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sábado, 10 de maio de 2025

(Ainda) Sobre Lula em Campos: notas sobre o ódio político - versão estendida

 

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(Ainda) Sobre Lula em Campos: notas sobre o ódio político - versão estendida **

George Gomes Coutinho***

A visita do presidente Lula em Campos no último mês de abril produziu reverberações de diferentes naturezas. Há questões que atingem diretamente os atores do sistema político, com ênfase nas estrelas regionais, e boas notícias para o ensino público. Também a cidade foi citada positivamente na mídia nacional. Afinal, não obstante o momento sombrio que meus colegas enfrentam nos EUA, que seguem na direção do abismo da desdemocratização, a educação persiste, na média, como pauta celebrada pela população.

É importante notar que a inauguração dos prédios da Universidade Federal Fluminense não foi uma festa académica. A disputada inauguração dos prédios foi uma festa popular comemorada por milhares de pessoas no campus da UFF e nos arredores. Foi uma celebração multipartidária e democrática, com tonalidade majoritariamente progressista dada pela militância e pelos representantes de movimentos sociais. Mas, ali também estavam pessoas do staff da prefeitura, colegas e estudantes do IFF, vi amig@s da UENF, cidadãos e cidadãs comuns, ex-alun@s, tod@s prestigiando o momento histórico para a região.

Destoou a vaia, que não ocorreu em uníssono, no momento do discurso do prefeito Wladimir Garotinho. Vale dizer que o próprio Lula saiu em defesa do prefeito que, quando ainda deputado federal, protagonizou a articulação pelas verbas que permitiram a finalização dos dois prédios de sete andares que agora constituem a paisagem da avenida XV de Novembro. Ainda, no conteúdo do discurso de Wladimir, não foi detectado trecho que justificasse o constrangimento. Foi vaia autoritária com o objetivo de impedir a continuidade do discurso. Se eu reconheço que o prefeito por vezes voluntariamente macula o próprio currículo, como no veto ao projeto “Por uma infância sem racismo”, e também demonstra insistência em lamentáveis investimentos de networking político cortejando quadros extremistas na direita, em seu discurso na ocasião não havia conteúdo a ser combatido. Não que o poder local não precise da construção de um vigoroso, propositivo e popular movimento de oposição. Precisa muitíssimo. A questão é que este movimento precisará demonstrar que sabe fazer algo além de vaiar. Mas, ressalto, para além da vaia, não soube de ofensas ou ameaças à integridade física do prefeito. Algo que decorreu no outro lado do espectro político.

A visita do presidente atraiu outros setores que se mobilizaram. Forças da direita distribuiíram ofensas que foram ostentadas em pichações nos muros nos arredores do novo campus da UFF. Junto a esta ação, alguns militantes foram para a rua da UFF no 14 de abril último, um punhado de poucos indivíduos, tentar coagir as pessoas filmando sem autorização, ofendendo, provocando, xingando. Cheguei cedo e vi um rapaz enrolado em uma bandeira do Brasil, até então estava solitário, se protegendo amuado atrás de policiais militares, tal como criança medrosa agarrada na saia da mamãe. A ele se juntaram depois outros poucos. Poucos e ruidosos.

Um carro emparelhou com a comitiva presidencial, antes de Lula chegar ao campus, para ofender o presidente.

Em dado momento, enquanto o evento ocorria, um mototaxista atropelou uma pessoa forçando passagem em via urbana interditada por conta da cerimônia. A rua não estava interditada para ele pessoalmente. Era para todos. A questão é que este em particular talvez se julgasse além da lei e das regras.

Eu mesmo, ao final de tudo quando ia embora, ao entregar uns trocados para o flanelinha que guardava meu carro, fui chamado de “petista ladrão!”. Foi mais um valente mototaxista que, demonstrando em sequência sua incontestável coragem, se evadiu em alta velocidade. Não tive tempo para nenhuma reação.

Antes de prosseguir, gostaria de salientar que em visitas de chefes de governo a crítica é parte do cenário democrático. Grupos, movimentos, setores e até indivíduos aproveitam o momento para tentar abrir canais de diálogo, apresentam demandas, chamam a atenção para suas causas, protestam. É do jogo. Mas, o que vimos foi hooliganismo.

O hooliganismo se move com o objetivo final de eliminação do outro, tal como é no futebol, espaço onde os hooligans foram criados. A violência, simbólica ou até mesmo física, é mobilizada como recurso. No caso da visita de Lula estes indivíduos não apresentaram demandas. Fizeram uso político da violência. O curioso é que eram populares. Não sei quem foram os pichadores. Mas, vi as pessoas que ali estavam ofendendo e xingando no dia da inauguração dos prédios da UFF. Eram homens comuns. Os pobres de direita, como classificou o sociólogo Jessé Souza.

Eu consigo compreender pragmaticamente o que chamo de sócios majoritários e sócios minoritários da extrema-direita. Defendem o que Bruno Wanderley Reis, colega da área de ciência política da UFMG, já chamou de “agenda anti-regulatória”[1]. É o movimento de “passar a boiada”, que consiste em retirar as proteções institucionais e jurídicas que tentam diminuir os impactos de relações constituídas por assimetrias. O objetivo é que o mais forte, enfim, possa predar o mais fraco sem que ninguém tenha onde e a quem recorrer. Vale expulsar indígenas de suas terras, legalizar a grilagem, demitir quem quiser sem que ninguém encha o saco, manter o país como um paraíso fiscal para o andar de cima, extorquir, poder exercer diferentes formas de sadismo com empregados... Tudo isso é o que une parte do capital financeiro, sindicatos patronais identificáveis na cidade e no campo, madames, etc..

Mas, e os populares que vi desferindo impropérios e rangendo os dentes para pessoas que jamais viram antes? Ação coletiva dá trabalho, consome tempo e energia, e eles bancaram os custos. É preciso deixar o conforto do lar. Precisa de investimento libidinal! Não era um protesto com pauta econômica, anti-inflacionária, contra a carestia de gêneros alimentícios. Era ódio. Algo na fantasia desses indivíduos parece sugerir que a eliminação de sua nêmesis, Lula e arredores, vale muito a pena. Talvez, para ser até pudico, uma transformação estrutural, seja lá o que for, poderia advir. Não sei o que imaginam. Paolo Demuru, pesquisador italiano que atua no campo da semiótica, nos lembra do quanto narrativas delirantes, como as teorias da conspiração[2], e discursos de ódio podem funcionar como um remendo, um band-aid perverso, para vidas que se consideram irrelevantes, ressentidas, impotentes diante da brutalidade inerente ao nosso modo de viver nesta etapa do capitalismo. Freud e Reich há mais ou menos um século viram sinais parecidos na ascensão do nazifascismo, onde detectaram ali uma tentativa fajuta de encantamento e empoderamento em um cotidiano duro e sem compaixão. De todo modo o ódio que foi expresso aqui em Campos no abril último, é o que, no limite, implicaria a destruição do objeto. Ódio é afeto, tanto quanto o amor, mobilizador, poderoso e mortífero.

O que se depreende da experiência é que se confirma, mais uma vez, a persistência de uma base popular radicalizada relevante pela direita. A matéria-prima deste setor, distante socialmente dos sócios majoritários e sócios minoritários do bolsonarismo e arredores, é o mal-estar capturado por narrativas que se retroalimentam exaustivamente no ecossistema de informação vampirizado pelas big techs. Nesta seara os algoritmos, em nada neutros, ajudam a repetir conteúdos que reforçam o sintoma. O que gerou as cenas de destruição do 08 de janeiro circula entre nós em tonalidades vívidas. Por tudo isso, sim, sem anistia! E, além de palavras de ordem, o mal-estar desses setores precisa ser processado em respostas efetivas e pacíficas no campo democrático. A democracia precisa recuperar a musculatura desidratada por décadas de discursos e práticas de austeridade.


* Disponível em: https://www.uff.br/15-04-2025/presidente-lula-inaugura-nova-sede-da-uff-em-campos-dos-goytacazes/, acesso em 10 de maio de 2025.

** A primeira versão, encurtada, foi publicada na página 4 do jornal Folha da Manhã em Campos dos Goytacazes, RJ. A primeira versão foi editada pelo próprio autor para caber na formatação do jornal. Aqui no blog, que pôde ir além das 70 linhas delimitadas pelo editor do jornal, se apresenta versão um pouco maior e levemente modificada do texto original.

*** Professor da área de Ciência Política na UFF, campus de Campos dos Goytacazes, RJ.

[1] Em entrevista para o Canal Meio disponível aqui: https://www.youtube.com/live/U9SIS8cbt8c?si=nvX2MAbPgydnmqil, acesso em 04 de maio de 2025.

[2] Recomendo efusivamente o “Políticas do encanto: extrema direita e fantasias de conspiração”, opúsculo lançado por Demuru no ano passado pela editora Elefante.


sábado, 14 de dezembro de 2024

Wladimir e a direita autoritária - George Gomes Coutinho

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Wladimir e a direita autoritária**

George Gomes Coutinho***

Já apontei que o prefeito Wladimir Garotinho, reeleito neste 2024 com a maior votação nominal da história da cidade, não poderia ser classificado como um “palhaço macabro”, termo utilizado por Caetano Veloso para designar a extrema-direita no Brasil e no mundo. E, de fato, seu diálogo com agentes dos dois lados do espectro político, sua abertura para implementar políticas públicas mirando a efetividade e não identitarismo ideológico, sua performance pública em diversas ocasiões ignorando discursos de ódio a grupos políticos ou a setores da sociedade, tudo isso reitera: Wladimir não é um fascista. Contudo, há contradições que preciso apontar. E no período pós eleitoral o prefeito, enfim, optou por escorregar em cascas de banana que acendem sinal de alerta para quem milita no campo democrático. E, creio, cabe correção de rota enquanto há tempo.

