais, nem serem punidos para tanto se não colaboraram com os erros. Não gostei do governo de Arnaldo; já disse aqui que, para mim, foi o pior de todos. Mas não culpo o seu filho por isso. De Caio, sei apenas que ele não possui qualquer experiência. Também não gostei dos governos de Garotinho e Rosinha, já os derrotei algumas vezes no Judiciário. Mas não atribuo a Wladimir qualquer culpa por eles. Ao contrário, acompanhei com grata surpresa o ótimo desempenho dele como deputado federal. Acho que o segundo turno é meio que uma renovação que fora desenhada desde a eleição passada, e que se firmou por conta dos problemas de gestão de Rafael. Sobre a Câmara, concordo que não há tanta novidade. Na realidade, muito pouca novidade. Acho que houve a dança das cadeiras natural, própria de Campos.

 

Erica – Parece que esse movimento de pulverização das siglas partidárias se deu em todo o país e, mais uma vez, eu penso que ele tem uma relação direta com as novas coalisões políticas que se desenharam a partir do impeachment da Dilma. Embora os acordos locais tenham uma certa autonomia, eles não são completamente descolados das alianças políticas nas escalas estaduais e nacional. E mesmo que o eleitor tenha escolhido nomes novos no cenário político local, os partidos não o são e muito menos as suas plataformas, basta observar a ausência das mulheres e de outros segmentos.

 

Guiomar – É fato o movimento inverso entre proporcional e majoritária. Nem sempre renovar, mudar, significam avanços qualitativos, superação de uma política para melhor, social e eticamente mais justa. Volto ao meu ponto de vista de que vivemos uma transição e à afirmação de Vargas acima citada: “Campos é o espelho do Brasil”. Ora, uma avaliação lúcida do pleito eleitoral local e nacional permite indicar o “retorno da política tradicional” com rostos novos e o crescimento dos partidos de direita e de centro-direita. Não é isso que está posto em nossa Câmara? Esse “novo” é “uma roupa que não se veste mais”!

 

Marcio – Esse é o paradoxo da tão apregoada renovação. Muitas vezes o novo já nasce velho. Campos perdeu uma oportunidade de renovar de verdade, tirando figurões tradicionais da Câmara Municipal. O sistema eleitoral possui barreiras difíceis de serem suplantadas, como a dificuldade do financiamento das campanhas, que ainda convivem com práticas clientelistas como a compra dos votos. E por último, é necessária uma mudança de mentalidade, saber da importância do Legislativo em fiscalizar o Executivo e propor leis que engrandeçam a cidade.

 

Folha – Outro questionamento na nova Câmara é a ausência de mulheres. Para uma cidade que tem Benta Pereira como heroína histórica e uma Casa do Povo cuja participação feminina foi inaugurada por uma negra, Hermeny Coutinho, em 1971, seguida de Antônia Leitão, eleita em 1972, passando em tempo mais recente por edis também atuantes, como Ivete Marins, Beth Couto e Odisséia Carvalho, entre outras, o monopólio masculino é um retrocesso? Por quê?

 

Abraão – A política em Campos reflete aspectos clientelistas, patrimonialistas e personalistas que estão no Brasil desde o nascimento de nossa República. Nesse contexto, esquecemos que a administração pública é… pública… e por isso deveria atender a diferentes interesses e necessidades presentes na população. Quando não temos mulheres na Câmara, questões importantes relativas às demandas femininas deixam de ser vislumbradas. O monopólio masculino na Câmara significa que demandas sociais legítimas, de parcelas significativas da população, não serão contempladas. A perda de diversidade representativa é a perda de diversidade em serviços e leis.

 

Alexandre – Um baita retrocesso. Acho que faltaram candidatas mais novas, com boa expressão política como a Professora Natália, candidata a prefeita. E isso é fatal em uma sociedade majoritariamente conservadora e machista como a campista. Mas veja um lado positivo: me impressionei muito com a Professora Natália; penso que ela tem um ótimo futuro político pela frente. Esse já é um ganho para a população feminina de Campos advindo destas eleições.

 

Erica – Em uma sociedade marcada pelas desigualdades socioespaciais e pelas opressões de gênero e étnico-racial, em um contexto de avanço do feminicídio, da violência doméstica e sexual, toda a forma de monopólio é um retrocesso. O monopólio feminino também seria. A proposta é que o Legislativo seja o mais representativo possível e isso demanda legisladores que representem as pautas e os interesses dos trabalhadores, de modo geral, e, também, de algumas particularidades vinculadas ao gênero, à etnia, à opção sexual… O Legislativo não pode ignorar as demandas apresentadas por esses grupos sociais, organizados em inúmeros movimentos e organizações.

 

Guiomar – Na vida política representativa não aprecio monopólio de qualquer tipo. Entretanto defendo que ser homem, mulher, negro, branco, indígena, pobre, lgbt, idoso, jovem, religioso, etc, em si, não significa, para mim, ser progressista, digno, honesto, responsável, solidário com quem vive-do-trabalho, etc. E é isso que busco em termos ético-humanistas, por exemplo, numa Câmara Municipal. O monopólio masculino e não progressista instalado que é um retrocesso. Pois tende a manutenção do injusto status quo para a maioria, bem como, a obstaculizar o avanço dos direitos humanos e do trabalho.

