domingo, 28 de abril de 2019

Por que defender as Humanidades?


Por que defender as Humanidades?

Por Milton Lahuerta*

Historicamente, as chamadas Humanidades preocupam-se com o conhecimento crítico sobre a arte, a filosofia, o indivíduo, a cultura, a economia, o poder, etc. Numa palavra, elas têm por foco o homem em toda a sua complexidade. Neste sentido, em qualquer uma de suas áreas de atuação – o ensino, a pesquisa, a editoração, o jornalismo, o planejamento, a comunicação, o rádio, a televisão, o cinema, a música e o teatro –, as Humanidades lidam com conhecimentos e valores que norteiam a formação das sociedades, interrogando-se, permanentemente, sobre o ser humano singular e o mundo social em constante transformação.

Esses conhecimentos e valores são decisivos para a formação das novas gerações, para sua inserção na vida social e para o modo como elas vão lidar com a dimensão pública e com dinâmica democrática.

É claro que a perspectiva de formar as novas gerações para a vida civil não é fácil de ser cumprida numa época permeada pela prioridade da eficácia, na qual o tempo se acelera drasticamente, os papéis sociais tradicionais não conseguem se reproduzir, as certezas são colocadas em xeque e a vida passa a ser pautada pela lógica da descartabilidade. Decorrentes de uma transição para um novo padrão produtivo e tecnológico de escala planetária, essas transformações implicam novos requerimentos educacionais e têm forte impacto não apenas no trabalho, mas em todas as dimensões da vida.

Essa é uma questão decisiva, já que as duas principais finalidades da educação – a transmissão dos conhecimentos e da cultura necessários à integração social, e a formação de seres humanos autônomos – vêm perdendo sentido nas sociedades contemporâneas. Com isso, generaliza-se a perspectiva de que o sucesso profissional depende, exclusivamente, da aquisição de “conhecimentos úteis”, que, por sua aplicação, trazem benefícios materiais imediatos a seus portadores.

Com a naturalização desse modo de pensar, perde-se de vista um pressuposto fundamental: que a escola, e principalmente a Universidade, não devem apenas instruir e adestrar para o mercado, mas educar para a vida, formando seres humanos capazes de pensar com espírito crítico e autonomia moral.

É justamente aí que se encontra a importância das Humanidades como uma espécie de memória do que é (e foi) o homem, do que disse e pensou sobre si mesmo, resgatando e conhecendo os erros e malogros de nossas sociedades, constituindo-se numa base imprescindível para ensinar a viver no futuro.

Cada vez mais, a própria complexidade das sociedades atuais está a exigir profissionais capazes de pensar com autonomia, de apresentar explicações abrangentes sobre os processos em curso e de oferecer alternativas aos problemas individuais e sociais. Os egressos dos cursos de Humanidades – por estarem habituados à incerteza e ao questionamento permanente de seus próprios pressupostos – acabam por ter uma vantagem comparativa perante profissionais de áreas técnicas e especializadas: mais do que apenas preparar para o mercado, as humanidades formam para a vida. O que, numa era de grandes transformações, não é pouco!

* Sociólogo; Doutor em Ciência Política; Coordenador do Laboratório de Política e Governo da UNESP/Araraquara.

sábado, 13 de abril de 2019

Witzel e os cem dias


Witzel e os cem dias

Por George Gomes Coutinho

No último post me arrisquei a discutir alguns aspectos dos cem dias do governo Bolsonaro. Tarefa esta nada simples até mesmo pela particularidade do momento histórico e dos governos que se constituem após as eleições de 2018: há algo de ruptura, elementos de continuidade e muitos exotismos produzidos em proporções industriais em pouquíssimo tempo. Neste texto me dedicarei a um esboço sobre o governo Witzel em sua experiência no Palácio Guanabara.

Sobre Wilson Witzel, há menor isolamento se compararmos com Bolsonaro. Ambos não são a mesma coisa, embora o atual governador do Rio tenha utilizado técnicas, discursos, intervenções e afins que em nada diferem das do presidente em campanha. Mas, paramos por aí.

 Witzel demonstra maior esforço em dialogar com setores que vão muito além até mesmo dos grupos que o elegeram. Neste tocante há maior elasticidade, plasticidade de sua atuação enquanto governador eleito. Para Witzel o discurso mais propenso a criar cisões se encontra no campo da segurança pública, seu standard radicalizado e base estruturante de seu discurso que promoveu a acachapante vitória nas últimas eleições. Contudo, ainda assim o governador tem tentado diminuir a resistência dos diferentes setores quanto a ele mesmo, algo que considero fundamental pelas condições de caos estrutural do estado do Rio de Janeiro.

A própria distribuição das posições na ALERJ atesta essa disposição.

O grande problema é a complexidade, a densidade inconteste da situação do Rio de Janeiro. Paciente terminal de problemas históricos e crônicos jamais solucionados, estranha ex-capital do país que ainda mantém parte não desprezível da própria burocracia federal,  híbrido de aparato estatal, paramilitares (as milícias), narcotráfico e massa falimentar, não há solução simples para o estado e o desalento não é raro. Um tour de force se coloca enquanto tarefa histórica em um cenário em que a inércia, apatia e ações meramente pirotécnicas, seja por mais um dia, semana ou mês, colocam o Rio de Janeiro, capital e estado, mais próximos de algo insolúvel para a imaginação política ou para a criatividade institucional.

