O IPEC - antigo Ibope - mostra Lula lá na frente, ganhando folgado no primeiro turno. Está quase 30 pontos à frente de Bolsonaro. Moro, com carnaval da mídia e tudo, não chega a dois dígitos, acompanhado de perto por meio Ciro - isto é, aquele Ciro Gomes que parece condenado a fazer metade de sua votação anterior.
Para quem insiste no "antipetismo" como fator atuante na eleição presidencial, como ainda faz boa parte da mídia, está na hora de virar o disco. Lula não apenas é capaz de levar no primeiro turno como tem, também com folga, a menor taxa de rejeição entre os principais candidatos - menor até que a de nanicos como João Doria.
Os números também permitem recolocar a questão da vice. Os defensores mais argutos da chapa com Alckmin já deixaram de lado a questão do impacto eleitoral da composição. Assumem que, embora a presença de Alckmin não tire votos, já que o eleitorado do campo democrático não tem para onde correr, também não acrescenta.
A questão, dizem, é a garantia de "governabilidade" que o ex-governador acrescenta à chapa. E a questão é exatamente esta: governabilidade para quê?
Alckmin na vice é um indicativo poderoso de que Lula, novamente presidente, não afrontará os interesses dominantes no Brasil. Que aceitará os limites impostos, ainda maiores do que aqueles dos primeiros mandatos.
É a espada de Dâmocles pendente sobre a cabeça do novo governo, pronta a cair caso se dê um passo fora da linha.
Nós precisamos, porém, não de "governabilidade" em abstrato, mas de condições políticas para a transformação do país. Para mexer na política tributária, na política agrária, na mídia, militares, mercadores da fé.
Isso só se faz com ação para mudar a relação de forças, isto é, com mobilização e organização do campo popular.
Lula é um político de enorme competência, que sabe medir o pulso das conjunturas. Não adianta esperar que ele tome a iniciativa de adotar posições menos acomodatícias.
O necessário é fazer pressão.
Este foi o erro ao longo dos governos petistas - boa parte dos movimentos abriu mão de fazer pressão, julgando que seu papel era apenas defender os companheiros no poder. Mas as classes dominantes nunca param de fazer pressão, com todos os muitos meios de que dispõem.
Se a pressão vem de um lado só, é natural que obtenha êxito e empurre o governo para o conservadorismo.
Infelizmente, a postura de muitos diante da questão da vice - abster-se de tomar posição, aceitar qualquer decisão - mostra que, uma vez mais, o risco é de um governo sempre na defensiva, condenado a fazer muito pouco e sob ameaça permanente.
* James Rougeron -"Fighting Man" - 1818. Disponível em: https://www.mutualart.com/Artwork/Fighting-Men/0D93A954FA51F127, acesso em 16 de dezembro de 2021.
** Publicado originalmente no perfil do Facebook do prof. Luis Felipe no dia 15 de dezembro de 2021. Reproduzimos aqui com a autorização do autor.
** Professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). É autor de "Democracia e representação: territórios em disputa" (Editora Unesp, 2014), "Dominação e resistência" (Boitempo, 2018), dentre outros. Está lançando neste final de 2021 "Democracia como emancipação" junto de Gabriel Eduardo Vitúlio pela editora Zouk.
Labaxúrias Decantarábias: Porque esse episódio
é um problema político
Esther Alferino*
**
Eis minha análise que ninguém pediu, mas vou
fazer.
Dia desses vimos Micheque, a primeira-dama,
falando em línguas estranhas e sapateando, em comemoração a nomeação de André
Mendonça para o STF.
Virou chacota e ela disse que foi vítima de
intolerância religiosa. Em um país cristão podemos falar de deboche de
manifestações extravagantes de fé cristã, mas não de intolerância religiosa
contra esse grupo. Não existe nenhuma estrutura que desfavoreça esse grupo
religioso ou a profissão de sua fé. Deboche é muito diferente de cristofobia.
Mas por que a esposa do presidente nessa cena é
um problema político?
Porque desde a campanha, o marido dessa senhora
e seus apoiadores falavam sobre um ministro "terrivelmente
evangélico", um ministro que irá herdar questões centrais para o interesse
de um grupo específico de pessoas, os evangélicos, e para a base governista.
Vai passar pelas mãos dele, por exemplo, o caso dos perfis fakes do
"gabinete de ódio" do presidente e seus filhos. Ele será o novo
relator do caso dos incêndios na Amazônia e no Pantanal. Relator da omissão do
senado em taxar grandes fortunas. E a primeira-dama, com sua oração
extravagante, sabe exatamente como ele vai se posicionar sobre esses assuntos.
