segunda-feira, 30 de março de 2020

Covid-19 e conjuntura: Risco, catástrofe, percepção e tomadas de decisão – parte I


Covid-19 e conjuntura: Risco, catástrofe, percepção e tomadas de decisão – parte I


George Gomes Coutinho

O sociólogo alemão Ulrich Beck (1944-2015) dedicou parte de sua vida construindo, tal como um Gaudi, sua própria catedral[1] teórica. Sob o que chamaremos de “sociologia do risco” está o ambicioso projeto, em idas, vindas e reconsiderações, que objetivou diagnosticar sociologicamente elementos constitutivos de nossa sociedade contemporânea, detectar o que a caracteriza e por qual razão a mesma guarda traços de radicalização dos princípios norteadores valorativos e institucionais da modernidade clássica[2].


Resumidamente Beck, assim como outros sociólogos que produzem da década de 1970 para cá[3], em sua sociologia de fôlego macroscópico observa os traços de continuidade com esta maneira de viver que se constrói em maior velocidade a partir do século XVI. Mas, detecta e reforça também as descontinuidades, o que inclui, dentre outras tantas variáveis[4], destacar o caráter de maior porosidade das fronteiras dos Estados Nacionais, justamente esta construção macro-institucional tipicamente moderna. Embora sem dúvida o que chamamos de “globalização” encontre seus primeiros movimentos no ocidente desde as Grandes Navegações[5], fenômenos como o terrorismo, a crise climática, a volatização do capital financeiro, dentre outros, tornam as delimitações nacionais dotadas de dramática fragilidade nas últimas décadas. Somente por esta parte da análise podemos ver o quanto há de demagógico, má fé ou auto-ilusão nos nacionalismos que abundam pelo mundo na década de 2010.


Dando prosseguimento, neste momento já podemos entrar no conceito de risco[6]. A própria institucionalização e especialização da ciência, um dos marcos interpretativos modernos, redunda nas ciências do risco, o que inclui a epidemiologia tão massivamente discutida na imprensa em nossos dias de quarentena. O risco envolve compreender os perigos latentes e inerentes ao desenvolvimento de nossas sociedades industriais e globalizadas. Seja o risco climático, o que envolve o monitoramento tanto da camada de ozônio quanto do derretimento das geleiras polares, ou o acompanhamento minuto a minuto da dinâmica do mercado financeiro. Contudo, risco envolve um diálogo com o futuro, com o porvir. Riscos são mensurados, dentre outros recursos, a partir de modelagens estatísticas, exatamente tal como tem sido divulgado amplamente na conjuntura do Covid-19 a famosa curva epidemiológica e o jargão, que se tornou popular, de “achatamento da curva”.


E, claro, muitos dos riscos ignoram solenemente as fronteiras dos Estados Nacionais. Era assim antes e assim é neste momento.


O monitoramento dos riscos objetiva evitar catástrofes de diferentes ordens. Por catástrofe Beck (2015) define a presentificação do risco. Em outros termos, os esforços de alta monta empreendidos pelas ciências de risco na elaboração de predições e alertas em prol de evitar tragédias, o que inclui em última instância frear a extinção da espécie humana dependendo da extensão do problema que estamos falando, visa, paradoxalmente, descumprir seus próprios cenários futuros. Digamos que o risco é calculado para que não se decante no real no formato de catástrofe. Deste paradoxo Beck já alertava para uma tensão entre leigos e especialistas. Pelo caráter abstrato das predições, que ambicionam justamente evitar que as mesmas se concretizem no formato de catástrofes, por vezes os riscos encontram questionamentos diversos, incredulidade, etc.. Há uma tensão entre saber especializado e as visões-de-mundo de leigos.


Em outros termos, o risco nem sempre obtém reconhecimento. Ou, se assim quisermos, os riscos nem sempre obtém dignidade aos olhos de seus intérpretes.


A partir desta tensão compreendemos, por exemplo, o caso de igrejas como a Schincheonji na Coreia do Sul que atuaram como as principais disseminadoras do Covid-19 naquele país. Igualmente podemos situar nesta tensão entre leigos e especialistas a resistência de diversos grupos sociais, e aqui estou supondo a não adesão aos princípios e valores vigentes na comunidade científica dentre estes grupos, em acatar as predições de risco que já circulavam pelo mundo a partir da detecção da epidemia na província de Wuhan na China.