O prefeito, quadro neste momento do PP, o Progressistas, ainda em campanha já havia exibido como sinal de prestígio tanto o apoio de Ciro Nogueira, este no mesmo partido de Wladimir, quanto o de Flávio Bolsonaro do PL. Aos mais ligeiros lembro que o PP tem ministério no Governo Lula. Então, a questão não é propriamente o PP ou o Centrão, instância política brasileira a qual nenhum presidente brasileiro pode abrir mão na atual configuração de nosso sistema. O problema são as companhias específicas que citei. Nogueira e Flávio não são nomes do campo democrático. Mesmo que Wladimir tenha, ao menos em um primeiro momento, se aproximado de ambos de forma acanhada e almejado apenas ampliar seu capital político, o gesto de proximidade já o tornou uma liderança semileal à democracia. A semilealdade democrática, descrita pelo cientista político Juan Linz em seu The Breakdown of Democratic Regimes, lançado em 1978, indica condescendência com lideranças de DNA autoritário. Ao invés de isolar, implementar um cordão sanitário, algo encontrado em lideranças democráticas mundo afora, a opção é por confraternizar com extremistas. Podemos intuir que os supracitados talvez ofertem benefícios que outros agentes ou grupos não ofertaram: portas que se abrem, contatos vantajosos com o primeiro escalão. Tudo isto podemos colocar na conta do cálculo racional frio e pragmático.

Porém a hipótese do mero cálculo anda constrangida lamentavelmente por ações do próprio Wladimir que parece querer arriscar o respeito adquirido dentro do campo democrático. Nunca é tarde para lembrar que parte de seus votos tem por origem os que viram na delegada Madeleine a representante da extrema-direita nas eleições municipais campistas. Sim, Wladimir atraiu votos tímidos ou entusiasmados do campo democrático. Por isso vamos por partes.

Recentemente uma das indiscretas postagens em rede social de Wladimir adulando o patriarca do clã Bolsonaro é motivo suficiente para questionarmos as convicções do prefeito boa praça. Todos os fatos ventilados alhures indicam Jair Bolsonaro como uma liderança francamente radioativa ao regime que deu os mandatos da carreira política de Wladimir. O passado e o presente de Jair Bolsonaro o fazem palatável apenas a assemelhados ideológicos, seja Donald Trump ou Viktor Orbán. Isso a despeito de sua popularidade doméstica. E não, aparecer na foto com um homem que instigou seus liderados com discursos de eliminação de adversários não é o mesmo que ser fotografado ao lado do Mickey em Orlando. Com tudo isso, por crimes contra o Estado de Direito, Wladimir pode ter sido registrado ao lado de um futuro criminoso condenado.

Ainda, o prefeito também achou por bem se meter na Guerra Cultural ao entrar na discussão de gênero e sexualidade nas escolas campistas a pretexto de se considerar “conservador”. O termo “conservador” vale para personagens importantes como Edmund Burke (1729-1797) ou Alexis de Tocqueville (1805-1859), filósofos da conservação política temerosos que eram de mudanças sociais e institucionais bruscas. O ponto é que jamais o conservadorismo destes flertou com o obscurantismo.

Falemos sobre a lei 9.531 sancionada por Wladimir e proposta na Câmara pelo vereador Anderson de Matos (Republicanos).

A discussão de gênero e sexualidade nas nossas escolas funciona analogamente como algo que ouvi há muitos anos em uma palestra proferida por um profissional da área de medicina que jamais consegui lembrar o nome: a escola é uma das maiores promotoras de saúde coletiva que podemos ter em nossa sociedade. Práticas, regras, conteúdos simples ensinados de maneira didática que impactam de maneira significativa cidadãos em toda uma vida. Sim, é na escola, em nossa sociedade, que muitos de nós ouvimos pela primeira vez, além de diversos conteúdos abstratos e formais, sobre saúde reprodutiva, tolerância, práticas esportivas como parte do desenvolvimento humano, como se alimentar bem, etc.. Escola é espaço de formação com força civilizatória. Jamais perfeita, dado que é instituição humana. Mas a contribuição da escola enquanto promotora de qualidade de vida é simplesmente inestimável.

Nestes termos, ter a escola como espaço de promoção ao respeito da diversidade sexual realmente existente e lugar de vivência e ensino da igualdade civil, política e social de gênero deveria contar com o apoio da sociedade e da classe política. Ora, é fato desconhecido a defasagem salarial de mulheres no mercado de trabalho? Igualmente é ficcional que vivemos em uma sociedade que pratica diferentes tipos de violência onde o critério para a escolha de alvos é a orientação sexual? Ainda, que na própria escola o bullying e todo tipo de linchamento tem o potencial de produzir diferentes formas de sofrimento como o cutting e, no limite, o suicídio?

A lei 9.531 sancionada por Wladimir coloca sobre os ombros dos pais a decisão de sonegar ou não os conteúdos de gênero e diversidade sexual a crianças e adolescentes. Se trata disso. É um empoderamento duvidoso das famílias em uma cruzada contra a “ideologia de gênero” (sic), um espantalho criado que segue inexistente na boca de qualquer pessoa que se interesse a estudar o assunto. Torço que o poder municipal reconsidere sua decisão e permita que nossas crianças tenham acesso respeitoso e de qualidade a estes conteúdos.  E, de forma análoga, na torcida que o prefeito se reposicione em algumas ocasiões saindo de condição de democrata semileal.

* Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-brasil-e-o-avanco-da-extrema-direita/, acesso em 14 de dezembro de 2024.

** Texto publicado na página 04 do jornal Folha da Manhã em 14 de dezembro de 2024.

*** Cientista político, sociólogo e professor no Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Precisamos de um cordão sanitário contra o bolsonarismo – uma resposta a Joel Pinheiro da Fonseca

 

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Precisamos de um cordão sanitário contra o bolsonarismo – uma resposta a Joel Pinheiro da Fonseca

George Gomes Coutinho**

No último 29 de abril a Folha de São Paulo publicou o artigo de opinião de Joel Pinheiro da Fonseca intitulado “Precisamos do bolsonarismo moderado”[1]. O texto causou rebuliço pelo oxímoro escandalosamente defendido, onde as palavras “bolsonarismo” e “moderado” se atracaram em constrangedora conjunção. Diversas reações ocorreram desde então. Impropérios, ridicularização, demonstrações de estupor, ataques ad hominem... Porém me proponho a levar a sério o texto de Joel e, acredito, o conteúdo do seu texto pode nos levar a considerações sobre a atual conjuntura política brasileira em geral e sobre a direita nativa em particular. Vamos por pontos.

Primeiramente, a publicação do texto de Joel é sintoma e não a doença. Joel tem em sua biografia polêmicas como o debate sobre a venda de órgãos, onde já se posicionou favoravelmente e agora se demonstra arrependido[2]. Talvez Joel tenha se sentido moralmente autorizado a discutir o tema em uma sociedade das mais desiguais do planeta Terra. Poderia ser, quem sabe e na melhor das hipóteses, um excelente negócio. A despeito de suas motivações, por vezes que demonstram ser a de um adicto por click bait, a trajetória de Joel tem sido marcada por posicionamentos por vezes moralmente repugnantes e apresentados em uma embalagem cool. Tratam-se, em muitas ocasiões, de demonstrações de uma suposta “ousadia” intelectual de uma direita “sem tabus” e com ares de ser “descolada”. A questão é que seus argumentos, quase sempre, não resistem a um exame crítico minimamente detido. Nos cabe perguntar: qual a razão de sua presença cativa em um dos maiores jornais do país? Joel, em minha perspectiva, é sintoma do “doisladismo”.

Há anos, em decorrência das mudanças ocorridas no ecossistema de comunicação, as diferentes expressões da mídia tradicional, sejam jornais, revistas semanais ou canais de TV, foram arrastadas pelos novos influxos comunicativos e, de alguma maneira, acharam que era uma boa ideia emular e reverberar as redes sociais. Na atual tribalização de nossa sociedade, importa é “representatividade” dos grupos em disputa de narrativas. Ok, sociedades democráticas são complexas e plurais. É importante que a mídia represente esta diversidade. O problema é que na filosofia do “doisladismo” importa é dar espaço aos supostos representantes dos “dois lados” da contenda, a despeito da qualidade dos argumentos que apresentem. Rinhas televisivas constrangedoras fizeram grande sucesso utilizando essa fórmula. E é assim que nos deparamos com textos como os de Joel, que muitas vezes poderiam estar muito bem recepcionados no jornalzinho da chapa conservadora da faculdade que ganhou as eleições para o Centro Acadêmico.

 O problema não é ser liberal e de direita. O problema é falar asneiras e não contribuir efetivamente com uma opinião pública de qualidade onde os problemas de um país no capitalismo periférico precisam ser discutidos com a seriedade que merecem. E, para além disso, a única coisa que o doisladismo produziu é a naturalização e propagação de argumentos e posicionamentos onde o termo “duvidoso” é apenas um eufemismo. Mais um demérito, de uma listagem de centenas, da Folha de São Paulo. O problema é que a Folha não está sozinha nesta mistificação do que seja um debate de interesse público.