Assim como ela sabe como ele vai se posicionar em relação a temas sérios sobre
os direitos das pessoas LGBT, da questão das armas e do marco temporal das
terras indígenas. Andre Mendonça terá em mãos algumas das questões
centrais para o governo do qual essa moça faz parte por casamento, por isso ela
acredita que o deus dela é deus de promessas (pra mim ele é assim, com letras
minúsculas, porque meu Deus não honra o mal) como ela menciona entre um
labaxúria e outro, porque ela realmente acredita que tem, por direito divino,
um país do jeito que ela deseja.
Rir e debochar das formas de culto alheias pode
não ser exatamente bonito, mas essa moça nos dá, todos os dias, razões pra
sentir ódio do que ela representa, e se nosso ódio vier em deboche, tudo bem.
Espero sinceramente que ele se transforme em ação política, inclusive para
aprender a dialogar com o povo do reteté, que em sua maioria está em sério
aperto e pode abandonar essa base cristofascista em tempo.
* Mestre em Sociologia Política pela
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
** Bloco de madeira do século XVII representando sonho supostamente premonitório de Frederico III da Saxônia. Dias após o sonho de Frederico III, o reformador Martinho Lutero teria apresentado suas 95 teses ao mundo. Ilustração disponível em: https://reboarts.wordpress.com/2016/10/31/fredick-iiis-dream, acesso em 10 de dez. de 2021.
Com grande satisfação que convidamos para o lançamento do livro “O Dourado e a Piabanha: impressões sobre a pesca de um eco-historiador ativista” de Arthur Soffiati.
Nesta live de lançamento teremos uma conversa animada com o autor mediada por José Colaço, antropólogo e prefaciador do livro. Esta atividade imperdível será transmitida ao vivo pelo canal do Neanf/INCT-InEAC/UFF no You Tube.
O Neanf é Núcleo de Estudos Antropológicos do Norte Fluminense Neanf/INCT-InEAC/UFF coordenado pelo Prof. José Colaço (COC e PPGJS/UFF).
Eis que Luciane Silva (UENF) apronta mais uma das suas. Ela está lançando, pela Ciclo Contínuo Editorial, o seu "Funk para além da festa - Disputas simbólicas e práticas culturais no Rio de Janeiro".
Reproduzindo uma síntese sobre o livro publicado no site da editora:
"O livro nos encoraja a apreender e questionar o baile 'além do baile', que é o cerne da abordagem da qual ele se origina. É por isso que não é, a rigor, uma etnografia do baile. O baile aparece aqui como uma situação cuja ocorrência se torna possível pela conjunção de elementos que vão além da música e da dança. À maneira da análise situacional da antropologia social britânica, Luciane nos convida a seguir e dissecar cada uma dessas dimensões que se juntam, são compostas ou se opõem para fazer o baile acontecer. Como um pano de fundo contra o qual se manifestam as batalhas, às vezes silenciadas, às vezes em choque de armas, que opõem a favela ao Estado, o batidão evoca aqueles 'tambores de aflição' ouvidos na Zâmbia por Victor Tuner, e cujo ritual marcava a angústia e revolta resultantes da presença colonial."
- Jean-François Véran - Professor adjunto de Antropologia na PPGSA do Instituto de Filoso a e Ciências Sociais da UFRJ
Aproveitando o ensejo, avisamos que neste 02/12, 19 hs, a Luciane fará live de lançamento do livro junto a ilustríssim@s convidad@s. O evento pode ser acompanhado no Youtube da editora.
Como eu mesmo já disse em outra ocasião: funkem-se!
O dia da "Consciência Negra" é um excelente motivo para lembrar não só da luta histórica do Povo Negro, mas principalmente para lembrar do Brasil!
Já se disse que "se existe uma história do Povo Negro sem o Brasil, não existe uma história do Brasil sem o Povo Negro" e essa é uma verdade irrefutável!
O nosso país foi construído, desde os primórdios da colonização, pela extrema violência exercida contra os povos originários e contra as várias etnias escravizadas na África, que para cá foram trazidas ao longo de mais de três séculos. Essa marca ninguém pode apagar de nossa história e nos atormenta negativamente até hoje!
Do mesmo modo, nessas condições malsãs, também foi se estruturando uma sociedade. Por baixo, amalgamando etnias e culturas numa síntese criativa, se estabeleceu um "povo novo", como gostava de dizer o grande Darcy Ribeiro, enriquecido ainda mais pela vinda de imigrantes pobres de todas as partes do mundo. Somos, portanto, um povo profundamente mestiço, que tem dentro de si a África, a Ásia e a Europa, e afirmar isso não significa, em nenhum sentido, deixar de reconhecer a profunda violência que nos marca desde sempre nem muito menos aceitar a ideia de uma "democracia racial". Mas apenas reiterar que essa é uma dimensão que nos engrandece e que nos honra diante do mundo.