Continua...



[1] Antoni Gaudi (1852-1926) iniciou em Barcelona a construção da Basílica da Sagrada Família no ano de 1882. A previsão do término da obra virá, segundo estimativas, no ano de 2026. Mais informações a respeito em: https://en.wikipedia.org/wiki/Sagrada_Fam%C3%ADlia, acesso em 30/03/2020.


[2] É importante notar esta é uma tomada de posição ante diagnósticos que indicavam o fim da modernidade desde a década de 1960.


[3] Incluindo nomes de alguma maneira próximos do próprio Beck como Anthony Giddens e Scott Lash.


[4] Beck analisa mudanças no campo da subjetividade, da recepção da ciência, da reprodução do capital, etc..


[5] Vide Harvey em sua “Condição Pós Moderna” lançada no Brasil pela Loyola em 1992.


[6] Para o debate conceitual que farei me apoio em “Sociedade de risco mundial -  em busca da segurança perdida”, lançado por Beck originalmente no mercado editorial alemão no ano de 2007 e em 2015 em Portugal pela Edições 70.



quarta-feira, 18 de março de 2020

Democracia como fraude e possibilidade


Democracia como fraude e possibilidade

Paulo Sérgio Ribeiro

Passado o 15 de março, data para a qual fora anunciado um ato de “protesto” contra instituições basilares do nosso ordenamento jurídico-político – Supremo Tribunal Federal, Câmara dos Deputados e Senado Federal – por grupos de extrema-direita que compõem o núcleo duro do bolsonarismo, chama-me atenção certa ironia do posicionamento do Presidente da República. De início, Bolsonaro negou ter convocado aquela provocação facistóide para, em seguida, nela confraternizar com sua claque à revelia das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do próprio Ministério da Saúde diante do estado de emergência ocasionado pela epidemia do Covid-19, vulgo Coronavírus.

Que a manifestação de irracionalidade da persona Bolsonaro seja atributo de um padrão de comportamento com o qual seus “seguidores” estabeleçam uma relação de simbiose, isto já é mais do que sabido. Mas há algo no enredo dessa ópera bufa que não deveria passar despercebido: ao acusar as eleições presidenciais de 2018 de fraudulentas como mote para a afronta do dia 15, Bolsonaro atira no que vê e acerta no que lhe é impossível enxergar e, não menos, no que a autocracia burguesa que o tomou como a bola da vez de sua agenda seria capaz de admitir.

Caso levemos a sério a etimologia de “democracia”, havemos de concordar que os regimes democráticos ao leste e ao oeste de Berlim são experiências um tanto adulteradas do modus vivendi contido naquela expressão. Donde vem a coisa que atende por tal nome e por que haveria um hiato entre o seu contexto de origem e o mundo contemporâneo?

Da Antiguidade à era moderna, por democracia não se concebia de maneira estanque um regime político caracterizado pela escolha periódica de governantes, justamente porque em seu nascedouro – a Atenas do século V e IV a.C. – ser cidadão correspondia a ser membro de uma comunidade de iguais que seria tanto causa como consequência de uma decisão coletiva. Logo, se todos tinham igual potencial de influir nos processos decisórios, a única forma coerente de escolher um governante seria o sorteio e não uma eleição.

Antes de prosseguirmos, algumas advertências: o “governo do povo” surgido da experiência ateniense era demasiado restrito por excluir de antemão mulheres, escravos e estrangeiros (“metecos”); a democracia direta praticada no aludido cenário encontra limitações estruturais em sociedades cujo território e população tenham a magnitude que conhecemos hoje; por mais igualitário que fosse o processo decisório no seio da assembleia popular, sempre haveria alguma distorção na formação da vontade coletiva se, por exemplo, uma liderança revelasse competência política superior aos demais para conduzir os assuntos públicos sem, necessariamente, qualificá-los do ponto de vista fático. Neste sentido, a Ágora talvez fora o palco de uma luta de vida e morte entre os predispostos à busca da verdade no âmbito filosófico e os sofistas que a confinavam a habilidades retóricas manipuláveis segundo visões parciais e interesses momentâneos.  