Não por acaso Christian Lynch, colega da área de ciência política, anda propondo que o Rio de Janeiro, a cidade, torne-se um segundo Distrito Federal. Parece exótico. Mas, só parece dadas as dificuldades postas.

Diante do quadro causa espécie a sensação de que o governador esteja “queimando a largada” em desde já colocar suas ambições para a presidência brasileira. A sinceridade é sempre louvável. Contudo, mirando o tamanho do desafio que ele precisa enfrentar, talvez a ambição esteja sendo declarada em momento desmesuradamente precoce.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Impressões acerca dos primeiros 100 dias do Governo Bolsonaro: crônica de uma tragédia anunciada?


Impressões acerca dos primeiros 100 dias do Governo Bolsonaro: crônica de uma tragédia anunciada?*

*Por George Gomes Coutinho

Analisar os primeiros cem dias de um governo, seja qual governo for, é sempre um empreendimento de risco. Primeiramente cabe notarmos que sob condições normais de temperatura e pressão ainda há longo período a ser vivido pelo mandatário da ocasião. E a política é especialmente afeita a sofrer os impactos diretos dos caprichos das contingências onde todas as externalidades ao sistema político se impõem por vezes com contornos dramáticos. Sim, governos podem mudar de direção em qualquer tempo até mesmo por razões alheias à sua vontade. O que a literatura chama de policy switch é recorrente ao sul e ao norte do globo. Porém, estranhamente nos últimos tempos a opinião pública nativa tentou criminalizar este expediente classificando-o de “estelionato eleitoral”. Criminalizar o policy switch é somente outra maneira de termos instituições em frangalhos de forma perene e nada mais.

Retomando o mote dessa reflexão, é importante ressaltar que avaliar cem dias não é jamais avaliar o mandato como um todo evidentemente.

Todavia, os primeiros cem dias podem dar pistas sobre qual a fisionomia mais persistente terá aquele determinado governo, sofrendo variações para mais ou para menos em determinadas ocasiões. Em suma, o desafio de quem quer que se arrisque neste empreendimento é o de identificar o “núcleo duro” daquele executivo e se há algo assim. Em outros termos, nos primeiros cem dias cabe ao analista tentar encontrar o DNA do governo, suas características invariáveis e persistentes que podem interessar nos próximos anos.

Prosseguindo, arrisco dizer que no caso Bolsonaro há núcleos duros discerníveis.

O governo entrou em campo, algo claro desde a campanha, com um discurso que está declaradamente no lado direito do espectro político, indo do centro atingindo até o extremo. Neste sentido, a composição orgânica do governo é bastante diversificada sendo composta por militares afinados com a defesa do legado da ditadura civil-militar de 1964, parte do flanco mais conservador do judiciário, o grupo ultra conservador dos costumes que reúne seguidores do escritor  Olavo de Carvalho e fundamentalistas cristãos e, por fim, ultra liberais. Não obstante as diferenças que saltam aos olhos são grupos que não são dos mais afeitos a defender um Estado Democrático de Direito robusto e mesmo a democracia para estes pode ser prescindível dependendo do momento histórico.

Por enquanto, dado o panorama, há o desafio concreto de termos um governo que é um mosaico onde há antagonismos internos insolúveis em termos valorativos não obstante suas poucas afinidades naturais.  Para citar apenas um exemplo de narrativas pouco afeitas a se encontrarem com harmonia: os discursos de Ernesto Araújo e Paulo Guedes, suas visões de mundo, não são apenas conflitantes. São antagônicas. O único ponto inegável de afinidade é o flerte e a condescendência de ambos com soluções autoritárias de direita, algo compartilhado em praticamente todos os grupos partícipes do governo nesse momento.

Lembro que o discurso do presidente eleito, suas intenções, não foram ainda muito além de palavras de ordem até o presente momento e Bolsonaro nos forneceu pouquíssimos elementos para o avaliarmos em situações de confrontação discursiva pública, algo que só está se modificando lentamente de poucas semanas para cá. Tal como na campanha, os poucos caracteres da rede social Tweeter ainda expressam a maneira preferencial utilizada por Bolsonaro para se posicionar e até mesmo antecipar decisões. Não há grandes explanações, algo que o discurso curtíssimo de Davos demonstrou no início do ano. O repertório é curto. E ainda não há o arrefecimento de posições polêmicas. Há a chocante persistência das mesmas. Talvez o próprio Bolsonaro tenha se tornado refém destes posicionamentos visto que nem o seu eleitorado mais fiel parece censurar estes posicionamentos.

Voltando aos elementos programáticos cabe lembrar que estamos falando de um presidente que não compareceu aos debates televisivos e o seu programa de governo é impreciso, contém no máximo intenções, por vezes “chutes” quando se arrisca a entrar em dados e nos deixa a dúvida angustiante sobre o fundamental em termos de política prática: o como, como fará?