Que a luta pela igualdade e contra todo tipo de discriminação continue a orientar os brasileiros que acreditam nesse país e reconhecem a presença negra como fundamental na formação do nosso povo!
E que sigamos com os ensinamentos do inspirado Gilberto Gil, ao proclamar que "a felicidade do negro é uma felicidade guerreira!"
Ao que se poderia acrescentar que toda felicidade só pode ser uma felicidade guerreira!
Viva o Povo Negro, viva o Brasil mestiço, viva os brasileiros de todas etnias que contribuiram para formar o nosso povo!
* Sociólogo. Doutor em Ciência Política (USP). Professor associado ao Departamento de Ciências Sociais (Área de Ciência Política) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus Araraquara.
Eis que que
Sérgio Silva, o polímata da Unirio, coloca mais uma das suas criações no mundo.
“Irracionalismo
de conveniência: ensaio sobre a pós-verdade” nos chega pela editora curitibana
Appris e sintetiza o conjunto de inquietações teóricas e politicas do autor.
Sérgio não só revisita autores tão diferentes como Foucault ou Adorno. Bebe na
fonte destes, penso que para ganhar fôlego e fúria, e os renova para decifrar
os desafios destas inquietantes primeiras décadas do século XXI.
Para quem quiser
ter um petisco do debate, recomendo o vídeo abaixo da conversa de Sérgio com o
querido Fabrício Neves (Unb) sobre o trabalho recém-lançado:
Também abaixo
socializo o prefácio que elaborei para este livro do Sérgio. Aos navegantes
aviso que tive a honra de ter sido orientado por Sérgio em uma das minhas vidas
na UENF. Hoje eu e ele podemos dizer que somos amigos na universidade e brothers
de armas. Ou, para ser mais preciso, brothers nas artes das seis cordas.
Finalizo dizendo
que igualmente muito me honrou o convite para escrever este prefácio. Sem
dúvida minha contribuição não dá conta da complexidade e da sofisticação da
propostacorajosa de Sérgio. Mas,
funciona como um convite para o leitor fazer o mergulho neste lançamento.
Boa leitura!
PS: O livro pode ser encontrado nas boas casas do ramo.. e, evidentemente, no site da editora Appris: https://www.editoraappris.com.br/
Das conveniências do irracionalismo - Prefácio
de “O irracionalismo de conveniência: ensaio sobre a pós-verdade, fake News e a
psicopolítica do fascismo digital” de Sérgio Pereira da Silva. Editora Appris,
Curitiba, 2021
George Gomes Coutinho
A crise do setor financeiro e imobiliário em 2008 nos EUA. A conformação
das novas e perversas dinâmicas do sistema internacional. A ascensão e
previsível queda da Terceira Via inventada, recauchutada, testada e torpedeada
por seu perfil conciliatório e pusilânime com as estruturas sociais brutais do
mundo pós-fordista. A persistência da pauperização, da precarização do mundo do
trabalho, das promessas não cumpridas e tampouco remotamente entregues no mundo
do caráter corroído discutido por Richard Sennett[1]
há tempos atrás. O suposto empresário de si, o “empreendedor” envolto em
fantasias e auto-mistificações falsamente douradas, incensado a partir de nada,
frustrado, oprimido, adoecendo sistematicamente e criando índices de sofrimento
mental ainda não detectados em outros momentos históricos. A mônada com pés de
barro.
Em meio a tudo isso há ainda a pandemia de Covid-19 enquanto escrevo que
denunciou e segue denunciando em cores, áudios, movimento e índices as
diferentes faces da desigualdade em todos os aspectos por todo globo terrestre.
Esta sociedade complexa, intrigante e com traços distópicos incomoda e
pressiona por respostas. É com este momento, onde temos tudo e não temos nada
diante de nós, que Sérgio Silva e seu trabalho se defrontam. Diria que autor e
obra corajosamente se defrontam com
mais uma das grandes crises modernas nadando de peito aberto em mar revolto.
Mas, não obstante a humanidade já ter passado por momentos disruptivos e
francamente vertiginosos, Sérgio e seu livro ressaltam menos o que há de
cíclico em nossa conjuntura, o retorno da roda, e mais os elementos
particularmente trágicos que singularizam o que vivemos. Trata-se de um trabalho de diagnóstico do tempo presente.
Antes de prosseguir penso ser relevante fazer um paralelo com um autor
que se apresenta como alma gêmea e, não obstante a sua ausência no trabalho de
Sérgio, apresentou um opúsculo em 2009 que se coloca em comunicação tão íntima
com a proposta deste livro que podemos dizer que ambos funcionam como vasos
comunicantes. Falo do crítico cultural Mark Fisher (1968-2017) e seu Realismo Capitalista[2].