 

Marcio – Com certeza configura um retrocesso. Afinal Campos historicamente se marca pelo patriarcalismo. E entrou na pauta nacional com um caso como das “Meninas de Guarus”. Faz falta para a cidade não ter representatividade feminina, que em termos numéricos é a maior parte da população de acordo com dados censitários. Existiam diversas candidaturas femininas, o triste é o fato delas não terem sido contempladas nas urnas.

 

Folha – Em oposição à nova Câmara de Campos, quatro prefeitas foram reeleitas e uma eleita na região: Carla Machado (PP) em São João da Barra; Fátima Pacheco (DEM), em Quissamã; Francimara (SD), em São Francisco; Cristiane Cordeiro (PP), sub judice em Carapebus; e Geane (PSD), em Cardoso Moreira. Campos e RJ tiveram Rosinha Garotinho (hoje Pros) no Executivo. Assim como o Brasil teve Dilma Rousseff (PT). E os governos e legados das duas últimas foram e permanecem muito questionados. Como você vê? Há algo comum ao gênero no poder?

 

Abraão – Quando Rosinha foi prefeita e governadora, as pessoas acreditavam que quem governava, de fato, era seu marido. Quando a gasolina passou dos R$ 2,50 no governo Dilma, várias pessoas imprimiram um famigerado adesivo de uma mulher de pernas abertas, com o rosto de Dilma, e colaram na boca dos tanques de seus carros. Então surgem as perguntas: quando Garotinho foi prefeito e governador, diziam que era Rosinha a governante? Quando a gasolina passou dos R$ 5,00 no governo Temer e assim permaneceu com Bolsonaro, fizeram adesivos deles? Onde existem pessoas, existem questões de gênero; e na política isso é bastante explicitado.

 

Alexandre – Não correlaciono o desempenho ao gênero, não mesmo. Carla é um fenômeno muito positivo, uma campeã, já a Dilma, um desastre, que presenciei quando vivi em Brasília. Se eu fosse apontar algo comum, seria apenas a força representativa, o símbolo positivo da chegada de uma mulher ao poder em um país dominado por homens na política. Mas é necessário mostrar gestão, e Dilma não o fez.

 

Erica – O fato de ser um(a) politico(a) do sexo feminino, do sexto masculino ou transexual não dá conta de toda diversidade cultural e identitária e nem das divergências no campo ideológico. Nesse sentido, nem toda mulher pode ser considerada um avanço para a agenda feminista. A ministra Damares é um exemplo; ela é a contra agenda feminista. Infelizmente, além das múltiplas violências contra a mulher, o país tem sido marcado por ataques machistas e desqualificadores às candidatas, em especial, às mulheres negras e trans. A boa notícia é que há resistência e, muitas delas foram eleitas, mesmo neste cenário de regressão dos direitos.

 

Guiomar – Não! A questão de gênero não define tendências políticas no poder. O que define é a visão de mundo traduzida em opções partidárias. Um país cuja a história política de mais de 500 anos, que possui no máximo 50 anos, com interrupções, de exercício democrático, as heranças do autoritarismo, clientelismo, patrimonialismo, machismo, independem do gênero. Sem falar nas permanências econômicas e culturais. Por isso ter mulheres no poder, em si, não significa ruptura com essas heranças. Observem os partidos que elas representam. Tem, sim, densidade simbólica para o histórico das lutas feministas.

 

Marcio – A representatividade feminina é importante, mas não basta. Essas mulheres têm que possuir uma conduta política ilibada, que combatam a corrupção e representem os anseios femininos nas políticas públicas. Uma perspectiva de conduta justa é fundamental. A região de fato elegeu muitas mulheres e algumas se contrapõem ao bolsonarismo, como o caso de Carla Machado e Fátima Pacheco, que derrotaram setores conservadores de suas cidades. Mas é preciso aprofundar conquistas sociais e ter uma perspectiva de incluir setores pobres da sociedade.

 

Folha – Sem sair da participação feminina na política, é unânime reconhecer que a Professora Natália (Psol) foi a grande revelação da eleição majoritária. Candidata pela primeira vez, ela teve 11.622 votos (4,68%), apenas 1.728 a menos do que os 13.350 (5,45%) dados ao prefeito Rafael Diniz (Cidadania), com a máquina municipal na mão. Como vê o desempenho de uma e do outro, eleito ainda no primeiro turno de 2016 com 151.462 votos (55,19% daquele pleito)?

 

Abraão – Em 2016 Rafael Diniz foi eleito no primeiro turno, em uma manifestação clara de insatisfação com os governos anteriores. Ao longo de seu governo, a população não observou melhoras na cidade e isso levou ao resultado da eleição. Muita gente insatisfeita com a gestão de Rafael e contrária ao que representam os outros candidatos, viram na Professora Natália uma candidata bem articulada, inteligente e com uma pauta progressista. Por isso votaram nela, mesmo sabendo de suas parcas chances de ser eleita. A Professora Natália chegou como desconhecida e saiu fortalecida do pleito, ao contrário de Rafael, que viu nas urnas a reprovação de sua gestão.

 

Alexandre – Como eu disse acima, fiquei encantado com o discurso da Professora Natália e a firmeza de suas exposições. Ela mereceu os votos. Quanto a Rafael, tenho uma enorme simpatia pessoal por ele, o considero um prefeito que buscou o melhor, mas esbarrou em limitações que não soube contornar, ou mesmo eram impossíveis de contornar. Enfim, teve problemas de gestão que resultaram na fraca votação, o que já me parecia previsível.