Inclusive uma questão importante sobre o “como” é a maneira pela qual o governo tem lidado com o congresso. Em um primeiro momento havia a aposta no logrolling entre bancadas temáticas: ou seja, eu voto na sua proposta X hoje e o outro grupo vota em minha proposta Y amanhã. Cabe notar que nada há de ilícito nessa prática e ela é usual em todo e qualquer parlamento do mundo. É uma operação de redução de complexidade no processo legislativo. Contudo a premissa de organização do congresso em bancadas, e elas são consistentes, se mostrou frustrante pela seguinte razão: não conseguiram organizar suficientemente os governistas em sua totalidade. A experiência legislativa brasileira de disciplinar os participantes individuais no legislativo tomando por referência os partidos se mostra mais exitosa e a inovação de trocas de votos basicamente entre bancadas pode até render bons resultados em votações específicas. Mas, para o cotidiano, o dia a dia, o partido enquanto disciplinador ainda é o que produz de fato no legislativo. Se isso é “velha política”, bem, fica o desafio para o freguês buscar maneira mais eficiente de produzir vitórias nos processos de tomada de decisão.

Cabe notar ainda que o próprio chefe do executivo ao manter o discurso beligerante no espaço público também não tem facilitado o seu próprio trabalho de convencimento dos grupos no legislativo e na própria sociedade. O tom radical produz, mesmo em tempos de polarização, isolamento e resistência.

Não obstante os cem dias, ainda assim o governo foi farto no fornecimento de escândalos e situações vexatórias. Porém isto ainda não redundou em consequências decisivas por não existir um único tipo de eleitor de Bolsonaro. Há diferentes grupos e os eventuais e estranhos “defensores da moral e dos bons costumes”  são apenas os mais ruidosos. Na verdade precisaríamos de um survey aqui para detectar, digamos assim, os “50 tons” dentre os 57 milhões de eleitores de Bolsonaro. Mas, por hipótese a partir de discursos que eu já pude presenciar de forma assistemática provavelmente há eleitores do 17 que não estão nem um pouco perplexos com as situações non sense e até esperavam coisas como o caso Queiroz. Esse tipo de eleitor é simplesmente cínico e pragmático: Bolsonaro é tido como o “idiota útil”. Incapaz intelectualmente, trajetória medíocre enquanto parlamentar, simplório e dotado de péssimos modos. Mas, sendo idiota útil, pode fazer o que é correto para o eleitorado pragmático justamente por sua ignorância constitutiva: por saber de sua baixa capacidade, o que é uma virtude, irá confiar a economia ou outras pastas que este eleitorado julgue estratégicas para alguém que compartilhe os valores e metas desse grupo de eleitores, que é o que interessa aos cínicos e pragmáticos. Notório que a educação seja solenemente ignorada por esse grupo até o presente momento. Talvez o discurso sobre educação e sua importância no Brasil seja uma retórica vazia pelo que estamos acompanhando com o MEC no governo Bolsonaro.

Para um dos outros grupos de eleitores do Bolsonaro, esses os crédulos e que aderiram ao discurso de eliminação do inimigo, as denúncias não irão, ao menos no curto prazo, produzir evasão em massa. O discurso de perseguição, de que são “fake news” as acusações que atingem o presidente, seus filhos e quadros que julgam relevantes, já se apresenta enquanto antídoto. É importante destacar que esse eleitorado vê a própria imprensa como inimiga nacional e elimina qualquer factualidade em seu discurso.

De todo modo entre cínicos ou partícipes da extrema direita, a moral pode ser francamente relativizada. E para os que apostam no “inimigo interno” a ser abatido, a hipótese de corrupção ou no mínimo as más companhias do clã Bolsonaro é um preço a pagar, um mal menor, diante da tarefa de higienização da política brasileira.

Para mim os mais chocados, e esses existem, são os ingênuos. Mas, estes se decepcionariam com qualquer um dada sua credulidade.

Por tudo o que disse a última pesquisa do Instituto Datafolha se esta apresenta dados que inspiram preocupação, por outro lado, dadas as motivações e perfis do eleitorado do presidente, podemos dizer que ainda as bases de legitimação do governo não estão corroídas. Para variar setores da esquerda mais uma vez comemoram precocemente.

Em verdade dada nossa condição periférica no capitalismo mundial e nossa dependência tão estratosférica quanto subserviente aos ventos do sistema econômico mundial, a erosão de nossos governos depende muitíssimo do que ocorre fora. Cenários pujantes geram uma movimentada balança comercial que sustenta legitimidades. Cenários mais modestos ou mesmo recessivos tem produzido danos para a legitimidade de qualquer governo entre nós. Creio que parte do futuro do governo Bolsonaro poderá ser explicado a partir do que ocorre além de nossas fronteiras.

Retomando, quanto ao que parte dos brasileiros andam chamando de “bolsonarismo”, creio que não exista algo assim. O sufixo “ismo” normalmente é utilizado para designar algo dotado de um corpus de ideias claro, elementos valorativos discerníveis, enfim, alguma substância. Não me parece adequado utilizar o termo “ismo” em vão no caso em tela. O governo Bolsonaro em seus discursos e narrativas (há uma pluralidade) é um mosaico.