Contudo, salienta Luís Felipe Miguel[1], malgrado seus pecados de origem, a democracia na Grécia antiga, por intermédio da assembleia popular e do preenchimento de cargos por sorteio, possibilitava ao homem comum uma presença permanente nos processos decisórios, obrigando eventuais líderes a serem assim reconhecidos se, e somente se, seguissem de perto seus vigilantes liderados, tendo em vista a rotatividade do exercício do poder assegurada por tais instituições.

Aterrissando no século XXI, confirmamos experiências democráticas diametralmente opostas ao ethos grego: a escolha de governantes mediante um processo eleitoral no qual uma minoria dirigente está indelevelmente separada dos governados no espaço social, na medida em que exerce uma representação política sedimentada na desigualdade de recursos de toda ordem; desigualdade esta que, por sua vez, reproduz-se pelo uso do poder econômico e pela partidarização da mídia e (de modo perturbador atualmente) do poder judiciário, condenando a maioria à negação de sua pluralidade de valores ao reservar-lhe um papel meramente passivo na construção dos programas e projetos em disputa.

Até aqui, o exposto é um tanto consensual, seja na literatura especializada, seja no senso comum.

Onde mora o busílis? Diante da crise de representatividade vivida nas democracias liberais, agravada no Brasil por um processo inconcluso de transição democrática chancelado pela lei de anistia, um político tradicional, advindo dos porões da ditadura civil-militar, após sete mandatos consecutivos como deputado federal, ascende ao cargo de maior autoridade do país através de uma verdadeira engenharia social que, operada nas redes virtuais, transfigura-o em um político “anti-sistema” capaz de catalisar os sentimentos morais de uma parcela majoritária dos(as) brasileiros(as) que, por razões inegáveis, veem-se impotentes no sistema político.  

Manejando uma linguagem popular facilmente assimilável pelo conservadorismo moral que permeia diferentes classes sociais, Bolsonaro figura como um improvável campeão de votos saído diretamente do demos ao vocalizar sem qualquer moderação um discurso incriminador da política profissional, autorizando, assim, expressões públicas de ódio de classe travestidas de “isenção” de quem enxerga-se contra tudo e contra todos.

Ora, diante da horrenda criatura, caberia a nós não nos assumirmos seu criador? Ao seu modo e circunstância, Bolsonaro se fez um “igual” dentre seus seguidores sem, todavia, desmentir que aquilo que supostamente critica – o elitismo do nosso sistema político – é, ironicamente, o que lhe faculta a condução de um governo natimorto do ponto de vista da participação popular. Sim, Bolsonaro é um boçal e quem nele votou pode muito bem estar à altura de sua miséria. No entanto – e sem recuar um milímetro na necessária crítica ao governo autoritário que se impôs, pasme, pelo voto popular – é construtivo (no âmbito da análise política) e consequente (no terreno da luta política) enxergar no povo brasileiro tal como ele é a fonte de todas as vicissitudes de nossa experiência democrática? Estaríamos condenados ao eterno retorno de uma democracia sem povo?

Sucumbir à crença antidemocrática de que o povo é um estado bruto da natureza e não um construto histórico, quem sabe, não implique adiarmos a tarefa de reconstruir um regime político em que o poder esteja outra vez nas mãos do homem e mulher comuns. Do contrário, continuaremos confortados pelo ponto de vista da superioridade moral próprio ao elitismo que Bolsonaro et caterva tão bem souberam “denunciar”, inaugurando, pois, uma era de ressentimento que depõe contra interesses coletivos da (ainda?) nação brasileira. 

Ao diálogo, pois.


[1] MIGUEL, Luís Felipe. A democracia domesticada: bases antidemocráticas do pensamento democrático contemporâneo. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro: IUPERJ, vol. 45, nº 3, 2002, p. 484.