 

Erica – Natália chama atenção para essa outra Campos. Seus eleitores querem um governo parametrado por outras métricas, por outra lógica que não aquela vinculada aos interesses econômicos e corporativos. Esse movimento também foi vitorioso nessas eleições. O país não elegeu só os candidatos dos partidos liberais e conservadores; foram eleitos também, vereadores e prefeitos de esquerda e centro-esquerda, transsexuais, mulheres negras, quilombolas e indígenas, demonstrando a necessidade de inclusão das pautas feministas e de gênero, antirracistas e socioambientais.

 

Guiomar – Concordo com este reconhecimento. O Psol em Campos refletiu positivamente a performance nacional do partido nesta eleição, um avanço localizado nos seus passos para consolidar-se no campo progressista. Exemplo maior é sua presença no segundo turno na cidade de São Paulo, independente do lulismo. Quanto ao desempenho pífio do prefeito de Campos, dentre outras razões, destaco o seu “ensimesmamento” no poder, impedindo um diálogo com a população organizada sobre a profunda crise financeira que herdou e suas consequências para todas as áreas. Inclusive na divulgação dos seus feitos neste contexto.

 

Marcio – De fato, a figura da Professora Natália foi saudada por muitos especialistas como o principal fato novo destas eleições. Oxigenou o cenário e trouxe um posicionamento propositivo e embasado. O resultado mostra que existem setores da cidade que anseiam por essa renovação e se enxergam nessa candidatura que reivindicou o respeito à educação, aos negros e a orientação socialista. Por outro lado, a derrota estrondosa de Rafael Diniz é fruto de sua política neoliberal, de esvaziamento dos programas sociais. Não mostrou a que veio. E venceu em 2016 tão somente por um desgaste da família Garotinho na época.

 

Folha – Entre os militantes de Natália, houve queixa do resultado das urnas. O fato é que a esquerda goitacá sempre fez, no máximo, uma cadeira na Câmara, este ano ausente. Para prefeito, o melhor desempenho foi em 2012, com o segundo lugar do saudoso Makhoul Moussallem. Não impediu a reeleição de Rosinha Garotinho (hoje, Pros) no primeiro turno, mas fez 61.143 votos (25,52%). Que o médico conquistou por ter excedido pessoalmente o PT. Qual o caminho à esquerda em Campos? O Psol assume nele o protagonismo? E no Brasil?

 

Abraão – Aqui vale recordar a frase da primeira pergunta: “Campos é o espelho do Brasil”. No cenário atual, o Psol se destaca como partido progressista, defensor de uma política preocupada com os trabalhadores e as parcelas mais pobres do país. A esquerda imaculada hoje está no Psol, pois o PT foi estigmatizado ao longo dos últimos anos. Apesar de relevante, a esquerda no país, e em Campos, é marcada por muitas fissuras. São muitas disputas internas que prejudicam a formulação de estratégias de articulação para o sucesso no pleito eleitoral. A criação de alianças e a formulação de estratégias, para além das divergências, parece ser crucial para a esquerda.

 

Alexandre – Esses conceitos são complicados. Garotinho, em 1988, quando eleito pela primeira vez, no PDT, não era o “candidato da esquerda” contra a direita liberal e conservadora que governou Campos por tantos anos? Penso que sim. Depois, infelizmente, descambou para o populismo puro. Acho que o caminho da esquerda no Brasil é levantar alto a bandeira do antibolsonarismo, mas sem flertar com o mesmo extremismo de Bolsonaro. Se o Psol souber fazer isso, poderá ganhar ainda mais espaço, o espaço que já foi do PT em todo o Brasil.

 

Erica – Eu só posso responder como uma eleitora da esquerda. Antes de pensar na hegemonia deste ou daquele partido, me interessa o avanço das pautas da esquerda: emprego, direitos civis, proteção social, direitos humanos, proteção ambiental, ou seja, tudo aquilo que a sociedade brasileira construiu na Constituição de 1988 e que vem sendo destruído pelos representantes do ultraneoliberalismo desde 2016. Penso que as alianças serão fundamentais, não só entre os partidos de centro-esquerda, mas, também, com os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil que não podem ser desprezados na reconstrução deste país.

 

Guiomar – A tarefa da esquerda em Campos, como a nível nacional, será árdua! O resultado dessa eleição mostrou também em números o aprofundamento da sua crise, iniciada já no primeiro governo Lula, escancarada em 2013, anunciando um definhamento em 2016 e em 2018. Vai exigir coragem, resiliência, a prática radical dos valores ético-humanistas para a superação das amarras históricas do autoritarismo, populismo e personalismos, que estruturalmente permaneceram nos partidos de esquerda. Acho cedo demais historicamente para afirmar neste momento que o Psol aqui ou nacionalmente assumirá o protagonismo na esquerda.

 

Marcio – Em termos nacionais o Psol tem ocupado esse vácuo deixado pelo PT, que caminhou ao centro, compondo alianças muitas vezes questionáveis. Em Campos não foi diferente e o Psol tanto na eleição de 2018, quanto nessa, soube aproveitar e defender esse legado da resistência a projetos excludentes. Ao que tudo indica tem grandes chances de conquista frutos no legislativo em uma próxima eleição, à medida que é um partido que reorganizou recentemente seu diretório municipal. A própria Professora Natália parece ter futuro promissor.