Sérgio Luiz Silva e Mark Fisher são teóricos críticos em estilo livre[3].
Fisher assinalava com alguma ironia, por vezes sarcasmo e muita indignação o
cenário de terra arrasada do mundo
pós-neoliberal, tudo isso em uma narrativa que vai da cultura erudita ao pop na
velocidade da luz. O ocidente após Thatcher, Reagan, Consenso de Washington e
afins não enveredou acriticamente somente em fórmulas austericidas que
redundaram em índices assassinos de concentração de riqueza. Esta sociedade que
vivemos hoje e que não nasceu ontem, sendo tudo engendrado nas últimas décadas
na verdade, contaminou algo além da imaginação de editoralistas da mídia convencional,
policy makers e agentes coletivos ou
individuais do setor financeiro. Fisher
denunciava nada menos que subjetividade humana mutilada, decepada pela
violência simbólica de slogans como “there´s
no alternative” tal como triunfante já bradou o thatcherismo. Tanto se fez,
tanto se repetiu que não há nada além de capitalismo (e desta modalidade
específica de capitalismo), que o homem comum assim olhou diante de si um
abismo que fornece um presente eternamente cinzento e bárbaro. Um Dia da
Marmota sem final feliz. E, como
sabemos, no risco de flertar em demasia com o abismo o observador pode ser
engolido confundindo-se simbioticamente com a escuridão.
Neste cenário em que o arbítrio se coloca como relação necessária e o interessemal compreendido impõe uma ontologia postiça é que se apresentam os
sintomas discutidos por Sérgio em nossa contemporaneidade. Pós-verdade, fake
news, barbarização da opinião pública, autoritarismo, reedição do fascismo em
versão atualizada 2.0 e necropolítica. Em meio a tudo isso um capitalismo mais
do que anti-iluminista que se apresenta até mesmo com traços pós-humanos. Pulsão
de morte em ritmo de videoclipe.
As consequências desta sociedade não redundaram somente em indivíduos
dopados em um ciclo de consumo dia após dia de sujeitos aprisionados na
maldição da obsolescência programada. O projeto é de uma sociedade de tiranos e
narcisicamente orientada. Algo que a filosofia política há poucos séculos atrás
chamaria simplesmente pelo nome de guerra
de todos contra todos. Minha base humanista não vê a menor chance de isso
render bons frutos. E não tem dado.
Desta franca deterioração situada além dos limites da opinião pública,
que redundou na ressurgência dos projetos autoritários em diferentes graus e vitoriosos
nos processos de concorrência eleitoral, é difícil não reconhecer que ambos os
lados do espectro político contribuíram de maneira direta ou indireta. Nos
governos no flanco esquerdo, para além de abraçarem sem maiores questionamentos
o receituário fiscal, há aquela
arrogância costumeira. Oras, aos campeões morais o sucesso é inevitável! No
lado direito, compartilhando a mesma cartilha de políticas públicas fornecida
pelo ultraliberalismo, a insuficiência de enfrentarem de maneira honesta seus
próprios demônios. Entre progressistas e conservadores, em uníssimo, a falta de
imaginação política e de compreensão das experiências do século XX e das
demandas do século XXI. Neste ínterim, segue o mundo concreto desabando na
cabeça de milhões de pessoas que não sonhavam e não imaginavam mais qualquer
outro tipo de futuro. Eis o cenário onde grassa o chorume analisado neste
trabalho.
Sérgio compreendeu o caráter multivariado das patologias do nosso tempo. Se
armou com as armas de uma teoria crítica renovada que não abre mão da tradição
do materialismo multidisciplinar. Desejo e necessidade são olhados com lupa em
suas contradições, complementariedades e dinâmica. Teoria social, psicanálise,
sociologia e epistemologia são ferramentas habilmente combinadas. Como se não
bastasse ainda há Habermas, Foucault, Adorno, Elias, dentre outros, que são
mobilizados criativamente em novas sínteses arriscadas e que, por vezes, podem
fazer com que ortodoxos de diferentes matizes sintam certo desconforto. Mas,
pouco importa. O objeto em sua complexidade se coloca em posição de prioridade
analítica e as ousadias teóricas se justificam mais do que qualquer outra
coisa. Importa é compreender em minúcias o inferno semiótico em que estamos.
O livro de Sérgio é critica e compreensão.
Fornece um quadro interpretativo poderoso para compreendermos como a opinião
pública se tornou o ringue de vale tudo que conhecemos. E há, também, em meio
aos meandros argumentativos e analíticos que explicam o fascismo nosso de cada dia, espaço para uma esperança rebelde e
sutilmente subversiva. A utopia de Sérgio envolve a aposta em uma terapêutica
do diálogo como cura para a barbárie. Uma
atuação voltada interativamente para o entendimento, um uso da razão em uma
plenitude expressiva muito além do embotamento coisificado fornecido pela
sociedade dos cliques de curtir/descurtir. A utopia de Sérgio é pulsão de vida.