Dando seguimento, essa aproximação submissa de Joel com o bolsonarismo segue longa tradição dos liberais de direita[3] do século XX em flerte com os autoritários em geral. Vejamos o que Grégoire Chamayou nos diz sobre a sabujice de um dos maiores representantes desta vertente política:

Salazar toma o poder em Portugal. Hayek envia-lhe seu projeto de constituição com palavras gentis. Os generais dominam a Argentina, ele vai até lá dar uma sondada. Pinochet derrama sangue no Chile, lá vai ele de novo. Um boicote se lança contra a África do Sul, Hayek pega a pena para defender o regime, e assim por diante. Toda vez (ou quase sempre) que ele se acha numa situação histórica em que, precisamente, ‘por reação contra as tendências socialistas’, um regime ditatorial se impõe, ele se apressa em oferecer seus conselhos.” (Chamayou, 2020: 347-348)

De alguma maneira o desalentado Joel, por representar uma direita sem voto na conjuntura onde ele diagnostica termos um governo de esquerda[4], igualmente se apressou em ofertar conselhos ao bolsonarismo. De olho no capital eleitoral que não tem, sugeriu um caminho maroto de “moderação”. Oras, quem sabe não teremos aí um racismo de baixos teores? Tal como Bolsonaro já achou conveniente pesar quilombolas em arrobas, que tal utilizarmos outra unidade mais adequada? Que tal quilos? É moderação suficiente? E o conteúdo misógino indisfarçável inerente ao bolsonarimo onde até mesmo Michele Bolsonaro é ofuscada? O quanto de misoginia podemos moderar, sem perder a essência do movimento? Talvez um bolsonarismo com pink ou green washing, tudo para que a população LGBT ou ambientalistas possam se sentir mais à vontade quando forem tratados como párias por parte do público bolsonarista.

Com tudo isso, ainda Joel clama pelo que já existe. O NOVO está aí com seu discurso prafrentex identitário presente na boca de suas elites, seguindo com a sua base tão ogra como o rasteiro bolsonarismo fora do partido[5], e foram verdadeira correia de transmissão do governo Bolsonaro (2019-2022) na Câmara dos Deputados. Tal como Tarcísio, aquele que conseguiu uma alta produtividade em letalidade policial, os impressionantes 138% de aumento de indivíduos mortos por sua polícia[6], e se tornou muso inspirador dos jornalões como presidenciável dos sonhos para 2026. O que há de moderação? Um verniz nos bons modos, seja em Tarcísio ou o NOVO, e todos aliados de uma agenda de livre mercado dentro do que as elites econômicas locais, sejam no Agro ou na Faria Lima, assim o consideram: um projeto de acumulação sem constrangimentos como direitos, tributação, etc.. Um velho oeste distópico em que liberdade boa é a exploração sem limites e a formação de paraísos fiscais exclusivos para ricos. É barbárie? É, tanto quanto no bolsonarismo raiz! Só que sem camisa falsificada do Palmeiras e pão fatiado com leite condensado.

Com tudo isso, não enxergando o “bolsonarismo moderado realmente existente”, Joel sofre ainda da falta da decência dos que tiveram peito e bancaram a lógica do cordão sanitário.

Alemães, diante do crescimento eleitoral da AfD, o partido com tonalidades xenófobas e parentesco com o neonazismo, portugueses ante o desprezível Chega, e até mesmo diversos setores concorrentes na Espanha diante do VOX, decidiram adotar por princípio não se amalgamarem com essas forças extremistas a despeito de sua capacidade eleitoral. É o cordão sanitário. Com fascistas e assemelhados, não confraternizamos. Combatemos e isolamos. Com todos os senões, foi o que João Dória, do slogan “Bolsodória” de triste memória, optou por fazer individualmente. Deu combate quando viu que a coisa estava fora do controle. Igualmente na direita democrática que Joel não se vê representado, nomes como Alckmin, Simone Tebet, ao invés de tentarem “moderar” o bolsonarismo, embarcaram no governo federal de Frente Ampla de Lula 3.

Não foi uma saída pelo oportunismo eleitoral caroneiro do bolsonarismo replicado em todo território nacional, algo visível até mesmo nestas eleições de 2024. Oportunismo este reforçado pelos argumentos sem vergonha de clamor de moderação apresentados por Joel. Mas, não, não é possível moderar o que se constituiu enquanto discurso de ódio amplificado pela arquitetura das redes sociais. Enfim. O jovem Joel já envelheceu mal.

Referências:

CHAMAYOU, Grégoire. A sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário.  São Paulo: Ubu, 2020.

* Disponível em: https://vermelho.org.br/coluna/terrorismo-como-tatica-politica-de-bolsonaro/, acesso em 06 de maio de 2024.

** Professor Associado da área de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais na UFF-Campos.



[3] Pode causar estranhamento ao leitor menos familiarizado com a história das ideias políticas. Mas, não custa lembrar que há um liberalismo progressista que congrega de Hobhouse a John Dewey. Sim, há uma esquerda liberal.

[4] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joel-pinheiro-da-fonseca/2024/04/como-e-que-o-brasil-e-de-direita-e-lula-esta-no-poder.shtml, acesso em 06 de maio de 2024. Penso que seria de bom alvitre Joel ouvir o experiente Zé Dirceu que considera Lula 3 um governo mais para a centro direita. Para detalhes desta perspectiva, ver aqui: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/04/22/jose-dirceu-governo-lula-centro-direita.htm, acesso em 06 de maio de 2024. Particularmente, entre Joel e Zé, fico com o último.

[5] Vale dizer que a turma do LIVRES também vive esses constrangimentos. Por vezes seus dirigentes tentam emplacar um discurso mais aberto na pauta de costumes e são esculhambados por suas próprias bases.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

A cartilha Alt-Right em ataques à soberania nacional: os casos de Musk e Textor

 
(Colagem composta por imagens sem alteração dos aspectos originais) 
FONTES: Win McNamee/Getty Images (Elon Musk)Jorge Rodrigues/AGIF (John Textor)PX Media/Shutterstock (bandeira do Brasil ao fundo) e Innuendo Studios (Alt-Right Playbook).


Jefferson Nascimento*

Renato Nucci Jr.**


 (Este texto é uma atualização do artigo "Elon Musk, John Textor e a cartilha alt-right" enviado em 18 de abril e publicado ontem no site A Terra é Redonda. Portanto, não se trata apenas da republicação, mas da inserção de análises e descrições de fatos ocorridos após o dia 18 de abril. No entanto, os fatos ocorridos depois do dia 18 reforçam os argumentos e análises do texto original. A inclusão deles é para adicionar elementos que sustentam a análise.)


Não é razoável debater o questionamento de Elon Musk às ordens judiciais destinadas ao X/Twitter como se fosse uma oposição do magnata sul-africano ao ministro Alexandre de Moraes. Musk atua para garantir interesses econômicos predatórios sobre países pobres e em desenvolvimento: herdeiro da exploração de diamante na Zâmbia; defensor do golpe de Estado na Bolívia, em 2019 (daria “golpe onde fosse necessário” para manter seu acesso ao lítio); e, agora, ataca o ordenamento jurídico brasileiro. Apesar da importante atuação de Moraes, associar a defesa da democracia representativa ao seu engajamento e qualidades individuais diz muito sobre a instabilidade política atual, reforçando a fragilização das instituições. Tal associação não agrega para uma construção política popular: junto a outros ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), "Xandão" têm votado pela restrição de direitos e garantias trabalhistas.


Musk endereça esse ataque à figura de Alexandre Moraes como atalho para agitar os bolsonaristas brasileiros e a extrema-direita internacional. Porém, ele não está sozinho: vamos demonstrar que vai no mesmo sentido a atuação de John Charles Textor, dono da Eagle Football Holdings Limited[i] e da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) do Botafogo de Futebol e Regatas. Está em curso uma escalada em múltiplos campos contra a soberania nacional, com base no manual de comunicação Alt-Right, empreendida por diferentes atores individuais e coletivos. Começamos pela contextualização.

 

 

1. O contexto:

Em 08 de março, parlamentares brasileiros bolsonaristas, liderados por Eduardo Bolsonaro, estiveram no Congresso dos Estados Unidos (EUA) para denunciar o “sistema totalitário do judiciário brasileiro”, cujo ativismo judicial do STF e, principalmente de Alexandre de Moraes, estaria evidente nas decisões contra Jair Bolsonaro nos processos sobre as eleições de 2022 e contra golpistas de 08 de janeiro de 2023.


        O grupo não conseguiu a audiência com a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, mas realizou uma “missão” no país norte-americano acusando a esquerda de dissimular a pauta dos direitos humanos seletiva e injustamente contra seus opositores. Notem que o bolsonarismo, os populistas autoritários de direita e a extrema-direita disfarçam seus projetos autoritários mobilizando termos como “liberdade” e “democracia”, associando os adversários à “censura” e “totalitarismo”. Para isso, ressignificam a noção de “democracia” e “povo”: enquanto os defensores da democracia liberal pensam em termos de pluralidade irredutível de indivíduos livres e iguais; bolsonaristas, populistas autoritários e extrema-direita se baseiam numa comunidade homogênea com identidade coletiva e defendem a vontade singular do povo, negando legitimidade aos opositores e combatendo quem não se enquadra na comunidade. A “liberdade” seria absoluta para os membros da comunidade e, assim, não existe abuso quando o emissor estiver consonante à respectiva identidade.


A ressignificação nega a busca pelo bem comum e ignora convenções internacionais. Por exemplo, para bolsonaristas, populistas e extremistas não faz sentido o adendo da Corte Americana de Direitos Humanos sobre liberdade de expressão: “A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.” Afinal, adversários políticos e indivíduos “não-comunitários” devem ser estigmatizados para demarcá-los como ameaça à comunidade, à identidade histórica do grupo nacional e aos modos estabelecidos de vida, e/ou como parte de uma casta/elite que opera um mecanismo (ou sistema) que corrompe as instituições e os partidos e prejudicam os elementos comunitários. Por isso, a repetição de termos como corrupto/bandido, inimigo do povo, traidor, etc., independente de provas, é uma “justa” ferramenta na luta contra o “mal” encarnado pelos referidos adversários e outsiders.


Quem não compõe o demos não possui legitimidade para denunciar crime de ódio, mentira e incitação de violência oriunda de expressões e posicionamentos de elementos comunitários (“mimimi”): são ameaças. Crime é não compactuar com a identidade coletiva, logo não há intolerância religiosa contra não-cristãos, mas há cristofobia; não há racismo ao mesmo tempo que denunciam o racismo reverso; não há machismo ao mesmo tempo que o feminismo é distorcido como ataque à masculinidade; e a corrupção é uma marca do outro, jamais dos membros dessa “comunidade” - independente das provas. (Quando é o caso, a culpa é do sistema de justiça que seria parte da conspiração inimiga).