 

Folha – A eleição presidencial de Joe Biden nos EUA e o primeiro turno nos municípios brasileiros parecem marcar a derrota da extrema-direita, mas com inflexão ao centro, não à esquerda. Como você vê? Em Campos, o segundo turno entre Wladimir Garotinho (PSD) e Caio Vianna (PDT, mas com vice do PSL) reflete isso? Jair Bolsonaro foi o grande perdedor das urnas de 15 de novembro? E o PT, fora do turno final em todas as capitais brasileiras, à exceção do Recife?

 

Abraão – A eleição de Campos constitui uma alternância de poder entre famílias de antigos governantes e parece não possuir as marcas da oposição entre esquerda e direita que caracteriza a polarização nacional. Políticos de centro ocupam o poder há décadas por aqui. Bolsonaro, por sua vez, não foi um sucesso como cabo eleitoral, mas é preciso lembrar que as eleições municipais são diferentes das eleições presidenciais; sentimentos e interesses distintos caracterizam os pleitos. Nesse sentido, observar o fracasso dos candidatos bolsonaristas não é uma garantia de que o próprio Bolsonaro vá fracassar em sua reeleição, ainda mais com a estigmatização do PT.

 

Alexandre – Concordo com você. A eleição de Biden e os resultados de nossa eleição refletem um refluxo, e rápido, de políticas como o trumpismo e o bolsonarismo. Esse modo extremo de pensar a política, para alguns, de não fazer política, não vai acabar, mesmo perdendo eleições, mas vai se enfraquecendo. Bolsonaro não tem partido, mas a sua forma de fazer política saiu derrotada nas eleições. Ele tem que ser muito burro ou arrogante para não enxergar a derrota pessoal. Os seus eleitores preferem falar na “diminuição do PT”, como se o contraponto sempre fosse o crescimento de Bolsonaro. Esquecem que existe a virada ao centro, seja mais à direita, seja mais à esquerda. O segundo turno de Campos reflete isso. E mais: candidata do Psol, Natália deu uma surra nos dois candidatos, juntos, que se declararam bolsonaristas, Tadeu e Jonathan Paes. Isso diz muito.

 

Erica – Concordo com as análises que identificam a derrota da extrema-direita, do negacionismo e da política do ódio representada pelo presidente da República. Sobre os partidos liberais, chefiados pelos “velhos” políticos ligados às oligarquias regionais, o seu crescimento tem relação com os episódios recentes na política. É preciso lembrar que quem comandou o impeachment de 2016 não foi Bolsonaro. Portanto, o protagonismo destas forças políticas hoje já era esperado. Mas, vale ressaltar que além do PT saíram dessa eleição de primeiro turno com menos prefeituras: PSB, PSDB e MDB. O que mostra a rearticulação dos partidos mais à direita.

 

Guiomar – A vitória de Joe Biden na eleição presidencial, de fato, é um “respiro civilizatório” diante das vitórias da irracionalidade na política, mas, sem nenhum romantismo de mudança de lugar do nosso país no mundo. É também fato que neste momento podemos constatar a derrota eleitoral da extrema-direita, do bolsonarismo. Entretanto, não dá ainda para termos esperanças em 2022, já que a mudança na correlação de forças caminhou para a centro-direita. O segundo turno em Campos reflete isso, sem dúvidas. O PT lulista pós-eleição talvez esteja vivendo uma “junção de epílogo e posfácio”, se nada acontecer de novo.

 

Marcio – O ciclo neoliberal dá sinais de esgotamento por todo o mundo. Para além dos Estados Unidos, o mesmo ocorreu na Bolívia, Argentina, dentre outros países. Parece que no Brasil o mesmo ocorreu no último domingo. Mais um rechaço plebiscitário contra essas políticas públicas de Estado mínimo que um crescimento real da esquerda, por isso o crescimento do centro e um não avanço do PT. Ainda é cedo para falarmos de fim do bolsonarismo, afinal os próximos dois anos são essenciais na disputa de horizontes a serem construídos.

 

Folha – Dos espectros políticos à realidade dos números, Wladimir teve 42,94% (105.526 votos) no primeiro turno, contra 27,71% (68.732 eleitores) de Caio. Para que este consiga tirar essa grande diferença e se eleger prefeito, teria que conquistar pelo menos três em cada quatro dos 72.817 votos dados a outros candidatos no primeiro turno, sem abstenção, branco ou nulo no segundo. Matematicamente, é possível. E eleitoralmente? Por quê?

 

Abraão – Caio e Wladimir, apesar de adversários no pleito, se assemelham em diferentes aspectos. Ambos são jovens, filhos de ex-prefeitos e não possuem uma identidade política com inclinação de esquerda ou direita. Assim, dificilmente os eleitores da Professora Natália vão aderir a um dos candidatos, por exemplo. Imagino que, a não ser que algo muito extraordinário ocorra, a tendência seja de um aumento nas abstenções, nos votos brancos e nulos. O desafio de Caio é atrair os votos de um eleitorado que não se sente representado por ele, e isso em um intervalo de tempo muito curto.

