Democracia como fraude e possibilidade
Paulo Sérgio Ribeiro
Passado
o 15 de março, data para a qual fora anunciado um ato de “protesto” contra
instituições basilares do nosso ordenamento jurídico-político – Supremo Tribunal Federal, Câmara dos Deputados
e Senado Federal – por grupos de extrema-direita que compõem o núcleo duro do
bolsonarismo, chama-me atenção certa ironia do posicionamento do Presidente da
República. De início, Bolsonaro negou ter convocado aquela provocação facistóide
para, em seguida, nela confraternizar com sua claque à revelia das
recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do próprio Ministério da
Saúde diante do estado de emergência ocasionado pela epidemia do Covid-19,
vulgo Coronavírus.
Que
a manifestação de irracionalidade da persona
Bolsonaro seja atributo de um padrão de comportamento com o qual seus “seguidores”
estabeleçam uma relação de simbiose, isto já é mais do que sabido. Mas há algo no
enredo dessa ópera bufa que não deveria passar despercebido: ao acusar as
eleições presidenciais de 2018 de fraudulentas como mote para a afronta do
dia 15, Bolsonaro atira no que vê e acerta no que lhe é impossível enxergar
e, não menos, no que a autocracia burguesa que o tomou como a bola da vez de
sua agenda seria capaz de admitir.
Caso
levemos a sério a etimologia de “democracia”, havemos de concordar que os
regimes democráticos ao leste e ao oeste de Berlim são experiências um tanto adulteradas
do modus vivendi contido naquela
expressão. Donde vem a coisa que atende por tal nome e por que haveria um hiato
entre o seu contexto de origem e o mundo contemporâneo?
Da
Antiguidade à era moderna, por democracia não se concebia de maneira estanque
um regime político caracterizado pela escolha periódica de governantes,
justamente porque em seu nascedouro – a Atenas do século V e IV a.C. – ser
cidadão correspondia a ser membro de uma comunidade de iguais que seria tanto
causa como consequência de uma decisão coletiva. Logo, se todos tinham igual
potencial de influir nos processos decisórios, a única forma coerente de
escolher um governante seria o sorteio e não uma eleição.
Antes
de prosseguirmos, algumas advertências: o “governo do povo” surgido da
experiência ateniense era demasiado restrito por excluir de antemão mulheres,
escravos e estrangeiros (“metecos”); a democracia direta praticada no aludido
cenário encontra limitações estruturais em sociedades cujo território e
população tenham a magnitude que conhecemos hoje; por mais igualitário que
fosse o processo decisório no seio da assembleia popular, sempre haveria alguma
distorção na formação da vontade coletiva se, por exemplo, uma liderança revelasse
competência política superior aos demais para conduzir os assuntos públicos sem,
necessariamente, qualificá-los do ponto de vista fático. Neste sentido, a
Ágora talvez fora o palco de uma luta de vida e morte entre os predispostos à
busca da verdade no âmbito filosófico e os sofistas que a confinavam a
habilidades retóricas manipuláveis segundo visões parciais e interesses momentâneos.
Contudo,
salienta Luís Felipe Miguel[1], malgrado
seus pecados de origem, a democracia na Grécia antiga, por intermédio da
assembleia popular e do preenchimento de cargos por sorteio, possibilitava ao
homem comum uma presença permanente nos processos decisórios, obrigando eventuais
líderes a serem assim reconhecidos se, e somente se, seguissem de perto seus vigilantes
liderados, tendo em vista a rotatividade do exercício do poder assegurada por
tais instituições.
Aterrissando
no século XXI, confirmamos experiências democráticas diametralmente opostas ao ethos grego: a escolha de governantes mediante
um processo eleitoral no qual uma minoria dirigente está indelevelmente
separada dos governados no espaço social, na medida em que exerce uma
representação política sedimentada na desigualdade de recursos de toda ordem;
desigualdade esta que, por sua vez, reproduz-se pelo uso do poder econômico e pela
partidarização da mídia e (de modo perturbador atualmente) do poder judiciário,
condenando a maioria à negação de sua pluralidade de valores ao reservar-lhe um
papel meramente passivo na construção dos programas e projetos em disputa.
Até
aqui, o exposto é um tanto consensual, seja na literatura especializada, seja
no senso comum.
Onde
mora o busílis? Diante da crise de representatividade vivida nas democracias
liberais, agravada no Brasil por um processo inconcluso de transição
democrática chancelado pela lei de anistia, um político tradicional, advindo
dos porões da ditadura civil-militar, após sete mandatos consecutivos como deputado federal, ascende ao cargo de maior autoridade do país através de uma
verdadeira engenharia social que, operada nas redes virtuais, transfigura-o em um
político “anti-sistema” capaz de catalisar os sentimentos morais de uma parcela
majoritária dos(as) brasileiros(as) que, por razões inegáveis, veem-se impotentes
no sistema político.
Manejando
uma linguagem popular facilmente assimilável pelo conservadorismo moral que
permeia diferentes classes sociais, Bolsonaro figura como um improvável campeão
de votos saído diretamente do demos ao
vocalizar sem qualquer moderação um discurso incriminador da política
profissional, autorizando, assim, expressões públicas de ódio de classe
travestidas de “isenção” de quem enxerga-se contra tudo e contra todos.
Ora,
diante da horrenda criatura, caberia a nós não nos assumirmos seu criador? Ao
seu modo e circunstância, Bolsonaro se fez um “igual” dentre seus seguidores
sem, todavia, desmentir que aquilo que supostamente critica – o elitismo do nosso
sistema político – é, ironicamente, o que lhe faculta a condução de um governo
natimorto do ponto de vista da participação popular. Sim, Bolsonaro é um boçal
e quem nele votou pode muito bem estar à altura de sua miséria. No entanto – e
sem recuar um milímetro na necessária crítica ao governo autoritário que se
impôs, pasme, pelo voto popular – é construtivo (no âmbito da análise política)
e consequente (no terreno da luta política) enxergar no povo brasileiro tal como ele é a fonte de todas as vicissitudes de nossa experiência democrática? Estaríamos
condenados ao eterno retorno de uma democracia sem povo?
Sucumbir
à crença antidemocrática de que o povo é um estado bruto da natureza e não um
construto histórico, quem sabe, não implique adiarmos a tarefa de reconstruir
um regime político em que o poder esteja outra vez nas mãos do homem e mulher
comuns. Do contrário, continuaremos confortados pelo ponto de vista da superioridade moral
próprio ao elitismo que Bolsonaro et
caterva tão bem souberam “denunciar”, inaugurando, pois, uma era de
ressentimento que depõe contra interesses coletivos da (ainda?) nação brasileira.
Ao
diálogo, pois.
[1]
MIGUEL, Luís Felipe. A democracia domesticada: bases antidemocráticas do
pensamento democrático contemporâneo. Dados
- Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro: IUPERJ, vol. 45, nº 3, 2002,
p. 484.