O pesadelo americano
Por Paulo Sérgio
Ribeiro
A gestão de Donald Trump revela
iniquidades próprias àquilo que, durante sua corrida presidencial à Casa
Branca, confirmou-se como a reedição do velho slogan “America first”. Não é demais lembrar que Trump sofre aguda rejeição
de segmentos influentes na opinião pública dos EUA e de que sua liderança no
Partido Republicano já foi posta em questão pelo incômodo provocado por sua,
digamos, completa falta de solenidade no exercício do poder. Tais ponderações,
se corretas, afasta-nos de qualquer viés antiamericano, pois não se trata aqui de
desperdiçar o tempo do leitor com estereótipos sobre a sociedade estadunidense.
Esta é demasiado complexa para nos deixarmos levar por um visão unilateral de
suas contradições, sobretudo quando elas evidenciam desafios comuns na
modernidade tardia.
De todos os atos da gestão Trump,
um em particular causou perplexidade capaz de pôr em suspenso quaisquer relativizações:
a separação forçada de pais e filhos. Tal expediente vinha sendo aplicado na
fronteira entre EUA e México de acordo com a política de “tolerância zero” de
Trump para famílias em situação ilegal de imigração. Todavia, a repercussão
negativa no exterior e, não menos, no establishment
estadunidense, forçaram o anúncio da revisão do procedimento: as separações
familiares serão interrompidas e conceder-se-á atendimento preferencial a pais acompanhados
dos seus filhos no trâmite da imigração. De todo modo, a imagem de crianças chorando
dentro de verdadeiras gaiolas humanas impõe indagar àqueles que postulam uma
esfera pública “global” que medeie a relação entre os Estados se há mesmo alguma eficácia social na ideia de “humanidade”.
Não cabe subestimar a necessidade
de controle do tráfego de pessoas em regiões de fronteiras, mas de avaliar em
que medida a política de “tolerância zero” de Trump destinada a imigrantes
ilegais tem sua pretensão de legitimidade vinculada a uma cultura normativa dos
EUA. Para tal digressão, acolho doravante a abordagem de Jessé Souza sobre a
modernidade à americana [1].
A ausência de um centro de poder político a reger os primeiros passos da
colonização britânica (como nas possessões ibéricas no hemisfério sul) e,
sobretudo, o predomínio dentre os seus pioneiros de uma ideia de igualdade
religiosamente motivada propiciaram a excepcionalidade da formação social
americana. Cotejando fontes clássicas (notadamente Tocqueville) e
contemporâneas (o trabalho coletivo coordenado por Robert Bellah acerca da
religião civil no contexto estadunidense), Jessé pontua que o “mito original
americano” radica em um imaginário bíblico de sabor calvinista que possibilitou
uma forte reflexividade institucional àquele experimento colonial.
A “Nova Inglaterra” não seria uma
réplica das tradições do Velho Mundo, senão uma tentativa deliberada de povoar terras
desconhecidas segundo um “contrato externo com Deus” cuja adesão pressupunha uma
responsabilização individual advinda da conversão íntima às suas “cláusulas”,
combinando, assim, uma vida civil cujas interdições morais não suprimiam a
lógica específica da produção de conhecimento orientada por interesses privados
e liberdades públicas não desvinculadas da religião como um pano de fundo do
contrato social. Sendo assim, a autoconcepção dos estadunidenses estaria
comprometida com a atualização de um imaginário em torno do “tema edênico” como
racionalização exitosa de uma experiência social dotada de elementos originais
em face da tradição civilizatória europeia.
Na apropriação do mito de origem
cristão operada pelos founder fathers
acabou prevalecendo a imagem do Novo Mundo como uma terra inóspita e hostil ou,
simplesmente, uma “selva”. Domá-la exigiria não apenas uma eficiente adequação
ao meio físico, mas, sobretudo, moldar eticamente um mundo onde tudo estava por
fazer a partir de um redirecionamento da mensagem religiosa para a ação
individual de modo a submetê-la ao controle dos desejos e das paixões – a
dimensão intrasubjetiva da “selva”. Tal mensagem religiosa, partilhada por
homens livres que viam a si mesmos como um povo eleito para recriar sua
coexistência, configura, no caso americano, quase que um tipo puro da noção de ascese
intramundana balizada pelo racionalismo protestante.
Essa cultura normativa, lastreada
originariamente na democracia direta em experiências
de associativismo local, enquanto uma “criação consciente e racional dos homens
de acordo com princípios racionais”[2]
é movimentada por códigos morais concorrentes que, na contemporaneidade, tendem
a sobrepor o individualismo utilitário aos estímulos societários típicos da sua
antiga tradição cívica. Esse conflito na cultura estadunidense assume contornos
problemáticos no tocante à manutenção de um contrato social que tem sua
amálgama na noção já mencionada de “povo escolhido”. Ressalta Jessé que o
dinamismo daquela cultura logrado por sua capacidade associativista convive com
a “possibilidade de interpretação exclusivista do contrato, especialmente em
termos de pureza étnica”[3].
Crianças de origem latina apartadas
de maneira infame dos seus pais confirmam em toda a sua crueza o potencial antissocial
da exclusividade que Trump busca imprimir àquele contrato social como fonte de
legitimação de um governo que parece não se inspirar no que há de melhor no “espírito
americano”.
[1] Cf. SOUZA, Jessé. O caso dos Estados Unidos. In:
______. A modernização seletiva. Uma reinterpretação
do dilema brasileiro. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000,
p.127-141.
[2] Op. cit., p.137.
[3] Ibid. p.140.