É interesse bem compreendido embebido do que há de melhor na tradição
iluminista com a qual Sérgio se agarra angustiado.
Por fim, tal como o título denuncia, temos sim um Irracionalismo de conveniência cinicamente mobilizado como resposta
aos afetos, frustrações e desalentos do horizonte árido dado pelo realismo
capitalista. Mas, o trabalho do Sérgio apresenta, na verdade, todas as inconveniências deste irracionalismo. O
preço a ser pago pelo uso de tal playbook
pode ser alto demais, insuportável eu diria. A questão é que temos tempo ainda
de evitarmos um ponto de não retorno. E este livro dá, nas brechas, algumas
possibilidades enquanto nos explica o funcionamento da hidra.
Campos
dos Goytacazes, 13 de maio de 2021.
Referências
BERMAN,
Marshall. Tudo o que é sólido desmancha
no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
FISHER, Mark. Capitalism realism: is there no alternative?
London: Zero Books, 2009.
HOLLERAN, Max.
Marshall Berman´s freestyle marxismo. In: New
Republic. New York City, New Republic, n. 14, abr. 2017.
SENNETT,
Richard. A corrosão do caráter:
consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo: Rio de Janeiro:
Record, 1999.
[1] SENNETT,
Richard. A corrosão do caráter:
consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro:
Record, 1999.
[2] A
edição brasileira foi publicada pela Autonomia Literária em 2020.
[3]
Devo esta expressão a Max Holleran em artigo publicado no ano de 2017 na
revista New Republic. Holleran
definiu o não menos inventivo Marshall Berman como praticante de um marxismo em estilo livre (freestyle marxism). Penso que o termo
aqui se adeque como mão e luva.
Nosso querido
amigo e professor Milton Lahuerta (UNESP-Araraquara) nos autoriza, gentilmente,
a publicar esta bela reflexão sobre a Universidade como lugar de crítica do poder e de liberdade de pensamento. Boa leitura!
⁞
Viva a universidade, viva a inteligência, viva a
vida!
Milton Lahuerta*
Diante dos ataques à universidade e à inteligência,
e do culto da morte que se está naturalizando em nosso país, vale lembrar de um
episódio ocorrido num outro momento de trevas na história do Ocidente.
No contexto de polarização fratricida que levou à
eclosão da Guerra Civil Espanhola,
empolgado com as sucessivas vitórias das forças fascistas e em resposta
ao discurso feito por Miguel de Unamuno, o general franquista José Millán
Astray, em 12 de outubro de 1936, na cerimônia de abertura do ano letivo na
Universidade de Salamanca, proferiu uma série de disparates em defesa da
brutalidade, entre eles: "Morram os intelectuais! Viva a morte!"
Ao se defrontar com tamanha ignomínia, Miguel de
Unamuno (1864-1936), intelectual e pensador liberal conservador com grande
prestígio na Espanha, dirigindo-se a Astray, não conteve a indignação e
explicitou a dramaticidade que marcou a cerimônia:
"Acabo de oír el grito de ¡viva la muerte!
Esto suena lo mismo que ¡muera la vida! Y yo, que me he pasado toda mi vida
creando paradojas que enojaban a los que no las comprendían, he de decirlos
como autoridad en la materia que esa paradoja me parece ridícula y repelente.
De forma excesiva y tortuosa ha sido proclamada en homenaje al último orador,
como testimonio de que él mismo es un símbolo de la muerte. El general Millán
Astray es un inválido de guerra. No es preciso decirlo en un tono más bajo.
También lo fue Cervantes. Pero los extremos no se tocan ni nos sirven de norma.
Por desgracia hoy tenemos demasiados inválidos en España y pronto habrá más si
Dios no nos ayuda. Me duele pensar que el general Millán Astray pueda dictar
las normas de psicología a las masas. Un inválido que carezca de la grandeza
espiritual de Cervantes se sentirá aliviado al ver cómo aumentan los mutilados
a su alrededor. El general Millán Astray no es un espíritu selecto: quiere
crear una España nueva, a su propia imagen. Por ello lo que desea es ver una
España mutilada, como ha dado a entender.
Este es el templo del intelecto y yo soy su supremo
sacerdote. Vosotros estáis profanando su recinto sagrado. Diga lo que diga el
proverbio, yo siempre he sido profeta en mi propio país. Venceréis, pero no
convenceréis. Venceréis porque tenéis sobrada fuerza bruta, pero no
convenceréis porque convencer significa persuadir. Y para persuadir necesitáis
algo que los falta en esta lucha, razón y derecho. Me parece inútil pedirlos
que penséis en España."