Essa visão de mundo e modo de comunicação ganharam impulso com as estratégias do Alt-Right. Esse movimento nasceu de um tipo de revista online, o webzine, chamada The Alternative Right, editada pelo ativista do “white nationalist movement” Richard Bertrand Spencer, e repercutida em sites/fóruns como 4chan e 8chan. Spencer defende o legado de George Lincoln Rockwell, fundador do Partido Nazista Americano, a escravização de haitianos, a limpeza étnica nos EUA e propôs a conversão da União Europeia em um império racial branco. Criador do movimento e idealizador do termo Alt-Right, ele atraiu neonazistas, supremacistas branco e antissemitas, chegando ao auge de popularidade durante a campanha presidencial de 2016, quando apoiou Donald Trump, e na condução do evento Unite the Right (2017) em Charlottesville, na Virgínia. Spencer apoiou a nomeação de Steve Bannon para conselheiro de Trump e propôs aos seguidores "vamos festejar [a eleição de Trump] como se estivéssemos em 1933", em alusão à ascensão de Adolf Hitler.[ii]


Spencer deixou de apoiar Trump e admitiu a possibilidade de votar em Joe Biden, em 2020. Todavia, já havia perdido relevância desde uma série de problemas na justiça a partir de 2018 e o seu movimento se acomodou como uma importante fração autoritária da direita estadunidense representada por lideranças do Partido Republicano, como Ron DeSantis (governador da Flórida conhecido pelas propagandas extremistas, algumas associadas ao neonazismo) e Donald Trump.


O método de comunicação em massa desenvolvido pelo Alt-Right visa a manipulação do debate público por meio do compartilhamento de memes; uso de argumentos-espantalhos, da falácia ad hominem, negacionismo científico, desinformação e fakes news para desacreditar autoridades e instituições; postagens com apologia ao racismo, ao machismo e à xenofobia; ataque ao multiculturalismo; exortação à união frente a um inimigo público da comunidade e seus valores; uso narrativas conspiracionistas que afetam a confiança interpessoal e às instituições políticas; domínio do debate na internet através de sites (Textor concentrou as denúncias em sua página após a imprensa nacional diminuir a repercussão), YouTube e diversas redes sociais (dentre as quais X/Twitter promete ser o “paraíso” desde que Musk assumiu).


É importante lembrar que, no momento, líderes de extrema-direita com relevância internacional enfrentam protestos e queda de popularidade, como Viktor Orban da Hungria e Benjamin Netanyahu em Israel. Além disso, as eleições dos EUA se aproximam e as notícias dão conta do crescimento de Joe Biden nas pesquisas de intenção de voto - algumas indicam a ultrapassagem sobre Trump.


No Brasil, a gritaria de Musk agitou o debate em torno do PL2630/2020 (propõe a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet), popularmente PL das Fake News. O texto aprovado no Senado, dentre outros, definia a criação do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet com 21 membros, sendo: um do Senado, um da Câmara, um do Ministério da Justiça, um do Conselho Nacional de Justiça, um do Ministério Público, um da Polícia Federal e um das Polícias Civis (são sete representantes de instituições de Estado e de governo); cinco membros da sociedade civil, dois acadêmicos, dois do setor de Comunicação Social, dois representando os provedores, um representante das empresas de telecomunicação e um do CONAR - Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (totalizando 14 representantes sem vínculo com o Estado).


Portanto, o PL não propunha Estado um controle estatal. É possível pensar em ajustes, mas está claro que a oposição ao PL não é a luta contra a tirania do Estado. É a defesa da tirania das bigs techs, que colocam seus interesses econômicos (e políticos) como absolutos, influenciando processos eleitorais, amplificando discursos de ódio, permitindo incitação da violência e disseminando notícias falsas.


Aproveitando a repercussão, o presidente da Câmara Arthur Lira interrompeu a tramitação e criou grupos de estudo. O debate voltou à estaca zero em uma Câmara cuja maioria defende as big techs impedindo uma regulamentação com participação da sociedade civil e permitindo a sobreposição das estratégias empresariais (pela manipulação dos algoritmos) aos interesses nacionais. Nesse cenário, toda hora aparece em artigos, editoriais ou redes sociais um argumento pretensamente “liberal” ignorando competências do STF segundo a legislação brasileira vigente, apoiando, contemporizando ou se calando sobre os boicotes ao esforço para uma legislação específica atualizada. 


Além disso, Jair Bolsonaro e seus aliados aproveitaram a agitação da sua base e realizaram uma manifestação em Copacabana, no Rio de Janeiro, em 21 de abril. Aproveitando a data que mitifica Tiradentes como mártir na luta pela liberdade (contra a Coroa Portuguesa), o ato serviu para o vitimismo de Bolsonaro e seus asseclas e para exaltação de Elon Musk e sua "cruzada pela liberdade". 


No dia seguinte, John Textor foi recebido pelos membros da CPI das Apostas Esportivas no Senado, com transmissão ao vivo pelo YoutTube. A comissão é dominada por bolsonaristas, com destaque ao relator Romário (PL-RJ), Eduardo Girão (PL-CE) e Dr. Hiran (PP-RR), apesar da presidência do governista Jorge Kajuru (PSB-GO). Outro não-bolsonarista com algum destaque é Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB). A seguir, tratamos dos interesses de Elon Musk.

 

 

2. Musk: interesses econômicos, adesão à extrema-direita e a ressignificação da “liberdade”

 

a) As acusações e a máscara de defensor da liberdade de expressão

No embate de Elon Musk contra a Justiça brasileira, o argumento da “liberdade de expressão” eclipsou a inação do X/Twitter no combate aos discursos de ódio, incitação à violência e notícias falsas sobre políticos, eleições e conflitos internacionais. Essa manobra destacou o autointitulado ativista pela liberdade de expressão Michael Shellenberger. Ele alegou ter provas das restrições à liberdade de expressão no Brasil (Moraes teria ameaçado de processo o advogado do X/Twitter) em seus Twitter Files. Porém, depois de desmentido em seu principal argumento, admitiu o erro; logo, não tinha como provar a principal acusação.[iii] O jornalista “confundiu” uma questão do advogado com o Ministério Público (MP) com uma retaliação de Moraes relacionada ao X/Twitter.


Voltando a Musk, não é verdade que ele tenha entregue às autoridades dos EUA provas de que Alexandre de Moraes interferiu nas eleições de 2022 e a denúncia que o X/Twitter fez ao Congresso dos EUA relativa a ordens judiciais sobre moderação e derrubada de conteúdo reforça que a empresa de Musk estrategicamente transfere o debate sobre fatos relacionados ao Brasil para atores de um país com ordenamento jurídico diferente. Acessar uma instituição estrangeira demonstra a busca pela fragilização da soberania nacional, ocultada sob alegação de “exclusivismo” criado pelo ativismo do STF capitaneado por Alexandre de Moraes. Porém:

I) a Comissão Europeia investiga o X por violar normas de moderação e transparência definidas pela DSA (Lei de Serviços Digitais), inclusive permitindo informações e imagens falsas, cenas de videogames e vídeos antigos ou de outros conflitos para manipular a opinião pública sobre o massacre na Faixa de Gaza;

II) o órgão de vigilância eSafety da Austrália notificou o X em junho de 2023 pelo aumento da intensidade e quantidade de postagens violentas e de ódio desde que Elon Musk comprou a rede;

III) o Brasil, apesar de ser o quarto mercado, é apenas o 11° em pedidos legais de remoção e bloqueios de contas; ficando atrás, dentre outros, de Japão, Coreia do Sul e EUA - os quatro primeiros (Japão, Turquia, Rússia, Índia e Coreia do Sul) concentram 92% dos pedidos;

IV) o Brasil também não figura entre os primeiros em pedidos de informações realizados por autoridades: é apenas 10°, atrás de países como Japão, França, Reino Unido, França e EUA; solicitações de autoridades brasileiras não chegam a 5% das estadunidenses.[iv]


Ninguém lúcido nega que Austrália, EUA, França, Japão, Reino Unido e os membros da União Europeia se enquadram nas classificações de democracia representativa-liberal. Ademais, em dezembro de 2022, mais de 20 mecanismos e relatorias da ONU elaboraram uma carta acusando Musk de favorecer a disseminação da violência e cobrou medidas.


Musk age diferente na Índia, governada por Narendra Modi de extrema-direita. Lá, acata decisões judiciais que determinam exclusão de contas de opositores ao governo e veto aos links que redirecionam para o documentário “Índia: a questão Modi[v]. Além de afinidades ideológicas, Musk pretende investir US$3 bilhões em fábricas da Tesla na Índia para concorrer com a BYD no segmento de carros elétricos no Oriente.


