Fonte: DW.
Covid-19:
um teste à resiliência dos Estados nacionais? (parte 2)
Paulo
Sérgio Ribeiro
No
texto introdutório (aqui), reconstituímos o problema da política
visto a partir da instância decisória ocupada pelo Estado moderno[1].
Nesta continuação, trataremos do que a filósofa francesa Catherine
Colliot-Thélène descreve como “socialidade estatal”, uma dimensão do poder cada
vez mais tensionada por formas de dominação subjacentes à “socialidade de
redes”. Tais pólos conceituais permitirão indagar sobre certas contingências na
reconstrução de uma agenda pública no decorrer desta pandemia.
Para
Colliot-Thélène, a análise do Estado moderno sempre se viu cindida entre
aqueles(as) que o veem a partir das identidades coletivas e outros(as) que o
concebem como administração de bens e pessoas em relação - ora conflituosa, ora
conciliatória – com outros poderes. Na filosofia política, o primeiro enfoque
deita raízes na ética, enquanto o segundo – mais próximo das ciências sociais
que praticamos - focaliza o Estado a partir das relações de dominação que vinculam
seus cidadãos.
Essa
linha divisória não é, todavia, intransponível. Para a filósofa francesa, ela
permite muitas confluências, sobretudo, ao observar uma afinidade entre Hegel e
Weber acerca do conceito de soberania estatal. A seu ver, não haveria mesmo
como operar tal conceito divorciando ética de poder, pois se com Hegel
aprendemos que o Estado dota o indivíduo de uma identidade particular ao afirmar
sua “preeminência” sobre outras fontes de socialidade (família, igreja, etc.),
com Weber, admitimos que a vigência do poder estatal é indissociável da crença
que seus cidadãos depositam em direitos e deveres com os quais mover-se por expectativas
quanto a interesses materiais e ideais legitima uma autoridade pública.
Noutros
termos, avaliar as condições objetivas da soberania estatal para concretizar
aspirações coletivas – por exemplo, assegurar a integridade física de uma
população diante de pandemias como a do Covid-19 – é perguntar-se como o Estado
produz vínculo social. Eis a chave explicativa que Colliot-Thélène nos sugere
desfazendo, por um lado, algumas ilusões e sinalizando, por outro, alguns
perigos reais em um futuro que, ao que tudo indica, chegou sombriamente sem
avisar.
Comecemos
pelas “ilusões” ao adentrar no que venha a ser “socialidade estatal”. Àqueles
que, ainda hoje, requentam a dicotomia Estado/sociedade civil do pensamento
político europeu do século XIX e aludem à questão democrática sem maiores
preocupações quanto ao modus operandi
dos processos decisórios, Colliot-Thélène pondera que a democracia é uma
relação entre governantes e governados que não só se espelha como é viabilizada
pela organização e funcionamento do Estado e que a cidadania é uma modalidade de
pertencimento comunitário cujo suporte é o conjunto dos serviços públicos, caso
tomemos o Estado por analogia à “cidade” como lugar de destino das comunidades
naturais assim expresso por Aristóteles.
Esse
pertencimento comunitário é produto da transferência para o Estado de funções e
prerrogativas até então preenchidas por comunidades não-estatais, configurando uma
hegemonia conquistada sobre um território que nunca é definitiva, pois,
assevera a filósofa francesa, trata-se de uma relação de forças com outras
formas de fidelidade coletiva que, ao contrário de um ente abstrato e impessoal
como o Estado, oferecem aos habitantes daquele território formas de
solidariedade mais próximas do cotidiano vivido. Ora, no Brasil contemporâneo,
ainda que seja notória a promiscuidade entre o Estado e fundamentalistas
cristãos que torna em letra morta a laicidade, é inegável o conflito entre tais
esferas de poder quando, por exemplo, igrejas protestantes desrespeitaram
frontalmente a ordem dos governos estaduais e municipais de suspender seus
cultos como medida necessária e urgente para conter a pandemia da Covid-19.