Viva a universidade, viva a inteligência, viva a
vida!
* Sociólogo. Doutor em Ciência Política (USP).
Professor associado ao Departamento de Ciências Sociais (Área de
Ciência Política) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus Araraquara.
O Cine Darcy apresenta nossa próxima sessão, a exibição e debate da série: Meu bairro, Minha língua, idealizado por Vinícius Terra.
Na segunda-feira, dia 08 de novembro, às 19:00 será realizada a transmissão, pelos canais YouTube e Facebook do Cine Darcy, do primeiro episódio da websérie Meu Bairro, Minha Língua, cujo tema central é o sentido da lusofonia na construção dos territórios de língua portuguesa. Após a exibição, haverá o debate com a presença do idealizador do audiovisual, o rapper Vinícius Terra e os convidados Mila Schiavo, produtora musical e musicista, Yuri Costa, cientista social.
Mediação: Elis Miranda: Professora UFF
Sinopse:
“Descolonizar o idioma, conectar pessoas; ‘Meu Bairro, Minha Língua {...}’ é a redescoberta de nossas raízes, heranças culturais e relações históricas, por intermédio da música, a partir da aproximação de artistas da língua portuguesa.
Os bairros da língua portuguesa são o foco de percepção das mudanças no idioma e como cada artista local compreende e percebe a questão linguística e ao mesmo tempo a memória afetiva de seu bairro de origem em suas criações.
‘Meu Bairro, Minha Língua {...}’ nos dá, por intermédio da história de cada artista (suas cores, vozes, nações e origens), a oportunidade de mostrar uma língua democrática, descentralizada, descolonizada e cada vez mais alinhada ao nosso tempo.” ( Retirado do canal no YouTube do Vinícius Terra)
Acompanhem nossas redes sociais para saberem mais informações da sessão nos próximos dias.
Desde
o início da pandemia em fevereiro de 2020, no Brasil, assistimos a um processo
de deterioração das condições gerais de vida da população em todas as cidades.
A visibilidade desta deterioração estava no aumento do número de famílias
vivendo nas ruas, nas filas de emprego, na impossibilidade de cumprimento do
isolamento social nas favelas. Vimos de perto formas de improvisação dos
governos municipais, de negação do governo federal e de autoritarismo de
governos estaduais que tentaram forçar seus servidores ao retorno presencial em
mais de uma ocasião. Um elemento comum deve ser destacado ao longo de
toda a pandemia: a capacidade de organização da sociedade civil nos processos
de resistência e fraternidade política. Nas favelas, foi mais comum que funcionassem
ações coletivas para alimentação e medidas sanitárias do que ação efetiva das
Prefeituras. Sindicatos da educação, da justiça e categorias organizadas
rechaçaram as investidas de retorno ao trabalho de forma atabalhoada e
colocando vidas em risco. Cidadãos comuns reuniram forças e organizaram
entregas sistemáticas de alimento à centenas de famílias em situação de
pobreza e extrema pobreza. Movimentos de produção rural e pequenos
agricultores doaram toneladas de alimentos à população.
Os
meses passaram, as mortes por COVID-19 aumentaram e passamos a lidar com duas
frentes de problemas: uma crise sanitária e outra humanitária. Os auxílios
recebidos não foram suficientes para enfrentar a insegurança alimentar que já
estava na mesa dos brasileiros. Principalmente mulheres que chefiam famílias e
vivem de trabalho informal. Principal grupo a perder suas fontes de renda com a
pandemia. Não havia mais como vender alimentos em festas, realizar diárias,
ocupar-se de trabalhos estéticos e uma infinidade de ocupações que dependem de
um mercado de alimentação, lazer, turismo, serviços em geral.
Chegamos
ao fim de 2021 com o fechamento natural deste quadro: o acirramento da pobreza.
Na Portelinha, comunidade localizada em Campos dos Goytacazes, é certo arriscar
que mais de 50% das famílias vive quadro de desemprego e insegurança alimentar.
Para além disto, é possível supor que esta realidade pode ser amplificada para
a cidade e capitais. São milhões de desempregados e as cenas de pessoas
revirando o lixo não produz qualquer efeito sobre o governo federal. Temos a
comprovação de que o ministro da economia tem lucrado como nunca ao longo dos
meses recentes. E é certo dizer que ele odeia pobres.