Em 15 de abril, depois de toda agitação e mobilização política da extrema-direita, os advogados do X/Twitter afirmaram que cumprirão as decisões judiciais brasileiras. No entanto, passaram a apostar na visibilidade por meio de deputados republicanos no Congresso dos EUA para dar ares de institucionalidade e difundir a crença na legitimidade. Em 17 de abril, veio a denúncia de “censura” feita pela Comissão Judiciária da Câmara de Representantes dos EUA, presidida por Jim Jordan (republicano ultraconservador). O congressista ignorou diferenças da legislação brasileira sobre liberdade de expressão, repetiu mentiras sobre as eleições de 2022 e o 8 de janeiro de 2023, ocultou que solicitações desacompanhadas de fundamentação se relacionam a diferentes perfis de um mesmo usuário e que parte das ordens foram feitas para várias redes sociais e aplicativos de comunicação sem a mesma celeuma provocada por Musk. 



b) Modus operandi

Elon Musk é crítico ao Partido Democrata e acusa a mídia tradicional de servir a esse partido, ainda que seja conhecido o viés pró-Partido Republicano da Fox News, maior conglomerado de mídia. O sul-africano apoia a ala mais à direita dos Republicanos, liderada por DeSantis e Trump, cuja conta no X/Twitter foi liberada quando Musk comprou a rede social. O magnata, assim como Trump e Jim Jordan, defende anistia aos invasores do Capitólio. Em março, tratou com Trump sobre doação para a campanha presidencial.[vi]


    Quanto a Michael Shellenberger. A acusação sem provas, admitida como erro, decorre do “direito de mentir” no debate público? Da ignorância sobre o sistema de justiça brasileiro? Ou ambos, apostando no viés de confirmação de uma plateia desinformada e/ou mal-intencionada? Seja qual for, há coerência a trajetória: Shellenberger é famoso por um livro em que nega a emergência climática se baseando em argumentos ad hominem contra cientistas, argumentos-espantalhos que nunca foram enunciados por nenhum acadêmico para desmentir e supostamente refutar pesquisadores, demonstrando para leitores minimamente atentos que não domina a questão ambiental, a ponto de afirmar que: “Na realidade, em média, a biodiversidade nas ilhas ao redor do mundo dobrou graças à migração de ‘espécies invasoras’.” Questão basilar: a quantidade de espécies em uma unidade geográfica refere-se ao conceito de riqueza de espécie e não à biodiversidade. Aliás, estudos demonstram que espécies invasoras ameaçam a biodiversidade.[vii] É coerente que o negacionismo científico projete alguém como referência do bolsonarismo e da extrema-direita.


As críticas à trajetória de Shellenberger não são usadas para desqualificar as denúncias feitas por ele, estas caíram por serem incorretas, como ele admitiu. Logo, não se trata aqui da falácia ad hominem, mas da caracterização de um modus operandi. Tanto que, depois de desmentido, Shellenberger continuou a atacar Moraes com opiniões para o deleite de pessoas como Glenn Greenwald e supostos liberais brasileiros. Os ataques desconsideram que a legislação sobre liberdade de expressão aqui é diferente dos EUA, onde é permitida a atuação do Partido Nazista e da Ku Klux Klan; ao passo que o Brasil se alinha às convenções internacionais que proíbem expressões racistas, discriminatórias (gênero, origem étnica, etc.), apologia à violência e discurso de ódio[viii]. Além disso, inventa meios para acusar o STF de abuso de competência nesse caso[ix], qualificando as decisões judiciais como excepcionais, ao mesmo tempo em que contam com o apoio bolsonarista para evitar projetos de lei que regulamentem as redes sociais.

 

        Voltando ao chefe. Musk, ao endereçar os ataques ao STF e destacar Alexandre de Moraes, resgata o atalho difundido por Eduardo Bolsonaro e outros deputados da extrema-direita na “missão” nos EUA. De modo coordenado, houve amplificação interna e externa do assunto. São exemplos: a moção de aplauso e louvor concedida pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara brasileira; e, externamente, os apoios de André Ventura, do Chega (Portugal), Santiago Abascal, do Vox (Espanha), que se referiu a Moraes como “carcereiro de Lula”; e do presidente argentino Javier Milei. Notem a presença dos parâmetros do Alt-Right (ataques ad hominem, desinformação, conspiracionismo e unidade frente a um suposto inimigo público).


Musk buscou ares de legitimidade na comissão presidida pelo deputado Jim Jordan, como vimos. O importante não era o conteúdo e a consistência da denúncia, mas o ritual. Ao acusar o Brasil de usar instituições para minar a democracia (crítica comum a políticos de extrema-direita e populistas), empurrou uma acusação para os adversários, e misturou governo com STF para sugerir interferência partidária no Judiciário. Mirando o contexto eleitoral dos EUA, atacou a suposta inação do governo Biden no caso. Claramente, evocando o atropelo à soberania brasileira. Jordan usou diversas vezes estratégias Alt-Right: paralisou o governo para forçar a retirada do financiamento ao seguro saúde (Affordable Care Act - ACA), em 2013; apoiou a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo (2015); se opôs à vacinação obrigatória durante a pandemia de Covid-19; contestou os resultados eleitorais de 2020; defendeu os invasores do Capitólio; não compareceu para depor sobre a invasão; e chantageou o presidente ucraniano condicionando o apoio ao país na guerra contra Rússia ao avanço das investigações sobre o filho de Joe Biden e seus negócios na Ucrânia. No primeiro caso, Jordan foi chamado de “terrorista legislativo” pelo companheiro de Partido Republicano John Boehner. 


O ultraconservador Jordan foi investigado por omissão em um escândalo de abuso sexual na The Ohio State University, onde era técnico de Wrestling (2018); e, apoiado por Trump, foi rejeitado pelo partido como candidato a presidente da Câmara. Segundo a deputada republicana Liz Cheney: se Jordan fosse eleito, “não haveria nenhuma chance de argumentar que era possível contar com congressistas republicanos para defender a Constituição”.[x] Contudo, foi elevado a defensor da “democracia” brasileira por bolsonaristas.


Ironicamente, a mesma comissão, com voto favorável do mesmo Jordan, aprovou um projeto de censura ao TikTok alegando defesa da segurança nacional (impondo a venda da rede social chinesa para alguma empresa dos EUA ou sua descontinuidade no país). Jordan quer impor ao Brasil a lei estadunidense de liberdade de expressão, mas nem cogita considerar o direito das instituições brasileiras defenderem a segurança nacional. Afinal, a ameaça que o TikTok representaria aos EUA, por ser estrangeiro, o X/Twitter, sediado em San Francisco, na Califórnia, representa ao Brasil.

 

Para completar a hipocrisia, Musk já tentou censurar nos EUA pesquisadores do CCDH - Center for Countering Digital Hate (Centro de Combate ao Ódio Digital, antiga Brixton Endeavors) impedindo-os de divulgar avaliações sobre comportamento da rede social, sobretudo a comportamentos tóxicos. Esta ONG identificou que não foram tomadas medidas contra 99% das contas verificadas que disseminam discursos de ódio e que as postagens com insultos aumentaram em 202% sob gestão do magnata. Em reação, Musk recorreu à via judicial acusando a entidade de uso de dados ilegais e que a divulgação das informações afugentou publicidade e patrocinadores. Perdeu, mas ao que tudo indica, não é bem a absoluta liberdade de expressão que o move, mas a liberdade de alguns tipos de expressão que promovem sua ideologia e seus negócios a qualquer custo.


              

c) Interesses imediatos

O Brasil é um dos principais mercados do X/Twitter, cujas postagens discriminatórias, violentas e conspiratórias geram mais engajamento, e há outros interesses econômicos, como mostra The Intercept Brasil[xi]:

I) Lítio. O Serviço Geológico Brasileiro descobriu reservas de lítio no Vale do Jequitinhonha (norte de Minas). A área explorada pela brasileira Vale (umas das fornecedoras para de lítio e níquel para empresas de Elon Musk) e pelas empresas estrangeiras Sigma e AMG Mineração. A Sigma é uma empresa canadense que Elon Musk tem o interesse de comprar e a AMG é uma empresa holandesa. Musk se reuniu recentemente com Nicolai Tangen, CEO do Norges Bank, que possui ações dessas duas mineradoras estrangeiras que atuam no norte de Minas.

II) Carro elétrico. As negociações para a BYD investir no Brasil incluem a compra da antiga planta da Ford na Bahia. A efetivação desse acordo é prejudicial à Tesla; pois a BYD, que já cresceu 6900% em 2023 no Brasil, lidera a venda global de carros elétricos e, com a planta brasileira, pode ampliar a liderança no mercado com aumento das exportações para a América do Sul. Em 15 de abril, a Tesla anunciou que, em função da menor demanda por seus veículos, demitirá 10% dos seus funcionários, atingindo cerca de 14 mil trabalhadores.


Na próxima seção, tratamos de John Textor.

 

 

3. Textor: low profile da extrema-direita, a instrumentalização da paixão pelo futebol e da luta contra corrupção

 

a) As acusações e a imagem de mártir contra a corrupção

Desde o final de 2023, John Textou lançou acusações para minar ainda mais a credibilidade da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e do Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). Como Shellenberger e Musk, misturou denúncias com provas de outros casos para sustentar sua narrativa e gerar desconfiança em relação às entidades.


Ele começou com um relatório encomendado junto à empresa Good Game!, que apontava uma série de erros de arbitragem, classificando como erros graves inclusive lances em partidas que nenhuma decisão tinha sido contestada antes para sugerir manipulação do Campeonato Brasileiro da série A de 2023. Segundo o documento, o Botafogo deveria ter terminado com vários pontos à frente do Palmeiras.


Em março, afirmou ter gravação de um árbitro e lançou essa suspeita no meio da acusação de manipulação em favor do Palmeiras - mais especificamente citou um jogo de 2022 entre Palmeiras e Fortaleza. Porém, o áudio era de um árbitro de divisões inferiores do Rio de Janeiro. Percebem a semelhança com Shellenberger? (I) Uso de provas de outro caso para sustentar a narrativa; (II) como Shellenberger confundia atores do complexo sistema de justiça brasileiro, Textor mistura atribuições divididas pelo sistema de federações estaduais e confederação nacional. Ainda assim, se colocou como vítima: criticou O Globo por matéria que associava a gravação à série A do Brasileirão, dizendo não ter afirmado isso. Mas qual a lógica em falar da gravação no meio de acusações de que os últimos títulos brasileiros do Palmeiras não foram limpos? Sem dizer literalmente, acessando o viés de confirmação, alimentou a desconfiança e favoreceu o conspiracionismo.