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* Uma primeira versão dessas reflexões surgiu enquanto demanda apresentada pelo jornalista Aluysio Abreu Barbosa, diretor de redação do jornal  A Folha da Manhã, onde os governos Jair Bolsonaro e Wilson Witzel deveriam ser analisados dentro do marco temporal dos 100 dias de existência de cada um. A matéria em si foi publicada no próprio jornal e no blog administrado por Aluysio onde encontramos um amplo leque de opiniões de profissionais da Universidade atuantes em Campos acerca do tema em tela. Para ler o resultado final fica o link para o blog do Aluysio: http://opinioes.folha1.com.br/2019/04/10/academia-da-cidade-que-votou-em-bolsonaro-e-witzel-analisa-seus-100-dias/. Aqui para o Autopoiese decidi dividir em dois: separei o governo Bolsonaro do governo Witzel para fins de exposição. Nos próximos dias irei postar um esboço de minhas impressões do governo do estado do Rio de Janeiro.


terça-feira, 9 de abril de 2019

domingo, 7 de abril de 2019

A UENF continua sendo asfixiada financeiramente no governo Witzel. Até quando resistirá?


Publicado originalmente no Blog do Pedlowski (aqui).

A UENF continua sendo asfixiada financeiramente no governo Witzel. Até quando resistirá?

Por Marcos Antonio Pedlowski *

A visita da Comissão de Ciência e Tecnologia da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) ao campus da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) na última sexta-feira (05/04) serviu para que seu presidente, o deputado estadual Waldeck Carneiro (PT), testemunhasse os efeitos devastadores da contínua falta de verbas de custeio que a instituição continua sofrendo quase 4 meses após o início do governo Witzel. 

É que, apesar da aprovação da chamada PEC 47 em dezembro de 2017, a UENF continua ainda sem receber suas verbas de custeio, o que implica na incapacidade de honrar compromissos com seus fornecedores, a começar pelos serviços essenciais de água, eletricidade, limpeza e segurança. A inexistência de verbas de custeio está inviabilizando o funcionamento de equipamentos de variados usos para as atividades essenciais dentro da UENF e ameaça ainda a paralisação completa das atividades que ocorrem diariamente dentro da instituição, incluindo importantes pesquisas que poderiam e deveriam ser prioridade para o novo governador, mas aparente e estranhamente não o são.

A falta de verbas de custeio causa ainda a repetição de um esquema pernicioso onde os professores e servidores acabam tendo que usar seus próprios salários para impedir que a UENF chegue a um estado de completa insolvência. À guisa de exemplo pessoal, apenas na semana passada, usei recursos pessoais advindos da minha única fonte de renda, que é o meu salário, para consertar dois equipamentos de estabilização de corrente elétrica que haviam queimado. A isso se soma a colocação de uma nova porta da sala em que meu grupo de pesquisas procura continuar exercendo suas atividades. Mas também já compro há vários anos a água consumida e os produtos de limpeza que são usados na sala que ocupo. Em todos esses casos, a decisão era a de deixar ficar quebrado e sujo ou gastar dinheiro próprio para manter as coisas funcionando dentro de um ambiente de trabalho decente.  Acabei optando por usar meu salário para fazer o “show continuar”. Entretanto, fico pensando até quando poderei continuar cometendo este tipo de “luxo”, na medida em que meus salários estão sem correção desde 2014, apesar do Regime de Recuperação Fiscal assinado pelo (des) governador Pezão indicar a possibilidade da reposição das perdas inflacionárias anuais.

Para agravar a situação, a base partidária do governo Witzel está tentando levar à frente uma indecorosa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que, sob a desculpa esfarrapada de apurar desvios ideológicos nas universidades estaduais, busca instaurar um clima de terror persecutório em ambientes onde deveria predominar a autonomia universitária.  Aliás, falando em autonomia, o próprio governador Witzel está dando sua contribuição para interferir na vida das universidades ao enviar, na calada da noite, um projeto de lei que visa interferir na escolha dos reitores das universidades, indo de encontro ao que está estabelecido na Constituição Estadual. Em outras palavras, além da asfixia financeira, as universidades estaduais do Rio de Janeiro estão convivendo com um clima de perseguição política e tentativas de subordinação política por parte do governo do estado.

A situação da UENF é um capítulo à parte para mim, pois vejo todos os dias os esforços que são realizados para gerar conhecimento científico de excelência em seus vários centros de pesquisa. Ao longo de pouco mais de um quarto de século, a UENF já desenvolveu muita coisa interessante, a começar por sementes adaptadas ao clima regional. Além disso, há, entre seus professores e estudantes, pessoal altamente qualificado e que tem contribuído para que a universidade seja reconhecida dentro e fora do Brasil como uma experiência de sucesso na formação de recursos humanos qualificados.

Diz-se que o governador Wilson Witzel já expressou pretensões de ser candidato nas eleições presidenciais de 2022 e que, para isso, irá tentar se diferenciar do presidente Jair Bolsonaro. Pois bem, uma boa área para ele se diferenciar é exatamente a da ciência e tecnologia, onde o governo federal vem cortando verbas a passos largos e ameaçando destruir o antes emergente sistema nacional de ciência e tecnologia. Para tanto, o governador Witzel deveria priorizar as universidades estaduais que, apesar de todo o ataque sofrido durante os anos de Sérgio Cabral e Luís Fernando Pezão, continuam sendo classificadas entre as melhores do Brasil e da América Latina. E, tomando a UENF como exemplo, nem precisa gastar fortunas para que o resultado apareça, apenas que libere o mirrado orçamento aprovado pela ALERJ para o ano de 2019. Aliás, há que se frisar que a UENF não está pedindo muito, apenas que se cumpra pelo menos o orçamento a que tem direito.