Que
temos um presidente genocida, não é preciso repetir. Temos uma tarefa pela
frente no dia 15 de novembro. E a considerar a gravidade do quadro de fome e
desemprego no país, esta tarefa não é fácil. Será necessário reafirmar as
bandeiras que foram levantadas ao longo destes dois anos. Sobre a importância
do funcionalismo, do SUS, da Universidade, da Ciência. Será necessário
denunciar os crimes ambientais cometidos pelo governo Bolsonaro e seus
apoiadores. Mas talvez seja igualmente necessário fazer o diálogo com aqueles
que neste momento estão revirando todo e qualquer lugar no qual possam
encontrar alimento. A experiência da fome é limítrofe pois estabelece
para quem a vive, uma condição de não humanidade. Em um cenário de desigualdade
no qual vemos estas diferenças de forma ampliada, será preciso quebrar algumas
paredes e direcionar energia ao contato com periferias, zonas rurais, população
em situação de rua e outros territórios em vulnerabilidade.
Com
a chegada do Natal, dos embrulhos, perus, luzes, férias, viagens, todos este
quadro parecerá ainda mais distópico. Com a segunda dose no braço, famílias
planejam realizar encontros interrompidos. Quando as festas acabarem estaremos
de frente para uma eleição. O candidato Bolsonaro pretende levantar sua
popularidade com um novo auxílio. O Programa Auxílio Brasil pretende substituir
o Bolsa Família. Além de ainda não ter uma clara dotação orçamentária, o
programa institui penduricalhos meritocráticos. Existem pontos questionáveis
sobre a relação entre creches e rede privada, uma vez que os municípios ficarão
fora desta intermediação[1],
bagunçando relações que podem ser melhor administradas a partir da esfera
municipal. Das muitas mudanças cujo objetivo parece ser “incentivar” crianças,
jovens e adultos a produzir melhor, a mais assustadora é certamente a que
propõe consignar o auxílio. Exatamente: um incentivo ao micro empreendedorismo
de pessoas em condição de extrema pobreza. Neste texto não será possível
detalhar as implicações e fragilidades contidas na proposta. Mas vale a pena
citar o conteúdo original da Medida Provisória 1.061 de 9 agosto de 2021 que
institui o Programa Auxílio Brasil e o Programa Alimenta Brasil[2]:
Da
consignação
Art.
23. Os beneficiários de programas federais de assistência social ou de
transferência de renda poderão autorizar a União a proceder aos descontos em
seu benefício, de forma irrevogável e irretratável, em favor de instituição
financeira que opere modalidade de microcrédito, para fins de amortização de
valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos e financiamentos, até o
limite de trinta por cento do valor do benefício, nos termos do regulamento.
Supondo
que o auxílio seja suficiente para cobrir o valor atual de uma cesta básica em
São Paulo, o que o governo pretende ao instituir um “consignado” sobre valores
que mal possibilitam a alimentação de uma família?
Sabemos
que há um risco real de que este auxílio reabilite Bolsonaro entre os mais
pobres. Isto porque a economia não crescerá em 2022 no ritmo necessário para
sanar a precariedade vivida por estas famílias. E possivelmente ele usará este
instrumento para percorrer o Brasil em sua campanha. O Bolsa Família sempre foi
o coração das administrações petistas. Não são poucas as críticas feitas ao
programa, não são poucos os defensores do programa. O certo é que vivemos uma
inflação galopante que inviabiliza qualquer recuperação da mínima dignidade da
população em situação de extrema pobreza. A linha entre os remediados e os
miseráveis vão perdendo seus contornos. É certo que alguém colhe estes
dividendos. Economicamente. Politicamente.
Nosso
desafio neste dia 15 de novembro é manter o diálogo com a população, evitando
que um genocida assuma o poder por mais quatro anos a partir da consignação
da miséria alheia.
** Socióloga. Professora da Universidade Estadual do
Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Chefe do Laboratório de Estudos da
Sociedade Civil e do Estado (LESCE). Diretora da Associação de Docentes da UENF
(ADUENF).
Espero que estejam bem. Escrevo para indicar que semana que vem estarei em um diálogo sobre “Bolsonaro e a teologia brasileira do poder autoritário”, na próxima sexta-feira às 19h, com o pessoal do Instituto Humanitas de Estudos Integrados e o grupo de pesquisa Mythos-Logos da UFRN.
A queda do muro de Berlin e o colapso da União
Soviética podem ser definidos, reunidos num mesmo evento, como o marco que
sacramenta o início do fim dos partidos militantes e, a rigor, dos partidos de
massa. Não é a causa única, evidentemente, mas é o marco histórico. A
transformação das sociedades industriais, que agregavam a aglomeração de
grandes números de trabalhadores em fábricas e conformavam a existência de
poderosos sindicatos, em sociedades tecnológicas que dispersam os trabalhadores
em ilhas menores e em serviços, certamente é um dos fatores importantes para o
declínio dos partidos militantes e de massa, principalmente os de esquerda e
socialdemocratas.