Textor diz que alertou oficialmente a CBF ainda durante o Campeonato Brasileiro de 2023, mas o aviso foi feito em relação a uma partida do Brasileiro de 2022 e o representante da Good Game! afirmou que mandou o alerta para o e-mail da CBF. Sem saber, sequer, se o e-mail chegou para um responsável ou se foi para a caixa de spam. Ou seja, não houve notificação oficial. Apenas depois Textor entregou oficialmente ao STJD o relatório Good Game! com os supostos erros de arbitragens.


Além dos problemas na gestão do futebol, na contratação de um substituto para o técnico Luiz Castro, a SAF de Textor deve a clubes, como o São Paulo FC. Chega a ser curioso que o São Paulo tenha sido citado pelo cartola justamente no dia que anunciou que ingressaria com ação por falta de pagamento pela venda de Tchê Tchê ao Botafogo. O São Paulo também questiona o valor da venda do goleiro Lucas Perri do Botafogo a outro clube de Textor, o Lyon. O valor de €6,4 milhões por Perri e o zagueiro Adrielson, anunciado oficialmente, é inferior ao valor de mercado dos atletas e ajudou o Lyon a não atingir o limite do Fair Play Financeiro da Liga Francesa, lesando o São Paulo que detinha 18,5% dos direitos econômicos de Perri.


O timing, no mínimo, curioso não é o único problema. Textor acusou o envolvimento de atletas do São Paulo na manipulação favorável ao Palmeiras se baseando em outra análise de inteligência artificial da Good Game!, cujo CEO Thierry Hassanaly depôs em audiência pública no Senado (em 20/03/2024) deixando dúvidas, conforme matéria de Rodrigo Mattos[xii]. A empresa informou que, para análise de manipulação, considera apenas o comportamento técnico de atletas em campo por meio de inteligência artificial e análise de especialistas sem nenhum cruzamento com apostas ou supostos favorecimentos. Também informou que não faz monitoramento em larga escala de jogos no Brasil e que não poderia informar quais jogos foram manipulados. Por fim, admitiu não ter como saber os motivos e não explicou como concluíram que determinados atletas do Fortaleza e São Paulo manipularam jogos sem informações extracampo.


Em 22 de abril, Textor reafirmou na CPI do Senado o uso da inteligência artificial da Good Game! e admitiu que os documentos que apresentará em "sessão secreta no Senado junto com a empresa" mostram "como" o jogo foi manipulado e não "o motivo". Ele afirmou que manipulações ocorrem há décadas em todos os lugares e que, como ocorreu com o doping, ainda há resistência em acreditar que é um problema disseminado, principalmente nas divisões inferiores. Sobre a série A, admitiu que só tem os relatórios para o jogo Fortaleza e Palmeiras (2022) e Palmeiras e São Paulo (2023) e que contratou a empresa para jogos específicos. Quando questionado sobre a eficácia da IA para esse fim, deu exemplos de erros de arbitragem para depois falar de jogadores do São Paulo contra o Palmeiras e no fim disse: "não estou dizendo que esses jogadores manipularam, mas o jogo foi manipulado" (sic). Mencionou ainda um jogador da NBA punido recentemente, mas a liga norte-americana de basquete não é monitorada pela Good Game!, sim pela Sportradar.


Sportradar é a empresa responsável pelo monitoramento oficial de partidas no Brasil. Ela observou mais de nove mil partidas em 118 competições diferentes e identificou 109 partidas com indícios de manipulação: 94 em jogos de federações estaduais e apenas 15 em competições da CBF (uma da série B, uma da Copa Verde e 13 da série D)[xiii]. A Sportradar[xiv], fundada na Noruega, com sede na Suíça, usa um método validado pela Universidade de Liverpool e analisa simultaneamente padrões de apostas. Ela monitora os jogos da FIFA, UEFA e da Conmebol bem como atua em outros esportes: beisebol (para a MLB), hóquei (para a NHL), futebol americano (para a NFL), tênis (para a ATP Tour), handebol (Handball-Bundesliga), críquete (para a BCCI) e automobilismo (para a FIA e NASCAR). Os responsáveis pela Good Game!, por sua vez, não citaram no site ou na audiência pública do Senado nenhuma competição pela qual é responsável pelo monitoramento de integridade e admitem não haver muitos estudos científicos sobre o modelo de análise comportamental utilizado. A empresa sequer participou do Congresso de Integridade, realizado pela FIFA em Singapura, em 04 e 05 de abril.[xv]


 


b) Modus operandis

Casado com Deborah e pai de Christopher, John Charles Textor tem um de seus endereços registrado em Hobe Sound, na Flórida. Ele é (ou era até 2023) filiado ao Partido Republicano[xvi] e já defendeu publicamente o extremista Ron DeSantis[xvii] - o mesmo apoiado por Elon Musk. Portanto, independente de relações pessoais, há convergência ideológica e relações objetivas dele e de Musk com a extrema-direita estadunidense. Mais do que isso, a estratégia de Textor para supostamente denunciar a corrupção na CBF e no futebol brasileiro se assemelha ao modus operandi utilizado pelos adeptos do Alt-Right.


Além da filiação, outros fatos mostram vínculos de Textor com os republicanos. Ele esteve no centro de uma polêmica envolvendo recursos públicos e financiamento de campanha na Flórida. Em 2009, foi aprovada uma emenda que autorizou o então governador republicano Charlie Crist (2007-2011), a disponibilizar US$42 milhões para o desenvolvimento econômico; deste, o Projeto Bumblebee da Digital Domain, presidida por Textor na época, ficou com a metade. Em sequência, Textor fez doações de campanha para republicanos, gerando suspeição. Foram beneficiados para as eleições de 2010: o então governador; Kevin Ambler e David Rivera que, na ocasião, eram deputados estaduais e ajudaram na aprovação. Coincidência ou não, um dos parceiros comerciais de Textor, Dan Marino, participou da arrecadação de fundos para a campanha de Ambler.[xviii]


Há outra semelhança com Musk. Textor recorreu à justiça em 2016 para calar um crítico. Processou Alki David, dono de uma empresa de efeitos especiais concorrente à Digital Domain. David, dentre outras práticas acusadas de perseguição cibernética, divulgou processos judiciais contra a empresa de Textor (inclusive, a tentativa do Estado da Flórida reaver o dinheiro fornecido durante o governo Crist) e ironizou Textor nas redes sociais com uma foto de Hitler legendada com a frase: “Desculpa se ofendi algum #neonazi”, que pode se referir aos vínculos políticos que mencionamos antes, ao processo de censura ou a algo mais na biografia de Textor. A liminar contra David foi anulada no Tribunal de Apelação.[xix]


Textor pouco fala de preferências ideológicas e adesão partidária. Esse modo low profile é coerente com a busca por dissimular os sentidos políticos do futebol. Nesse caso, ele fez sua lição de casa ao se colocar em defesa da lisura e transparência do jogo contra a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), cujo histórico coloca em dúvida a credibilidade dos resultados futebolísticos no Brasil. Ele elogiou a iniciativa do Senado de instaurar a CPI e afirmou que isso pode fazer com que o Brasil "lidere" as investigações. No entanto, ao chegar para depor na CPI em 22 de abril, Textor fez questão de enfatizar que enxerga o caso como um "problema global". É como se lutasse no âmbito do futebol com interesses meramente esportivos que ultrapassam as fronteiras geográficas.


Textor disse ainda que tem interesses como um torcedor apaixonado, que não colocaria sua reputação em risco e que tem sido ameaçado de processos por dirigentes. Defendeu a inteligência artificial, dizendo ter feito fortuna com ela, podendo hoje investir no futebol. Percebam a estratégia: provoca empatia no telespectador (torcedor apaixonado), defende a tecnologia com base em experiência pessoal sem análise científica (construiu fortuna, conta quando os erros o alertaram, mas não menciona validação científica), se coloca como vítima (ameaçado de processos), usa argumentos-espantalhos (fala de doping para desqualificar os céticos) e mistura fatos no mesmo assunto (fala do erro de arbitragem que constava no primeiro relatório quando questionado sobre análise do comportamento de jogadores).


Como Musk, Textor recorreu à temática da "liberdade de expressão", ao afirmar que a CBF cerceou seu direito quando o puniu. Alertou que a SAF atrai interesses e que o "mundo" está atento ao que ocorre no Brasil. Também como no caso Musk, os bolsonaristas agiram para dar palanque na CPI. Romário (PL-RJ) iniciou as perguntas afirmando que Textor têm provas, Carlos Portinho (PL-RJ) foi mais longe: "Muito obrigado, John Textor, por investir no futebol brasileiro [...] O senhor é o mensageiro. Se a a gente matar o mensageiro, deixa de receber mensagens [...] aí o crime impera [...]". Portinho esclareceu que viu inconsistências na exposição dos representantes da Good Game!, mas disse: "Mesmo que suas denúncias estiverem 100% erradas, elas foram importantes." Portinho também defendeu o empresário: "Ele [Textor] não acusou [...] levantou questões de comportamento para ensejar investigação que ele não têm meios de fazer e que o STJD também não têm".  


O senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), mais cético, afirmou "[...] está provado que estão aqui no campo da subjetividade e não temos como avançar. Gostaria de propor que realizemos agora a sessão secreta. Se os documentos apresentarem algo objetivo [...] podemos avançar. Portinho divergiu e foi apoiado por outros senadores ao dizer que não eram perguntas subjetivas, mas preparatórias para a reunião da sessão secreta.