Garantir
a coesão social, isto é, rotinizar os vínculos de solidariedade entre milhões
de almas num território, exige um mínimo de convergência em torno de uma
identidade coletiva que, por sua vez, tenha por suporte o poder estatal,
sobretudo, quando diante de identidades de grupo jamais suprimidas, tal poder se
afirme pela capacidade de fomento da proteção social. Diante das lutas
por reconhecimento jamais equacionadas pela exortação da nacionalidade, o
Estado exerce sua soberania na medida em que sua gênese se confunde com a
própria estruturação do campo da política ou, nas palavras de Colliot-Thélène,
com a emergência de um “espaço de socialização original”:
A
definição weberiana de política pode parecer altamente orientada para a esfera
estreita e exclusiva do político, quer dizer, para a atividade dos homens que
fazem da política sua profissão, mas permanece pertinente, parece-me, no
sentido de que a política se torna uma forma específica da atividade social na
medida em que se reporta
ao poder de Estado. Ela não visa necessariamente dele se apoderar, no todo ou
em parte, mas o pressupõe, quer dizer, pressupõe existir uma instância de poder
identificável que decide em última instância os conflitos internos e externos[2].
A
relativa perda da soberania dos Estados-nação é um dado, posto ser acertado que
ele é cada vez mais tangido por outros poderes (blocos econômicos regionais,
instituições políticas supranacionais etc.). Contudo, é duvidoso apostar ser fato
consumado que o Estado, em sua dupla condição de instância de decisão e de pólo
de identificação, deixe de continuar redesenhando a geopolítica. Aqui, alerta
Colliot-Thélène, mora um perigo: quando múltiplos centros de decisão
estabelecem lógicas de socialização independentes de quaisquer formas de
identidade coletiva e sem estabelecer entre si uma hierarquia, senão uma
“socialidade de redes”, despoja-se a supremacia do poder estatal (e alguns até
podem se regozijar com isso), mas, não menos, desfaz-se qualquer prognóstico
alentador sobre a linguagem política que teremos daí em diante.
Não
se trata aqui de entronizar o status quo,
mas de indagar - como provocativamente faz Colliot-Thélène – qual coletivo
poderá reclamar para si o protagonismo para organizar a cidadania se esta não
tem outra substância além do próprio arranjo institucional que lhe dá forma. Ora,
se o Estado pode ser definido como uma abstração, dada à impessoalidade da dominação
legal, constitui, através do atributo de soberania, uma “forma de poder à qual
retornam essencialmente os atributos da personalidade”[3].
Decidir
é um ato de vontade e este é próprio da pessoa. Ao esmaecer a ideia-força de nação
em um cenário como o brasileiro em que as franquias de um Estado social
esboçadas na Constituição de 88 são inviabilizadas pelo pacto intra-elites que
sustenta até aqui um governo em ponto morto, resta-nos a dominação sem rosto das
corporações (“o Mercado”) cujos emissários locais fazem “passar
a boiada” em reformas de teor ultraliberal que dividem brasileiros(as) entre
aqueles que poderão aderir à lógica privatista dos serviços da seguridade social,
acesso à água etc. daqueles que estarão entregues à própria sorte em relações
comunitárias desterritorializadas, isto é, sem pertencimento comunitário
efetivo a um Estado que lhes proveja o “mínimo social” pelo qual todos se
reconheçam como partícipes de uma mesma civilização.
[1]
Prosseguimos a interlocução com Catherine Colliot-Thélène, tendo por referência
seu artigo “O conceito de política posto à prova pela mundialização”, publicado
pela Revista de Sociologia e Política em 1999 e disponibilizado na plataforma
de periódicos científicos Scielo (aqui).
[2]
Cf. COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. O conceito de política posto à prova pela
mundialização. Revista de Sociologia e Política, nº 12, 1999, p.12.