 

Alexandre – Em política, quase tudo é possível, né? Acho que tudo vai depender das alianças. Só que a campanha de Wladimir teve algo inusitado para mim: muitas pessoas que conheço, que não suportam politicamente os seus pais, votaram nele porque enxergaram algo diferente, além de considerá-lo o mais preparado. Acho que ele aproveitou bem a sua passagem na Câmara dos Deputados, e isso foi decisivo para ele convencer esse grupo de pessoas, que não acredita no garotismo, mas confia em Wladimir. Se Rafael tivesse obtido os resultados de gestão que a maioria esperava, ele seria o favorito. Sem Rafael no páreo, penso que Wladimir é o favorito.

 

Erica – Penso que o primeiro desafio de ambos será convencer os eleitores a irem votar, particularmente aqueles que parecem não se identificar com nenhum dos dois projetos. Por outro lado, a votação nos demais candidatos derrotados no primeiro turno, indica, ao meu ver, uma dificuldade dos eleitores em reconhecer o Caio como uma liderança política. Mas, segundo turno é uma outra conversa, com novas alianças, negociações e perspectivas. Talvez, a novidade esteja em se desvencilhar das experiencias passadas e oferecer um outro modo de governo, mais transparente, menos clientelista e mais abertos às demandas populares.

 

Guiomar – Mesmo diante dos dados explicitados na pergunta, nada é impossível de acontecer eleitoralmente. A história da política brasileira mostra isso, inclusive, recentemente. Agora, é improvável que Caio Viana vença este segundo turno. Considerando o perfil partidário/eleitoral de centro-direita da nova Câmara e de outros candidatos que perderam, lembro que este espectro político tem em sua natureza o fisiologismo e o pragmatismo. O velho clientelismo não resistirá às chances dos 42,94%. A ver.

 

Marcio – A política não se resume em matemática. A eleição do segundo turno é uma outra composição. Nesse ano em específico, Caio teria que correr atrás daqueles que se abstiveram e tentar estabelecer composições com os derrotados, que muitas das vezes é difícil por conta da disputa no primeiro turno.

 

Folha – Wladimir talvez tenha seu maior obstáculo na Justiça Eleitoral. Não pela “Chequinho” dos seus pais, mas pela desincompatibilização fora do prazo do seu vice, Frederico Paes (MDB), do Hospital Plantadores de Cana (HPC). Que teve a candidatura indeferida no Tribunal Regional Eleitoral (TRE), fazendo com que os votos da chapa fossem divulgados como “Anulado Sub Judice”. A decisão final caberá ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). E parece dividida em dois juízos de mérito: a condição do vice e a contaminação, ou não, da chapa. Como você projeta?

 

Abraão – As regras do processo eleitoral são as mesmas para todos os candidatos. É espantoso que um erro dessa natureza aconteça na formação de uma chapa com grande potencial de sucesso em uma cidade do porte de Campos. E, uma vez constatada a irregularidade, as instituições competentes passam a atuar. Agora, cabe ao Tribunal Superior Eleitoral cumprir seu papel de analisar e julgar. Infelizmente tudo isso se dá em um contexto de grande questionamento e insegurança em relação às instituições. Mais uma vez o processo eleitoral em Campos é marcado por irregularidades e incertezas.

 

Alexandre – Há diversos precedentes do TSE no sentido de não haver a contaminação, ou seja, de as condições de elegibilidade serem pessoais, do vice e do prefeito, de forma que a chapa não seja contaminada pela ausência em relação a um desses integrantes. Na chapa, o problema foi com o vice, o que pode acarretar o indeferimento do seu registro, sem que isso importe em anular o registro da chapa toda. Muitos desses precedentes envolveram casos de improbidade administrativa, inclusive. No caso da chapa de Wladimir, o problema foi só o do tempo de desincompatibilização, o que pode ajudar. Em casos análogos, o ministro Barroso, hoje presidente do TSE, entende que só em casos muito extremos não deva prevalecer a vontade das urnas, caso o verdadeiro cabeça da chapa for o candidato a prefeito, de forma que a impugnação do vice não deve contaminar toda a chapa eleita pela maioria dos votos. Este é caso em Campos, ao menos no primeiro turno. A briga vai ser boa, mas vejo boas chances para o deferimento, ao menos, para Wladimir.

 

Erica – Mais recentemente, o Brasil tem experimentado sentenças inusitadas e, muitas vezes, ao gosto do freguês, geralmente as elites. O protagonismo político de alguns juízes tem sido duramente criticado pelos próprios pares. A judicialização da política é um caminho perigoso e extremamente nocivo à democratização. Por mais que a democracia apresente problemas, e a democracia brasileira tem muitos limites, ela é a melhor opção às ditaduras militares e ao fascismo. Quanto à questão da chapa em particular, não saberia analisar. No entanto, penso que a Justiça deva se esforçar sempre para respeitar a vontade do eleitor, ela deve ser soberana sempre.

 

Guiomar – Dado o atual perfil dos magistrados do TSE, para mim, judicialistas, em especial, o presidente desta Corte, Luís Roberto Barroso, existe uma probabilidade alta de indeferimento da chapa.

 

Marcio – Existe jurisprudência favorável à aprovação da chapa. O jogo ainda não está decidido. Caberá também ao posicionamento dos juízes em questão. Foi um erro infantil a não desincompatibilização do vice em tempo hábil, mas pode ser ainda ser revertido. O lado negativo é que traz uma insegurança institucional para o pleito, mesmo depois do mesmo decorrido.