Após a tal sessão secreta ainda no dia 22 de abril, os senadores da CPI precisaram admitir que não poderiam tratar as informações mostradas por Textor como provas, apenas como indícios. Mesmo com o domínio bolsonarista com o botafoguense Dr. Hiran (PP-RR), o relator Romário (PL-RJ), Carlos Portinho (PL-RJ) e Eduardo Girão (PL-CE), a reunião terminou com a mesma conclusão já afirmada há semanas por jornalistas. Com uma única indicação: os elogios de Portinho à inteligência artificial e às novas tecnologias (Textor já havia falado em preço e interesse em financiar câmeras em estádios brasileiros). Nas redes é possível perceber que o mecanismo usado por Textor desde o final do ano acessou grupos da direita, como preconiza o manual Alt-Right. Veja a imagem:


 
Na parte superior, a imagem da esquerda mostra que o público faz a associação entre Textor e Musk; na imagem da direita, frases machistas e termos associados aos redpills (movimento misógino). Na parte inferior, à esquerda, a associação de Lula e Leila, sem algum fato público que justifique; à direita, como a desinformação funcionou: a pessoa que comenta fala das 109 partidas, identificadas pela Sportradar, como se fosse a de Textor - na verdade, ela desmente as acusações de Textor.

Em matéria sobre a presença de Textor no Facebook, é possível perceber o êxito em generalizar desconfiança sobre árbitros e CBF e pedido de intervenção; a justificativa de que as acusações são críveis porque o país é corrupto; a ideia da salvação vinda de fora por um estrangeiro; e novamente associação e exaltação de Textor e Musk.


  O MP de Goiás conduziu a Operação Penalidade Máxima, identificando e denunciando diversos jogadores - e nenhum árbitro - envolvidos com manipulação nas séries A e B em 2022 favorecendo grupos criminosos em apostas esportivas. Atletas foram punidos esportivas e responde criminalmente, como ocorre com os criminosos. O monitoramento da Sportradar indica um avanço, por não identificar partidas da série A. Logo, a questão com Textor não é a inexistência de manipulação, o que seria uma crença utópica. Porém, o empresário pega um problema geral, aproveita da desconfiança das pessoas, e faz acusações específicas para as quais não tem provas. Para sustentar a narrativa, busca outros casos e evoca a desconfiança em função do problema geral conhecido. O resultado é que ele amplia a insegurança das pessoas, fragiliza ainda mais as entidades e inverte o ônus da prova. Ao fim e ao cabo, a presunção da inocência - uma garantia legal - foi destruída e as entidades e pessoas acusadas passaram a ter que provar a inocência. 



c) O que está por trás?

Há uma intenção deliberada de gerar desconfiança sobre o futebol brasileiro, apontando irregularidades em outras divisões e competições para sustentar a seguinte pergunta: quem garante que não ocorreu ou ocorrerá na série A. Textor resolveu se vestir de “mártir” do combate à corrupção no futebol. Enquanto Musk, atuou numa seara de direito coletivo, se limitando a discursivamente lutar contra o Estado em defesa do “povo”, Textor escolheu um campo cuja denúncia demanda o apontamento de corruptor e beneficiário. Por isso, ele citou os cúmplices (CBF e STJD); mas, em que pese, afirmar ter citado nominalmente para Polícia Civil do Rio de Janeiro o rol de corrompidos dentre árbitros e jogadores de São Paulo e Fortaleza, ele não aponta corruptor e motivos - apenas um suposto beneficiário (o Palmeiras) favorecido sabe-se lá por quem e por quê.


Em 16 de abril, o jornalista Leandro Demori analisou no ICL Notícias a mudança nas armas geopolíticas dos EUA. A partir do governo de Richard Nixon (1969-74), a arma era o combate às drogas, cujos agentes da Drug Enforcement Administration (DEA), criada em 1973, atuavam como parte do sistema de inteligência. Essa arma ganhou recentemente o apoio de outra: o combate à corrupção. Por meio dela, agentes dos EUA obtêm acesso ao sistema de justiça e influenciam a atuação dos operadores do direito de outros países. O ordenamento jurídico estadunidense permite o uso das informações obtidas inclusive informalmente para processar empresas, organizações e instituições estrangeiras.[xx] Obviamente, essa nova arma é usada seletiva e estrategicamente para favorecer empresas, instituições e organizações yankees. Assim como garantir os interesses estratégicos e manter o poder hegemônico do imperialismo estadunidense. No caso da Operação Lava-Jato, acumulam-se cada vez mais evidências, reveladas por grandes meios de comunicação internacionais, de que o combate à corrupção foi instrumentalizado por setores da oposição e do Departamento de Estado dos EUA, para combater “a autonomia da política externa brasileira e a ascensão do país como uma potência econômica e geopolítica regional na América do Sul e na África, para onde as empreiteiras brasileiras Odebrecht, Camargo Corrêa e OAS começavam a expandir seus negócios (impulsionados pelo plano de criação dos ‘campeões nacionais’ patrocinado pelo BNDES, banco estatal de fomento empresarial”.[xxi] Para tal, provas obtidas informalmente serviram aos processos contra Odebrecht e Petrobras nos EUA. Mas não só.


O FifaGate (2015) resultou de investigações realizadas pelo FBI, a polícia federal dos EUA, resultando em prisão e afastamento de dirigentes da Fifa. As investigações envolviam corrupção, fraude, extorsão, lavagem de dinheiro e propinas referentes à definição de sedes para Copas do Mundo e acordos de marketing e direitos de transmissão desde 1991. A alegação para a ação na justiça estadunidense é que operações suspeitas passaram por bancos do país, algumas das tratativas para os crimes podem ter ocorrido no território e que o mercado televisivo do país foi afetado pelas irregularidades na comercialização dos direitos de transmissão - isso mesmo: o entendimento de que um caso ocorrido em qualquer lugar do mundo pode ser alvo do sistema de justiça dos EUA caso afete a economia do país. Coincidência ou não, após as operações, os EUA receberam da Fifa parte da Copa do Mundo de 2026 e o novo Mundial de Clubes de 2025 (SuperMundial de Clubes com 32 participantes).


As ações de Textor tendem a não ter o mesmo alcance da Operação Lava-Jato, mas o espaço já destinado a elas pelos senadores da CPI das Apostas Esportivas pode impactar na estrutura organizacional do futebol brasileiro, ainda mais se as autoridades dos EUA avaliarem a conveniência de continuar o avanço sobre o mercado do futebol. Os ataques à CBF e ao STJD não são banais, posto que o futebol brasileiro esteve no alvo no FifaGate: alguns dirigentes implicados eram brasileiros (José Maria Marin, Ricardo Teixeira, Marco Polo Del Nero) e o empresário brasileiro José Hawilla foi um dos delatores e acusados de participar do esquema. Outrossim, ao menos duas SAFs tradicionais no Brasil são propriedade estadunidense: a 777 Partners, sediada em Miami, detém 70% da SAF do Clube de Regatas Vasco da Gama; e John Textor, estadunidense com endereço na Flórida, é dono de 90% da SAF do Botafogo - o nome dele é que aparece no Estatuto Social[xxii] e não o da Eagle, sediada em Londres. Eis a questão: isso pode ser considerado impacto sobre a economia yankee? E quanto às empresas patrocinadoras e demais investidores no futebol brasileiro com sede lá? Quantas dessas casas de apostas (bets) usam bancos e/ou provedores estadunidenses? Ou, mesmo que o processo não vá inteiramente para a justiça estadunidense, quais as informações formais e informais serão enviadas?


Textor teria meios mais efetivos para colaborar com um futebol limpo, caso apresentasse antes provas e/ou indícios para dar causa a uma abertura de inquérito via MP, Polícia Civil do Rio de Janeiro (PC-RJ) ou Polícia Federal. Mas, não é disso que se trata e ao menos uma mentira já veio à tona: o empresário afirmou ter comparecido voluntariamente para prestar depoimento na PC-RJ, no último 03 de abril, mas a versão oficial da polícia é que ele foi intimado.[xxiii] Em consequência, após meses de sensacionalismo, no último dia 12, entregou à PC-RJ os tais relatórios, vídeos e gravações que afirma provar a série de acusações. O presidente da CPI do futebol no Senado, Jorge Kajuru, já havia sinalizado que acionaria a Polícia Federal e obteve apoio dos bolsonaristas Eduardo Girão e de Carlos Portinho. É aí que a complexidade do futebol brasileiro desarma um observador externo menos atento: Girão já presidiu o Fortaleza e Portinho foi vice-presidente do Flamengo. Apesar de estarem ideologicamente próximos a Textor, o futebol brasileiro, como instituição política informal, produz seus efeitos políticos e constrange seus atores a prestar contas às suas bases eleitorais. Tanto é que Girão se dedicou a falar sobre a regulamentação das apostas esportivas, em linha com o que já defendia antes; e Portinho, apesar da cordialidade demonstrada em 22 de abril, reforçou as inconsistência da Good Game!.


Na CPI, Textor pediu para falar apenas 15 minutos e parte do tempo foi usada para elogiar o Senado pela Lei da SAF que abriu o "mercado do futebol para investimentos estrangeiros" e apresentou números sobre esse "mercado", enfatizando que o Brasil representa 10% do total de negociações mundiais de jogadores de futebol. Ademais, falou de sua trajetória no setor de tecnologia, custos de novas câmeras que viabilizam VAR 100% automatizado e o interesse de financiar a instalação em vários estádios. Como seria óbvio supor, o empresário focou no potencial econômico do esporte. 


Seja qual for a intenção imediata de Textor, a forma como age não é acidental e não está apartada do modo de agir de Musk. A ideia de que relatórios de uma empresa inexpressiva são suficientes para provar as denúncias poderia ser uma crença anormal na capacidade da Inteligência Artificial explicar o jogo de futebol por padrões? Logo o esporte que mais se caracteriza pelo improviso e pelo acaso. Se for isso, claramente a tecnologia não tem dado conta de ajudá-lo no futebol. Afinal, ele é mais conhecido por problemas em seus clubes na França, na Inglaterra e na Bélgica que pelo sucesso esportivo. Não acreditamos, porém, nessa inocência: no manual Alt-Right o que importa não é a qualidade das provas ou a veracidade das acusações, mas que tais denúncias sejam verossímeis para provocar um efeito na opinião pública e, com isso, influenciar a dinâmica social. Estamos falando de uma estratégia de manipulação da comunicação de massa no mundo virtual.