A decisão com que o governador Wilson Witzel está defrontado é muito simples: vai investir nas universidades e em nosso sistema estadual de ciência e tecnologia ou vai continuar o ataque impiedoso que foi começado por Sérgio Cabral e Pezão? Da resposta que for dada pelo governador, dependem não apenas as universidades e institutos de pesquisa, mas a possibilidade de um futuro menos sofrível para o povo do Rio de Janeiro. É que a coisa é muito simples: para sair do atoleiro em que nos encontramos, será fundamental superar o atraso tecnológico em que a economia fluminense está imersa. Para superar essa atraso, a receita é simples e direta: investir em desenvolvimento científico.

* Geógrafo; Professor associado ao Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico (LEEA) da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF); Pesquisador/colaborador externo do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais da Universidade de Lisboa.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Lula, o nosso Dreyfus


Lula, o nosso Dreyfus

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Há quase um ano, Lula está preso. Ou, precisamente falando, sequestrado pela Justiça Federal e mantido refém na Polícia Federal com sede em Curitiba/PR. “Não força!”, dirão alguns(as) em nome de suas inclinações contrárias ao Partido dos Trabalhadores (PT) ou, quiçá, movidos por um ódio inoculado da política profissional – notadamente, quando vista à esquerda no espectro político – a ponto de se tornarem presas fáceis do punitivismo na aplicação do Direito.

Um fato: a condenação de Lula ocorrera sem provas e com flagrante cerceamento do direito de defesa. Dizê-lo, a esta altura, é mais que redundante. 

Sabemos que é sempre bom evitar argumentos de autoridade na construção do próprio argumento, mas, no que tange à dimensão técnica da “prisão” de Lula, contento-me em lembrar a exposição que o eminente professor de Direito Penal da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Afrânio Silva Jardim, fez de suas crassas inconsistências tanto em relação ao “triplex do Garujá” (aqui) quanto ao “sítio de Atibaia”(aqui), os causos jurídicos em questão. 

Não seria para menos. 

Considerando seu didatismo para com o público leigo, tomar Afrânio por referência me livra do papel de rábula[1] e, tão logo, permite-me dialogar a partir de um ângulo pouco afeito ao código de análise dos operadores do direito: a resiliência da personagem pública “Lula” na luta simbólica mesmo depois de todo o cerco à atuação da maior liderança nacional que, gostem ou não, temos.

Neste sentido, a alusão ao "caso Dreyfus" na imagem que abre o nosso texto não é aleatória. Quanto à imagem em si, trata-se da carta aberta intitulada "Eu acuso!", escrita por Émile Zola, romancista e ativista político francês, publicada no jornal L'Aurore em 13 de janeiro de 1898.

Nessa carta, destinada ao presidente Félix Faure, Zola denuncia oficiais militares pela acusação inverídica de traição e espionagem dirigida ao capitão Alfred Dreyfus. A Dreyfus, um oficial francês de origem judaica, foi imputada a revelação de segredos estratégicos em carta supostamente remetida a Schwartzkoppen, adido militar alemão.

Dreyfus fora acusado de “alta traição” em outubro de 1894, para ser preso em novembro do mesmo ano e condenado em janeiro de 1895 ao degredo na Ilha do Diabo. Passados dez anos de trabalhos forçados ao lado de criminosos barra pesada na ilha que fazia jus ao nome, desvendou-se a trama urdida contra o capitão francês: o major Walsin-Esterhazy, por ordem do seu superior, Coronel Sandherr, forjou a letra de Dreyfus na correspondência criminosa a qual procedera.

Dreyfus fora inocentado em 1906, tendo sido reintegrado ao Exército francês com a medalha de Legião de Honra.

Qual paralelo é possível entre o caso Dreyfus e o caso Lula?

Feitos os devidos reparos contextuais, em ambos os casos vemos: a) o alcance que um erro judiciário pode ter quando a “razão de Estado” se sobrepõe à segurança jurídica, um princípio basilar do moderno Estado de direito; e b) a perda de equilíbrio da imprensa e do judiciário que faz emergir a figura do “inimigo da nação” – uma espécie de bode expiatório para crises econômicas e tensões sociais que obrigam todos(as) a posicionar-se no entrechoque de forças progressistas e reacionárias. 

Na França da virada do século XIX para XX, temos, de um lado, republicanos liberais e forças de esquerda e, de outro, uma direita reacionária amalgamada com as Forças Armadas e a Igreja que se confrontavam pela definição mesma de qual regime político a França deveria seguir (monarquia ou república?), tendo por pano de fundo o crescente antissemitismo que encontraria na condenação de Dreyfus o seu aval e que explicaria, em certa medida, o “colaboracionismo” durante a ocupação alemã na Segunda Guerra Mundial.

No Brasil dos anos 2010, somos forças progressistas de variado matiz ideológico e programático desafiadas a dialogarem entre si para disputar a hegemonia ante as fissuras do bloco de poder formado com a ascensão da extrema-direita e a integração da caserna militar no primeiro e segundo escalões do Governo Federal. O pano de fundo? A criminalização da política cuja expressão mais bem acabada é o acossamento de Lula a partir da Operação Lava-Jato e, arriscaria dizer, o “colaboracionismo” redivivo nas instituições de ensino que, embebido pelo novo "normal" jurídico que a Lava-Jato instaurou, toma vulto sob o governo de ocupação de Jair Bolsonaro.