 

Folha – A depender do resultado e do tempo da decisão do TSE, não se descarta nem o adiamento do segundo turno para reinseminação das urnas, ou a anulação do pleito. Tudo isso cai por terra se o TSE deferir a candidatura de Frederico, ou se entender que um indeferimento não afetaria Wladimir. De qualquer maneira, como vê o fato do processo eleitoral de Campos ser mais uma vez definido pelo Judiciário?

 

Abraão – O tempo do Direito não é igual ao tempo da política. O TSE foi acionado em função de uma irregularidade no processo e agora precisa definir as consequências disso. A decisão sobre o processo, no entanto, pode não se dar em consonância com o calendário político, o que cria uma grande incerteza. E mesmo com essa indefinição e a possibilidade de anulação da candidatura, a chapa questionada foi a mais votada na cidade, com ampla maioria de votos. A população, que foi a Zonas Eleitorais muitas vezes lotadas em pleno contexto de pandemia e aumento do número de casos, continua sem saber sobre a validade de seus votos. Situação muito ruim.

 

Alexandre – Muito ruim, mas infelizmente parece que naturalizamos, no Brasil todo, a judicialização não apenas da política, mas das crises políticas e dos resultados eleitorais. Isso tem ocorrido nos três níveis federativos. Nesse caso, acho que o Brasil se tornou o espelho de Campos.

 

Erica – Como já disse na questão anterior, o Judiciário existe para cumprir a lei que não é construída por ele e sim pelo Legislativo. Nesse sentido, penso que ele deve sempre se ater à Constituição de 1988 e às demais legislações. Não vejo com bons olhos a politização nem do Judiciário, nem do MP.

 

Guiomar – Vejo a judicialização da política, não apenas no âmbito eleitoral, como um fenômeno da crise final da Nova República, do esgotamento do seu modus operandi traçado e levado às últimas consequências da velha forma de se fazer política. É frustrante esse processo. Nosso município, afirmado em pergunta anterior, é, segundo Vargas, “o espelho do Brasil”, não me estranha as constantes judicializações dos pleitos e dos candidatos eleitos já empossados. Repito, é frustrante a naturalização deste fenômeno. Como ainda o “novo não nasceu”… haja paciência histórica!

 

Marcio – A judicialização da política não é salutar, pois traz incertezas e esvazia a importância do sufrágio e da vontade popular. Porém, nesse caso específico não é por si só uma discussão política, mas muito mais técnica, que acaba por se revestir em última instância em uma discussão também de ideias, afinal os juízes não vivem apartados da sociedade.

 

Folha – Como avalia as candidaturas de Wladimir e Caio? Quais são, em seu entender, a maior virtude e defeito de ambos? O que projeta para Campos no governo de um e do outro? Vê o risco de qualquer um deles, se eleito, sair da Prefeitura em 1º de janeiro de 2025 com tanta ou mais rejeição popular que Rafael? Se isso acontecer, o atual prefeito, que antes foi vereador de brilho na oposição, pode ser popularmente redimido?

 

Abraão – A futurologia é muito arriscada, por isso é mais fácil falar sobre o que já aconteceu ou sobre o que está acontecendo. Wladimir e Caio carregam nas costas o fardo de serem descendentes de famílias que fizeram administrações desastrosas de nossa cidade. Ao mesmo tempo, como aqueles foram tempos de fartura, suas famílias estiveram à frente do governo em tempos de melhores condições de assistência social, emprego e renda. O destaque que recebem decorre desses “tempos melhores”, ainda lembrados pela população. A questão é: serão eles capazes de promover o crescimento da cidade e do bem-estar social com os recursos atuais?

 

Alexandre – Acho que ambos possuem uma carga negativa de seus pais como administradores, políticos cassados, com problemas de gestões acusadas de fraude e corrupção. Quanto à virtude, no campo político, acho que Wladimir pode se orgulhar do ótimo desempenho que teve como deputado federal, inclusive ajudando Campos em diferentes momentos com verbas federais. Quanto ao Caio, não conheço, sinceramente, acerca de seu desempenho político. Projeto dificuldades para ambos, ante a falta de recursos que tanto prejudicou Rafael. Claro que podem sair desgastados, como podem sair consagrados por conseguirem contornar os problemas. Vão precisar buscar parcerias públicas e privadas, fazer surgirem receitas novas. Sobre Rafael Diniz, penso, sim, que sua história ainda não acabou como político de Campos, seu valor ainda pode ser reconhecido no futuro. Ele merece isso.

 

Erica – Acredito que ambos tenham qualidades pessoais e políticas, senão não chegariam onde chegaram. Mas, fazer política é administrar conflitos e escolher prioridades sobre onde utilizar o recurso público. Nesse sentido, penso que ambos podem resgatar os acertos do seu grupo político e deixar de lado a velha política clientelista que tanto machuca a cidadania. As pessoas rejeitam o clientelismo, mesmo tendo que recorrer a ele na ausência de políticas públicas universais. Eles querem ser tratados como cidadãos de direito e como protagonistas da vida pública. Penso que sempre é hora para começar a conduzir o governo local com a participação popular. Por que não?

 

Guiomar – As duas candidaturas têm gêneses de rompimento com o “coronelismo e personalismo de velho tipo”, portanto, se autoproclamavam o “novo e moderno” neste município. A História mostrou uma nova versão do populismo conservador e um escancaramento da apropriação privada da coisa pública. Ambos cresceram imersos nesta cultura. Por isso não tenho condições de falar das suas virtudes políticas, são frágeis as experiências de ambos. A não reeleição é sempre possível, e, nestes tempos de transição, se nada for feito de redistributivo na área social com ajuste fiscal, a “redenção” em 2025 passa a ser um cenário viável!