Sobre o Direito ao Aborto*


28 de Setembro é o “Dia de Luta pela descriminalização do aborto na América Latina e no Caribe”. Manifestações são realizadas em várias cidades reivindicando o fim da criminalização do aborto, a legalização e a consequente prestação do serviço de abortamento pelo sistema público de saúde. Não se trata de “defender”, “promover”, “apoiar” ou “desejar” o aborto, mas sim de tornar disponível um procedimento para quem o considere necessário como último recurso para não ter um filho. Pesquisas indicam que cerca de 1 milhão de abortos ilegais são realizados anualmente no Brasil; a reivindicação da legalização não visa tornar o aborto um método contraceptivo ou uma prática banalizada, mas sim permitir que as mulheres que optam pela interrupção de uma gravidez não se submetam a procedimentos em ambientes insalubres, perigosos e criminosos. Falar em 1 milhão de abortos anuais é admitir que a criminalização não impede a prática, mas expõe as mulheres à uma série de riscos. Ninguém opta por interromper uma gestação de modo leviano: a decisão implica sofrimento e frustração. Nossa legislação criminaliza o aborto, mas permite a reprodução in vitro e suas consequências: congelamento e descarte de embriões, sem contar os embriões que não conseguem se desenvolver. É uma discussão delicada, mas em um Estado que se diz laico e que se inclina cada vez mais para ideais liberais, a criminalização do aborto se apresenta como um contrassenso: ela não impede os abortos e nega o direito de decisão das cidadãs. E se lembrarmos que cerca de 20% das mulheres brasileiras, entre 18 e 49 anos, já vivenciaram um aborto, então teremos a dimensão de que não se trata de uma prática rara, nem distante do cotidiano. A mulher que aborta não possui um perfil específico, ela está em todas as religiões, classes sociais e possui todas as cores de pele. Todavia, quando analisamos a questão, percebemos que são justamente as mulheres mais pobres – que não podem pagar pelo procedimento clandestino em clínicas caras – que mais sofrem os efeitos com a criminalização. A legalização, nesse sentido, visa reduzir as desigualdades – de gênero, de classe e de raça.


Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.

* Publicado na página 04 do Jornal Folha da Manhã de 28 de Setembro de 2019.

terça-feira, 10 de março de 2020

Criminalizar ou Legalizar o aborto?*


Criminalizar ou Legalizar o aborto?

A criminalização do aborto é estabelecida por uma lei de 1940. Se entendemos que uma lei é algo que expõe um tipo de moral, então fica possível perceber que, mais do que impedir a realização de abortos, aquela lei tem por objetivo firmar e impor uma opinião sobre o tema. Muita coisa mudou de 1940 para cá, mas há grupos sociais que entendem que a criminalização do aborto é importante para salvaguardar a vida de seres em processo gestacional – por isso a lei, pensam, deve ser mantida.
No plano do “oficial”, o Brasil, então, se apresenta com uma legislação “pró-vida”, mas, no plano do “oficioso”, quando consideramos as estimativas sobre a realização de abortos no país, vemos que a lei, enquanto discurso moral, é reiteradamente negada na prática. Todavia, mesmo não seja cumprida, ela não deixa de ter impactos. Ela não impede abortos, pois as pessoas, decididas a faze-los, encontram seus caminhos; mas, uma vez que existe a criminalização, esse caminho pode ser tortuoso. Em situações de desespero, por motivos dos mais variados, mulheres se submetem a procedimentos extremos: agulhas de tricô, injeções salinas, infusões de ervas, medicamentos arriscados, pancadas na região abdominal etc.
O efeito da criminalização é a elevação dos custos financeiros para a realização de um aborto em clínicas médicas e, para quem não dispõe de tais recursos – que atualmente estão em torno de R$5.000 – o que se eleva são os riscos físicos que podem acarretar hemorragias uterinas, infecções, perda da capacidade reprodutiva e até mesmo a morte. O que se observa é uma criminalização que não atinge o objetivo de impedir a realização de abortos; e que reproduz desigualdades na medida em que possibilita que mulheres com melhores condições financeiras realizem abortos seguros em clínicas clandestinas, reservando às mulheres mais pobres os procedimentos mais arriscados e os profissionais menos capacitados. A legalização do aborto não obrigaria ninguém a realiza-lo, apenas daria a oportunidade de que o procedimento fosse executado de forma menos arriscada e violenta.


           


Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.