De lá para cá: ódio aos judeus na França de Dreyfus; ódio aos pobres no Brasil de Lula; e, sobremaneira, ódio incontido a tudo o que ambos, ao seu modo e circunstância, representam para a afirmação de um destino comum.

Fonte consultada:

“Caso Dreyfus: Eu acuso!”, de Leonardo Isaac Yarochewsky. Acesso: http://www.justificando.com/2017/06/09/caso-dreyfus-eu-acuso/


[1] Uma definição de rábula é oferecida em Jusbrasil. Acesso: https://espaco-vital.jusbrasil.com.br/noticias/2089441/afinal-o-que-e-rabula

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Não basta pedir desculpas aos terreiros: deve-se desarmar o cristianismo por dentro.

Publicado originalmente em Ativismo Protestante (aqui).

Não basta pedir desculpas aos terreiros: deve-se desarmar o cristianismo por dentro.

A violência faz-se sagrado”.
(René Girard)
Ler o que nunca foi escrito”.
(Walter Benjamin)
Por Fabio Py*
É com grande tristeza que se recebe outra notícia sobre mais um templo de candomblé destruído. Foi na segunda-feira, 25 de março, na região de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Segundo os religiosos do próprio terreiro, eles foram expulsos pelos traficantes, que queriam transformar o centro em uma base para comércio de drogas. Nas fotos, percebe-se que a violência foi completa, com a destruição de vasos, de utensílios, de altares. Dois detalhes dessa violência merecem ser (ainda) mais destacados. Primeiro: no muro de fora do terreiro foi escrito: “Jesus é o dono do lugar”. Segundo: no ano passado, o mesmo terreiro foi invadido e impedido, por um tempo, de realizar suas celebrações religiosas. Esses dados são importantes, porque indicam uma violência contínua nas favelas contra os terreiros, e que, de alguma forma, os violentadores se relacionam com o protestantismo-evangélico, embebido com o fundamentalismo. Em um exercício teológico, porém, observa-se que tal fundamentalismo violador não se sustenta no que lhe é mais elementar: a leitura bíblica a partir ‘dos originais’.

A territorialidade evangélica e seu vínculo com o fundamentalismo
Sobre tal violência, gostaria de destacar pontualmente as inscrições no muro do terreiro com a citação em alusão a Jesus, indicando uma territorização cristã do local. Quero deixar claro que não gostaria de discutir se os traficantes são ou não cristãos, evangélicos. Minha preocupação é, antes, perguntar que: cristianismo é esse recebido por eles, que leva adeptos ou simpatizantes a praticarem tamanha brutalidade ao expulsarem e destruírem os templos de pessoas que professam outra religião?
É possível argumentar que a especificidade da violência cristã nas favelas fluminenses tem sua origem no início do século XX, quando grupo de batistas e presbiterianos americanos escreveram um conjunto de panfletos e livros chamados “Os fundamentais da fé cristã”. Em tais documentos, buscavam promulgar os pontos básicos do cristianismo, isto é, seus fundamentos. Aqueles que seguiam os pontos dos panfletos passaram, a partir de 1920, a se autodesignar fundamentalistas, preocupados em desenvolver uma revisão simplificadora do cristianismo. Em suma, os fundamentalistas defendiam que a Bíblia seria um livro “inerrante” (sem erros). Acrescente um importante detalhe: os arautos dos fundamentos bíblicos eram patrocinados, em grande parte, pelo dinheiro do petróleo e da indústria do ferro americana.
O Brasil recebeu uma leva desses fundamentalistas protestantes no fim da década de 1920. Com ímpeto missionário renovado, apresentam novo vocabulário de desprezo às práticas religiosas do país. Embora a primeira leva de missionários fundamentalistas tenha chegado ao Brasil nas primeiras décadas do século XX, o movimento tomou novo fôlego durante a Ditadura Militar. No período, o fundamentalismo missionário se renovou, passando a indicar que o cristão, diferente de Jesus Cristo – que era pobre e galileu –, também tinha direito a ter prosperidade na terra, a benção. Esse novo movimento assumia uma forma de pentecostalismo com novas roupagens, unindo cristianismo e a lógica do mercado neoliberal numa vertente amplamente conhecida como a “teologia da prosperidade”.
É dessa teologia que vem a ideia da territorização cristã, tragicamente exemplificada com a inscrição do nome de Jesus no terreiro de candomblé destruído. Um símbolo da tomada de posse de um espaço sagrado. Essa violência é mais uma luta por higienização, via discurso religioso, operado nas áreas das favelas. Também é o reflexo de circuitos de missionários americanos que reatualizam o imperialismo via apologética cristã.
Não estou afirmando que no Brasil não se produziu uma forma autônoma e independente de cristianismo. Contudo, digo que elas foram impulsionadas pelo ímpeto americano de evangelizar o mundo. Como cristão e teólogo, ao perceber o quão longe pode chegar a violência religiosa praticada por meus pares, não acho que basta pedir desculpas por mais um templo de candomblé destruído. Não acho que baste. Diante de uma violação tão horripilante, a proposta é “operar” a retirada do pavio da dinamite, tal como indica Walter Benjamin: “antes que a centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado” (Walter Benjamin, Rua de mão única, 1995, p.46).