É possível questionar: qual a lógica de desvalorizar o mercado que atua? Essa questão tem origem na idealização da entrada do capital e da gestão empresarial no futebol, mas isso só seria invariavelmente incoerente se o objetivo dele fosse vender a SAF. Há uma crença generalizada entre torcedores que a entrada de uma empresa ou um empresário significará fatalmente a consolidação do seu clube de coração como grande competidor. Essa crença desconsidera que a finalidade do investimento privado é o lucro e, no futebol, há meios menos arriscados para acumulação que apostar nos títulos. O investidor pode buscar retorno pela exploração da estrutura física, pela revelação e desenvolvimento de talentos. Especialmente as últimas, são formas que dificilmente se compatibilizam de modo duradouro com conquistas de títulos em um meio competitivo como o Brasil.


A opinião pública entende claramente a legitimidade dessa estratégia para o RB Bragantino Futebol Ltda. (uma pessoa jurídica empresarial distinta da SAF), mas finge não perceber que, apesar da tradição, algumas das SAF podem ser projetadas para essas finalidades e não para os incertos resultados esportivos. Podem existir para revelar e vender atletas jovens ou desenvolver jogadores para clubes prioritários dos grupos gestores. As transações de jogadores do Botafogo com outros clubes da Eagle estão aí para quem quiser ver. Textor, que se deslumbrou com a receptividade da torcida e com a possibilidade do título brasileiro em 2023, encontra nos ataques um argumento para se reposicionar coerentemente com as estratégias da Eagle para o futebol. Ao mesmo tempo em que atira contra o arranjo vigente no futebol para justificar os insucessos esportivos e dar legitimidade a propostas de organização do futebol que favoreçam seus objetivos mercantis.

 

 

4. Da cultura popular ao Judiciário: a promoção da desconfiança contra a soberania nacional

É importante ser claro: não estamos afirmando que Musk e Textor sentaram-se em uma mesa com os líderes da extrema-direita mundial para dividir as tarefas no ataque à soberania nacional (Musk) e a elementos da cultura popular brasileira (Textor). Porém, claramente o Brasil está sob ataque em múltiplos campos com a participação de diversos atores (individuais ou coletivos) que compartilham estratégias similares e recorrem a um modo de agir alinhado aos manuais do Alt-Right. Musk e Textor fazem parte disso. Em termos objetivos há um ambiente político, ideológico e institucional que parametriza as escolhas dos agentes do capitalismo norte-americano. Para estes o Brasil, como outros da América Latina, somos um país subordinado com fraquíssima vontade político-institucional de resguardar nacos de soberania nacional. Ao mesmo tempo encontram no plano doméstico setores sociais dispostos a fazer o serviço sujo dos interesses estrangeiros. Esse é o contexto mais geral que podemos concluir que claramente o Brasil está sob ataque. O professor Manuel Domingos Neto, em seu texto para o DCM, apontou um elemento fundamental:

 

Os que disputam a hegemonia do mundo criam expedientes capazes de atuar a seu favor [...] Não cabe imaginar que um potente indutor de comportamentos coletivos cresça e atue à revelia de detentores dos grandes cordões da política internacional. Musk não é um gênio sul-africano que se fez sozinho. Não iria longe sem parcerias com os gestores da estratégia de dominação estadunidense. Antes de tudo, Musk é um agente do Pentágono. Nenhuma potência com aspirações de autonomia permitiria que um indivíduo ou uma instituição detenha influência possível de contraditar seus desígnios [...] Não é apenas a democracia que está em risco, mas a autonomia nacional [...] Musk não é um mero empresário. É um agente a serviço de Washington. Seus apoiadores não sabem o que seja defesa da pátria (grifos nossos).[xxiv]

 

O mesmo se aplica a Textor (“Não cabe imaginar que um potente indutor de comportamentos coletivos cresça e atue à revelia de detentores dos grandes cordões da política internacional”). Sem fazer qualquer ilação, é possível verificar, como dissemos antes, relações com lideranças políticas do Partido Republicano, alinhadas ao Alt-Right, tanto por parte do magnata sul-africano quanto do CEO do Botafogo. Desse modo, é possível que o objetivo maior seja potencializar suas atividades econômicas, mas ambos perceberam que o ataque à soberania nacional (Musk) e a implosão do arranjo institucional nacional vigente e a desconfiança a um elemento da cultura popular (Textor) facilita a realização desses interesses, sobretudo pela obtenção de apoio na opinião pública. Musk, como “guardião da liberdade”, e Textor, como “defensor da moralização da maior paixão nacional”, recorrem à desinformação (mistura acusações diferentes em um mesmo discurso) e contam com o viés de confirmação de pessoas que acreditam que: (1) o politicamente correto e os limites da liberdade de expressão favorecem a destruição dos seus valores comunitários em favor de uma agenda globalista/multicultural deletérios ao senso de pertencimento; (2) que seus clubes e, portanto, eles mesmo estejam sendo deixado para trás em função de uma conspiração (privação relativa). Enquanto Musk passou a ser visto como mártir que protegeria um instrumento e um meio para a luta política; Textor defenderia que certas identidades não fossem preteridas - uma vez que a identidade clubística compõe a identidade de parte da população brasileira e auxilia na construção de laços comunitários.


Os interesses econômicos de Elon Musk são motivos suficientes para tentar influenciar politicamente o Brasil. Musk tem o exemplo de Minas Gerais: havia um projeto encabeçado pela Codemge (Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais) e a Companhia Brasileira de Lítio junto com a britânica Oxys e a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração para explorar o lítio no estado e produzir as baterias no Brasil. A Oxys faliu em 2021 e, desde então, Zema, que se alinha em diversas pautas à extrema-direita, defendeu a retirada do estado do negócio. Isso inviabilizou a participação da Companhia Brasileira de Lítio, cujo estado de Minas Gerais possui 33% das ações, e da Codemge. Concomitante com o veto do governador à participação estatal, empresas estrangeiras passaram a explorar o lítio em Minas: além da Sigma e da AMG que já extraem o minério, Latin Resources, Atlas e Lithium Ionic negociam áreas. Nesse caso, a estratégia de fragilização nacional articulada com políticos locais conta com um histórico recente de êxito e favorece os interesses de Musk na compra da Sigma e na aproximação com o Norges Bank (acionista da Sigma e da AMG).


E quanto a John Textor? Em termos mais amplos, como disse o professor Manuel Domingos Neto, “Nenhuma potência com aspirações de autonomia permitiria que um indivíduo ou uma instituição detenha influência possível de contraditar seus desígnios”. Para essa avaliação, veremos o grau de apoio que receberá para continuar seus ataques e/ou o modo que eles eventualmente serão dirimidos. De todo modo, a duração dessas ações até o momento demonstra não haver contradições com projetos político-econômicos mais amplos das instituições estadunidenses e sua exposição e maior frequência no Brasil (em comparação aos países dos outros clubes da Eagle) chama atenção para a existência de algo mais: a pauta anticorrupção e a publicidade ampliada com a nova CPI convergem com a nova arma geopolítica dos EUA e pode abrir caminho para órgãos de Estado norte-americanos acessem informações relevantes sobre aspectos jurídicos e o arranjo político-institucional do futebol brasileiro. Isso é reforçado pela qualificação como "problema global". Está claro que, caso Textor seja apenas um carona, isso não se deu ao acaso. Como vimos, sua discrição não esconde seus vínculos com a ala mais à direita do Partido Republicano.


Portanto, Musk e Textor usam estratégias com clara procedência política, mas se diferem pela pauta que mobilizam e o meio que atuam. A chance de êxito de Textor tende a ser menor porque a pauta da corrupção o coloca em rota de colisão com outros clubes e torcidas denunciados como corrompidos e beneficiários, fazendo com que o elemento ideológico seja minimizado pela identidade clubística confrontada. Além disso, o meio em que atua conta com entidades que compõem um arranjo institucionalizado formal e informalmente. A memória do FifaGate, por um lado, expõe a CBF pelos presidentes envolvidos em corrupção; por outro, ao afetar clubes, amplia o nível de reação organizada. Já Musk, além de ser mais conhecido, é dono de uma rede social que amplifica seu alcance, atua em uma área ainda em disputa (regulamentação da internet e das redes sociais) e recorre a uma pauta que supostamente o coloca em defesa de todos os cidadãos contra o arbítrio do Estado, sem se opor a entidades e instituições intermediárias que possam mobilizar reações populares mais orgânicas contra o ideal que dissimula seus interesses político-econômicos.

 

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* Jefferson Nascimento é Doutor em Ciência Política, professor do Instituto Federal de São Paulo, membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA) e autor do livro "Ellen Wood: o resgate da classe e a luta pela democracia” (Appris).

 

** Renato Nucci Jr. é ativista da Organização Comunista Arma da Crítica (OCAC).

 



[i] A empresa tem sede em Londres na 57-59 Beak Street, S/N. Porém, é o nome de John Charles Textor que aparece como investidor no Estatuto Social da SAF do Botafogo, detentor de 90% das ações da SAF.

[xx] Essa prerrogativa foi consolidada a partir do USA Patriot Act (Public Law 107-56), que teria o objetivo de combater o terrorismo internacional. A sec.1004 altera o Foro em casos de corrupção e lavagem de dinheiro, permitindo que o sistema de justiça dos EUA processe empresas e cidadãos de quaisquer países, se o ato tiver em algum etapa passado pelo sistema financeiro do país, por provedores, afetar a economia ou alguma atividade relacionada à corrupção tenha sido realizada no território dos EUA (Cf.: https://www.congress.gov/107/plaws/publ56/PLAW-107publ56.htm).