* Publicado na Página 04 do Jornal Folha da Manhã de 18 de Agosto de 2018.

domingo, 8 de março de 2020

08 de Março*



O Oscar de 2018 certamente foi influenciado pela ascensão do movimento #metoo (“#eutambém”), que desde outubro de 2017 colocou em evidência o problema do assédio sexual – sobretudo nos ambientes de trabalho. O que começou como denúncia de um caso particular em relação ao produtor de cinema Harvey Weinstein rapidamente revelou-se como um dos inúmeros casos de assédio sofrido pelas mulheres – e não apenas em Hollywood, mas em todo o mundo e em inúmeros contextos e classes sociais. Não era um problema específico das atrizes, mas também das ginastas, das secretárias, das médicas... era um problema vivenciado por todas as mulheres.
Por aqui, desde 1932 as mulheres possuem direito ao voto. Hoje, elas representam mais da metade do eleitorado brasileiro. Mesmo assim, na Câmara dos Deputados elas ocupam apenas cerca de 10% das vagas. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2015 indicou que 51,48% da população brasileira é composta por mulheres. O Censo de 2010 revelou que, na população entre 18 e 24 anos, 11% dos que frequentam o Ensino Superior são homens e 15% mulheres. Isso nos levaria a pensar que as mulheres estão ascendendo e que os diferentes tratamentos de gênero estão se transformando em um problema superado, não é? Não. Pois quando aborda a renda mensal média, a PNAD de 2015 indica que os homens recebem R$1.516 e as mulheres R$943 - isso em um contexto onde há aumento contínuo dos lares onde as mulheres são apontadas como chefes de suas famílias.
As desigualdades de gênero no mundo são um problema real. No Brasil, elas constituem um desafio cotidiano – tanto para as políticas públicas quanto para as próprias mulheres que precisam sair de casa evitando as encoxadas no transporte público, os assédios no trabalho e os comentários preconceituosos e agressivos em todos os ambientes. Mais do que um dia para celebrar as conquistas, o 08 de Março é um dia para ressaltar as injustiças, as agressões – físicas e verbais - e os desafios do cotidiano feminino.

Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.


* Publicado na Página 04 do jornal Folha da Manhã de 10 de Março de 2018.

terça-feira, 3 de março de 2020

O Aborto no Brasil


O Aborto no Brasil*

Tivemos nesta semana dois eventos que colocaram a problemática do aborto em destaque na mídia: as audiências públicas no Supremo Tribunal Federal do Brasil e a votação da descriminalização do aborto pelo Senado Argentino. As manifestações de diferentes movimentos sociais, no Brasil e na Argentina, destacam a relevância política do tema.
Leila Adesse e Mário Monteiro, em uma pesquisa quantitativa sobre o aborto, indicam que em 1992 foram realizados 1.455.283 abortos no Brasil, quantidade que caiu para 1.066.993 em 1996 e manteve-se estável até 2005. Nas audiências públicas no STF, as estimativas mais recentes apresentavam um quantitativo de cerca de 500 mil abortos por ano. Os opositores da descriminalização do aborto questionavam as estatísticas e ponderavam sobre equívocos. Aqui, vale refletir: digamos que as estimativas estejam erradas em 50% - o que seria um erro absurdo -, ainda assim teríamos 250 mil abortos realizados por ano. Se a criminalização do aborto fosse levada às últimas consequências, teríamos então cerca de 250 mil mulheres presas por ano. Seria justo? Viável? Uma outra pesquisa realizada por Débora Diniz e Marcelo Medeiros concluiu que, em 2010, nas áreas urbanas brasileiras, 15% das mulheres entre 18 e 39 anos já tinham realizado aborto em algum momento de suas vidas. Isso significa que o aborto é uma prática constante e não pode ser atribuído a um “perfil”: há mulheres que abortam jovens, outras mais velhas, algumas para não se tornarem mães na adolescência, outras para não gerar o segundo ou terceiro filho, brancas, negras etc. Há inúmeros caminhos que levam ao aborto e eles já foram trilhados por mulheres de diferentes idades, religiões e classes sociais dentro de quase toda – ou toda – família brasileira. Nos países em que o aborto foi legalizado não houve um aumento da prática, pois legalizar não significa impor, mas sim garantir às pessoas que decidem por este último recurso o acesso a procedimentos seguros. No Brasil, legalizamos o descarte de embriões gerados por fertilização in vitro, mas criminalizamos o aborto. Se o ato é o mesmo nos dois casos, por que só é crime em um deles?


           


Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.


*Publicado na Página 04 do Jornal Folha da Manhã em 11 de Agosto de 2018.