Exercício para cortar a centelha da pólvora: os ‘inícios’ da Bíblia hebraica
No esforço de tentar cortar a centelha da dinamite, é preciso reconhecer que as numerosas modalidades de movimentos fundamentalistas nas diferentes épocas dificultam a possibilidade de um protestantismo-evangélico menos belicoso. O que é muito sério, pois os evangélicos têm por fundamento teológico os relatos da Bíblia. Então, minha proposta de exercício aqui é analisar um dos textos bíblicos mais importantes na tradição judaico-cristã, o famoso texto de Gênesis 1:1, que abre a Bíblia. No texto, a maioria das versões das Bíblias protestantes traduzem os primeiros versos como “No princípio Deus criou o céu e a terra” (Almeida Corrigida e Fiel). Recentemente, a Nova Versão Internacional (NVI) optou por um caminho próximo: “No princípio Deus criou os céus e a terra”. Ambas as traduções foram produzidas sob incentivo das casas religiosas e missionárias evangélicas ligadas a alguma expressão do fundamentalismo. Assim, elas operam a tradução do termo “bereshit” por “no princípio”.
É interessante, porque, se olharmos pelo menos uma tradução (mais) técnica católica (não ligada ao fundamentalismo protestante-evangélico) como a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB), ela nos apresenta a seguinte tradução: “Quando Deus criou o céu e a terra”, percebe-se que a sentença da TEB modifica completamente a frase. De “No princípio Deus criou” para uma indeterminação como “Quando Deus criou o céu e a terra”. Na explicação dos editores da TEB, no rodapé, afirmam ser essa opção mais fidedigna à fórmula “Em um princípio Deus criou o céu e a terra”. Ou seja, considerando que os textos de Gênesis são os mesmos entre evangélicos e católicos, a fórmula “em um princípio” é a que mais se aproxima do original.
Continuando o exercício, e, portanto, fazendo uso das ideias da Reforma Protestante de acesso aos originais e a suas traduções, percebe-se que nas primeiras palavras da Bíblia não se expressa nenhuma univocidade como as traduções financiadas pelo fundamentalismo protestante-evangélico preferem afirmar. Ao contrário, utilizando a tradução mais próxima do original (“Em um princípio”) nota-se se que a criação judaico-cristã é apenas uma diante das demais criações do mundo relatadas nos diferentes credos e povos. Tal tradução relativiza a criação da Bíblia hebraica. Portanto, como teólogo protestante-evangélico, o simples dado de rediscutir os “originais” (jargão tão caro à Reforma Protestante) pode ajudar a diluir as ideais do imperialismo disfarçadas nas casas missionárias. Auxiliando, quem sabe, a desarmar a centelha que cisma em correr e estourar diariamente a dinamite do racismo e da intolerância religiosa.

Finalmente…
É importante afirmar que tal exercício (e outros mais) pode ajudar na construção de uma agenda de diálogo entre as religiões, na luta por desarmar o cristianismo brasileiro, cada dia mais bélico, mais racista com as tradições religiosas vindas da África. Digo isso, enquanto teólogo, porque acho muito pouco pedir desculpas aos povos de terreiro pelos ataques feitos em nome de Jesus. Antes, nós cristãos devemos construir uma agenda de revisão dos primórdios para, aos poucos, desarmar nosso cristianismo belicoso por dentro, diluindo suas bases duras, apologéticas, cercadas, imperialistas. Por isso, reafirmo: não basta pedir desculpas. Deve-se construir uma série de exercícios teológicos com traduções e as tradições da história da igreja, que poderiam ajudar no desarme do cristianismo brasileiro tão acostumado à depredação dos demais. Assim, por conta da nova destruição do templo de candomblé feita sobre o nome de Jesus, assumo que o protestantismo-evangélico brasileiro merece ser revisto não só ‘por fora’, mas, principalmente, ‘por dentro’ mediante uma severa revisão de desarme de suas lideranças e das doses imperialistas que impregnam ativamente seus templos.

Fontes consultadas:
* Teólogo; Professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais (UENF).

terça-feira, 2 de abril de 2019

Agende-se: Ato "Censura nunca mais", quinta-feira (04/04), às 9h, Regional NF-1 (SEEDUC)


CENSURA NUNCA MAIS

Por Pedro Otávio Cavalcante*

Professor do Liceu está sendo perseguido pela direita por ter utilizado uma CHARGE em um exercício de REDAÇÃO. Sim, o professor foi acusado de "doutrinação" por ter feito uma atividade na aula de Português que desenvolve a interpretação de texto e a reflexão crítica dos alunos.

Como se não fosse absurda o suficiente a perseguição, a SEEDUC compra o que a direita fala e abre sindicância contra o professor! Vamos lá, todo professor tem liberdade de cátedra justamente por ter estudado para ser professor e saber como e o que deve se ensinar. 

Sindicância se abre quando o professor comete alguma falta, como não ir às aulas, agredir os alunos ou fugir do exercício de sua função. Ora bolas, utilizar uma charge numa aula de Português é alguma dessas situações? Qual o motivo de abrirem uma sindicância então? Qual o indício de atitude irregular do professor? Será que estão assumindo que a Lei da Mordaça já foi aprovada?

Mas eles estão tendo reposta, e o professor Marcos não está sozinho! 