 

Marcio – A candidatura de Wladimir traz como grande peso e ao mesmo tempo benefício a trajetória de seus pais. Por si só o deputado federal representa um polo sadio ao tentar estabelecer um comportamento por vezes republicano, como no caso da emenda para a construção dos novos prédios da UFF-Campos, onde teve atitude suprapartidária. Por vezes seu destempero, como no caso da tentativa de agredir um cidadão que insultou seus pais, pode atrapalhar. Ou por ter faltado aos debates e não demonstrar compromisso cívico. Por sua vez, Caio Vianna também traz esse legado da família tradicional de Campos, o que também lhe prejudica e ao mesmo tempo beneficia ao ganhar votos por conta da herança. Mas também faltou aos debates e parece sempre agir na espreita ao tentar costurar apoios como do PSL e não parece fazer um debate público de peso e de grandes projetos. Ambos terão que se comportar com a grandeza e responsabilidade que o cargo exige e precisam amadurecer muito ainda.  Por último, vejo poucas chances de Rafael Diniz ser redimido. Sua gestão ficará marcada na história como um traço negativo.

 

* Publicado originalmente no blog Opiniões dirigido pelo jornalista Aluysio Abreu Barbosa. Link do post original da entrevista: http://opinioes.folha1.com.br/2020/11/21/campos-refletida-entre-wladimir-e-caio-como-espelho-do-brasil-e-do-mundo. Acesso em 24/11/2020.

domingo, 22 de novembro de 2020

Derrotar Crivella para destronar o falso messias

Fonte: Agência O Globo (aqui).

Derrotar Crivella para destronar o falso messias*


Fabio Py

 

* Publicado originalmente em Mídia Nínja (aqui).

 

Crivella, a face política Universal

 

Estamos no período eleitoral e, no Rio de Janeiro, um personagem se vinculou diretamente ao presidente Jair Messias Bolsonaro durante a campanha: o candidato à reeleição e “bispo licenciado” da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Crivella (Republicanos). Crivella é sobrinho do dono da Universal e do Sistema Record de Comunicação, o bispo Macedo. Mesmo que por momentos negue, sua figura política está diretamente relacionada ao título “bispo” da Universal. Para se livrar um pouco do tom religioso, nos últimos anos ele passou a fazer uso do termo “bispo licenciado”. Com ele, sinaliza que está afastado das atribuições integrais do bispado, não recebendo o salário, nem tão pouco exercendo liderança de templo ou cuidando de região eclesiástica.

 

Contra ele, no meio teológico, existe um chavão: “pastor sempre será pastor onde quer que esteja”. Logo, se segue o mesmo raciocínio: se ele é bispo onde quer que esteja, sempre será bispo – mesmo licenciado das funções oficiais. Mesmo na condição de licenciado, não deixa de ter aura sacerdotal seja quando pisa em um espaço sagrado, seja quando faz orações, seja num lugar comum. Leonardo Boff escreve sobre o bispado na Igreja Católica, que de alguma forma se relaciona às estruturas evangélicas: “o bispado é o acúmulo de bens materiais (ornamentos, veste, acesso às pessoas e à estrutura) e bens imateriais (devoção, emoções, carismas e amores) próximo ao ápice na direção de Pedro, monarca cristão”. Também, nas estruturas evangélicas, é uma função maior, de organização de pastores, missionários, evangelistas, pregadores, obreiros. Por isso, se diz que na hierarquia da Universal, Crivella está no topo. Ele está a um passo do papa… Nesse caso, o bispo e tio Edir Macedo.

 

O que se está dizendo é que o cargo de bispo oferece grande peso simbólico/afetivo sobre qualquer pessoa. Na Universal, “o pastorado é ocupado por alguém separado por Deus para uma comunidade e o missionário por alguém que atina em Deus alguma missão em locais distantes ou desafiadores”, o bispado tem seu “carisma relacionado ao cuidado de pastores e pastoras e conjunto de igrejas da região”. E, tal como na Igreja Católica, o bispado é uma função institucional. Por isso, quando Crivella se designa (ou é designado) “bispo” na arena política demonstra que a estrutura da Universal o apoia.

 

Ai está o perigo!

 

A simbiose Crivella-Universal

 

Antes, gostaria de sinalizar que a questão não é tanto a de ser evangélico, católico, espírita ou qualquer tradição religiosa a ocupar cargo político. Não é essa a questão. Mas o perigo se coloca quando algum religioso se mobiliza politicamente junto a uma grande corporação. Nisso, Crivella, o bispo Universal, sempre foi exemplo de conexão. Sua figura pública é a mais pura simbiose grandes igrejas cristãs e o pior da política partidária.

 

O preço “cobrado” pelas instituições religiosas (como a Universal) do apoio político sempre foi muito alto. Crivella sempre pagou o preço, defendendo o setor evangélico fundamentalista e, mais ainda, defendendo como suas as causas da Universal. Por exemplo, em 2007, quando era senador e deu entrada no Dia Nacional da Marcha pra Jesus (projeto de Lei n.376). Assim, permitiu-se verba pública para a maior celebração evangélica do país, sendo a Universal uma das suas propositoras. Em julho de 2018, realçando seu compromisso contra o diálogo inter-religioso e contra as tradições afro-diaspóricas, vetou o projeto de lei 346, que declarava o Quilombo da Pedro do Sal, no centro do Rio de Janeiro, como Patrimônio Cultural e Imaterial do Munícipio. Mais recentemente, em julho de 2020, em plena pandemia do Covid-19 no Brasil, sua gestão designou os tomógrafos para a Igreja Universal da Rocinha. A ação foi um escândalo, pois a comunidade tem uma UPA. A ação ocasionou uma série de mobilizações dos moradores. Eles questionavam se os tomógrafos iam atender os moradores ou apenas os fiéis da Universal.