Vamos na quinta-feira nos unir contra esse absurdo! Às 9h, em frente a Regional NF-1 da SEEDUC (Rua Dr. Lacerda Sobrinho, 169, Centro)!

Pela liberdade de ensinar! Contra a censura!

* Professor de História e chargista.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Feminicídio e luta pela vida das mulheres no Brasil pós-eleições



Feminicídio e luta pela vida das mulheres no Brasil pós-eleições

Por Luciane Soares da Silva*

A história sobre a criação de uma menina, no interior ou nas capitais, rica ou pobre, branca ou mestiça, não é desconhecida. Creio que todas encontram muito cedo as revistas de moda e comportamento e as histórias infantis sobre sapatinhos, abóboras e finais felizes. A luta pela vida das mulheres nas últimas décadas põe em cheque algumas destas estórias e as formas tradicionais de relacionamentos (principalmente o casamento, mas também as demais relações domésticas e profissionais). A ênfase nas relações mais íntimas é fundamental, uma vez que os indicadores de violência e morte de mulheres apontam namorados, cônjuges ou ex-maridos como os principais envolvidos no assassinato de suas companheiras (ou ex-companheiras). A motivação em mais de 50% dos casos (ao menos, aquela noticiada pelos jornais) é ciúmes. A segunda motivação, mais recente, e que envolve exatamente o avanço das pautas feministas, é o fim de uma relação abusiva. Ou seja, a não aceitação de término de um relacionamento. Lá pelos idos de 2000, era comum ouvir de policiais a atribuição à mulher pela responsabilidade quanto a violência sofrida. Nas palavras de meu alunos, “elas faziam o registro, mas depois voltavam para o marido”. Na pauta moral latino-americana, a responsabilização das mulheres aparece como uma explicação naturalizada: roupas curtas justificam assédio, insinuações justificam estupros e “comportamento duvidoso” justifica assassinato.

O caso de Ângela Diniz e Doca Street seguiu exatamente estas teses ao acusar a vítima de uma vida “imoral”, o que justificaria para a justiça a passionalidade de seu parceiro ao desferir contra ela 4 tiros, três no rosto e um na nuca. Este caso é paradigmático da luta pelos direitos das mulheres, pois foi a partir da condenação em um segundo julgamento, por pressão dos movimentos sociais e de uma mudança de perspectiva, que Doca foi condenado a 12 anos de prisão. E a partir daí, a bandeira “Quem ama não mata” se impõe sempre que existe a tentativa de justificar um crime de ódio como um crime por amor. Nos meses recentes de 2019, já atingimos um número alarmante de casos envolvendo a morte ou violência contra mulher. E foram usadas facas, chaves de fenda, mãos, plásticos, todo tipo de material. A poucos dias, uma mulher foi jogada de um viaduto em Porto Alegre por seu companheiro, inconformado com o fim do relacionamento. O mesmo ocorreu em Curitiba, quando ao colocar fim em um casamento de 40 anos, uma aposentada foi morta pelo marido. A intensidade da crueldade e a repetição dos casos nos colocam em alerta para algumas questões: a primeira delas é que não se trata de classificá-los como monstros ou desviantes. O fenômeno é social e não cabe a produção de discursos que individualizem os casos, como alguns ramos da psicologia insistem em fazer ao patologizarem estes comportamentos. Em segundo lugar, creio que temos de avançar na discussão do emprego do termo “ciúmes” em manchetes. São a outra versão do “matou por amor”.

“Ciúmes” é um termo muito brando e convencional para o fato de que alguns homens associam uma relação com a posse da outra pessoa. Com o agravante (para o homem) de que boa parte destas mulheres têm carreiras bem sucedidas, alto grau de educação e autonomia. Creio que esta foi a mudança fundamental para a escalada de feminicídios que temos acompanhado nos últimos meses. E, por último, importa lembrar que existem poucas redes de apoio institucional e certa dificuldade em encontrar apoio próximo. Ao menor sinal de violência, não há como não interferir, seja de forma velada ou aberta. Nenhum ato de feminicídio ocorre sem um histórico de agressões anteriores. Nós vemos isto, sabemos disto, mas há os que dizem: “A vida é dela”. Ou que se trancam em seu apartamento para abafar os gritos de uma mulher pedindo socorro na madrugada. Como ocorreu recentemente no Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca. Como uma mulher grita por socorro, é espancada por 4 horas e ninguém interfere? Este é o legado de uma certa forma burguesa de pensar a família, de construir o lugar da masculinidade que agora, ferida de morte, encontra na eliminação do outro, sua única forma de expressão possível.

Março foi um mês importante, pois fomos às ruas dizer não à toda forma de violência e assédio contra as mulheres. É lamentável que homens eleitos para cargos de representação política crucial na luta contra o feminicídio sejam veículos de disseminação do ódio contra as mulheres. É lamentável que o presidente do Brasil demonstre por elas desprezo com termos como “fraquejada” e “não te estupro porque você não merece”. Não tenho dúvidas de que a pauta moral só intensifica a brutalidade diária. E declarar que a liberação das armas seria uma forma de defesa das mulheres, alegando que “ao invés de feminicídio vai ter homicídio” é das proposições mais absurdas que já ouvi.

* Socióloga. Professora Associada à Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Chefe do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (LESCE/CCH/UENF) e Presidenta da Associação de Docentes da UENF (ADUENF).