 

A Universal e a mobilização política dos candidatos

 

Crivella não tem apenas um apoio simbólico com nome de “bispo”. Ao contrário, a Igreja Universal sempre mobilizou ações na direção de seus projetos eleitorais. Primeiro, promovendo nos últimos anos uma série de orações, jejuns, vigílias e unções no meio das liturgias de seus principais templos. Assim, publicamente reveste suas candidaturas com a aura religiosa, uma santidade política. Segundo, a instituição disponibiliza em cada região um número de adeptos para ajudar nas campanhas trabalhando na distribuição de panfletos políticos. Por exemplo, em cidades de 500 mil habitantes, como Campos dos Goytacazes, colocam mais ou menos 100 pessoas diariamente na distribuição de santinhos políticos. E, em cidades como Rio de Janeiro, estrategicamente dividem em 5 áreas, conseguindo mobilizar até 1000 pessoas atuando no corpo a corpo eleitoral com a população.

 

Mobilizam mais pessoas que qualquer partido político!

 

O laboratório das eleições de 2020 e o sonho com 2022

 

Portanto, o que foi estruturado pela Universal, nos últimos anos, é um grande maquinário eleitoral-religioso. Algo tão denso que nenhum partido político consegue mobilizar. Essa máquina, em 2016, conseguiu eleger o próprio Crivella, e, dois anos depois, consagrou a eleição de Bolsonaro, Witzel, Flavio Bolsonaro, Arolde de Oliveira e os demais políticos de extrema direita no Rio de Janeiro.

 

Assim, o desafio que está posto é de como derrotar uma estrutura eleitoral tão densa e que é a base de Crivella. Esse desafio é urgente: barrar a conexão tão direta das grandes corporações cristãs com o poder estatal. É imprescindível, em nome da democracia, que desarme a relação umbilical das grandes igrejas e as políticas de estado que as beneficiam. É fundamental que se supere essa densa fracção fundamentalista evangélica transformada em Estado, beneficiando cristãos em detrimento das demais camadas religiosas do município.

 

Eles são uma pedra no caminho da democracia. Quando uma tradição religiosa toma conta da arena pública, há o risco da construção de um sistema de ódio e desprezo contra as demais tradições religiosas. Essa política de morte em nome de deus tem um nome: teocracia – o regime máximo totalitário-religioso. Assim, espera-se que a mobilização na disputa eleitoral contra o fundamentalismo das grandes corporações evangélicas implicadas na arena pública (identificadas na figura de Crivella) seja um grande laboratório das lutas político-eleitorais em prol da amplificação da democracia, das lutas pela defesa das pluralidades e das liberdades religiosas.

 

Que elas nos ajudem a organizar as forças para derrotar futuramente o mal do bolsonarismo fascista, que tem na cidade do Rio de Janeiro a face do bispo Crivella, negacionista, anti-ciência, genocida e autoritário.

 

Assim, o primeiro desafio está posto: derrotar Crivella. Para depois destronar o eugenista-mor, pai da mentira fingido de messias.

 

Referências bibliográficas:

 

ALMEIDA, Jhenifer.  Política e compromisso religioso: notas sobre a IURD e a atuação de cabos eleitorais a partir do PRB. Nelson Lellis e Fabio Py. (Org.). Religião e política à brasileira: ensaios, interpretações e resistência no país da política e da religião. São Paulo: Terceira Via, 2019.

 

BOFF, Leonardo. Igreja carisma e poder. São Paulo: Record, 1999.

 

EZENDE, Gabriel S. Religião, Voto e Participação Política: a vitória de Marcelo Crivella na disputa eleito-ral carioca de 2016. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do IU-PERJ/UCAM. Rio de Janeiro: IUPERJ/UCAM, 2018.

 

GRACINO Jr, Paulo & REZENDE, Gabriel. A vez dos eleitos: religião e conservadorismo nas eleições municipais do Rio de Janeiro, RBHR, v.13, n.38, 2020.

 

MARIANO, Ricardo; SCHEMBIDA, Rômulo Estevan de Oliveira. O Senador e o Bispo: Marcelo Crivella e seu Dilema Shakespeariano. Interações: Cultura e Comunidade (Faculdade Católica de Uberlândia), v. 4, 2009.

 

MATA, Sergio. Teologia de Bolsonaro. História e historiografia, v.34, n.51, 2020.

 

ORO, Ari Pedro. A Igreja Universal e a política. In: BURITY, Joanildo ; MACHADO, Maria das Dores Campos (Org.). Os votos de Deus: evangélicos, política e eleições no Brasil. Recife: Massangana, 2006.

 

VITAL DA CUNHA, Christina; LOPES, Paulo Victor Leite; LUI, Janayna. Religião e Política: medos sociais, extremismo religioso e as eleições 2014. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll: Instituto de Estudos da Religião, 2017.