Existem também fatores de ordem ideológica. Com a
queda e o fim da URSS chegou-se também ao fim da luta sistêmica – o fim da luta
que opunha dois sistemas de forma universal, econômica, política, social e
ideologicamente: o capitalismo e o comunismo. Um sistema venceu. Nem Cuba e nem
a Coréia do Norte são oposições sistêmicas ao capitalismo. A China é um modelo
misto. Com isso, os partidos de esquerda, em praticamente todo o mundo,
passaram a integrar e operar no sistema capitalista. Vejam-se os partidos da
esquerda brasileira: o paradigma programático principal de suas lutas não é o
socialismo.
No auge da sociedade industrial, que coincidiu mais
ou menos com o período da Guerra Fria, os partidos precisavam ter poderosas
organizações partidárias vinculadas a setores sociais definidos, a quem
representavam, para serem competitivos eleitoralmente e para terem capacidade
de interferir nas esferas do Estado, visando viabilizar políticas públicas e
direitos em favor de seus representados. As próprias distinções ideológicas e
programáticas eram mais definidas e demarcadas.
Com o novo quadro que se institui no final do
século XX e nessas duas décadas do século XXI, surgem novas características: há
uma maior diluição das diferenças ideológicas e programáticas, alianças mais
amplas e plurais se constituem para dar apoio a governos, os partidos reduzem
suas estruturas organizacionais em termos de militância organizada, há um
esvaziamento da dinâmica sindicato-parido, as lutas por direitos sociais e
trabalhistas (base do Estado de Bem-estar) cede espaço para pautas identitárias
e políticas de moralidade.
Enfim, como nota Piter Mair, a militância, as
mobilizações e os comícios perdem importância (tendência reforçada pela
internet), os partidos se afastam dos cidadãos e das bases sociais e suas
organizações se tornam mais enxutas e burocratizadas. A rigor, os partidos se
afastam da sociedade e fluem para o Estado. Tornam-se partidos-Estado,
expressões do Estado e dos governos.
Os partidos se tornam máquinas do poder, cuja
relação com a sociedade não se define mais pela organização, pela representação
social especifica, pela militância, mas por uma relação meramente eleitoral.
Esta relação se define cada vez menos pelos preceitos de uma hegemonia estável
e mais pelas circunstâncias do momento. Exemplo disso é a flutuação de votos,
por exemplo, entre Lula e Bolsonaro.
A dependência dos partidos ao Estado e às
estruturas do governo ocorre em várias democracias. No Brasil, essa dependência
é bastante acentuada: os partidos dependem dos fundos eleitorais e partidários,
do sistema de mandatos, cargos e privilégios. Os partidos, incluindo os de
esquerda, fundem seus sistemas de interesses mais com os interesses do Estado e
dos governos do que com os interesses da sociedade.
São poucos os parlamentares, tanto no Brasil quanto
em outros países, que fazem uma crítica contundente ao sistema de privilégios
agregados no setor público, ao sequestro dos recursos públicos para esse setor
e à sistemática incapacidade do poder público de resolver problemas cruciais da
economia, da sociedade, da perda de direitos etc.
Os eleitos, os parlamentares, seus assessores fazem
parte de uma elite pública que vive de cargos e privilégios estatais. A CPI da
Covid revelou não apenas uma criminosa estrutura inoperante e operante do
Estado e do governo contra a sociedade, mas também uma igualmente criminosa
omissão dos parlamentares que não fiscalizaram, não denunciaram, não fizeram
averiguações in loco, deixando o povo no seu próprio abandono.
Os partidos estão em crise? Vários analistas optam
por responder esta pergunta de forma ambígua. Por um lado, enquanto estruturas
partidárias organizadas da sociedade, de fato, os partidos estão se
enfraquecendo. Mas enquanto máquinas de poder insuladas no Estado, que
controlam mandatos, cargos, privilégios e verbas públicas, os partidos estão se
fortalecendo.
Um dos aspectos que fortalece os partidos enquanto
máquinas de poder do Estado diz respeito à perda de relevância das mobilizações
populares. No passado, em grande medida, essas mobilizações eram convocadas e
lideradas pelos partidos. Recentemente, os partidos são coadjuvantes dessas
mobilizações. Essas são convocadas a partir de eventos casuais, a exemplo do
assassinato de George Floyd, ou a eventos circunstanciais, a exemplo do Fora
Bolsonaro e outros tipos de lutas políticas e pautas pontuais. Mas o fato é que
as mobilizações têm pouco impacto resolutivo sobre os rumos das políticas
estatais e as decisões parlamentares. Isto confere um conforto aos partidos no
sentido de que os seus próprios interesses são o centro de suas decisões.
O que se tem, então, é uma crise da relação dos
partidos com a sociedade. E esta é a crise da democracia, o agravamento da
crise da representação, a crise da democracia como democracia de partidos. As
consequências dessa crise são várias. Alguns analistas chamam a atenção para uma
crescente despolitização, tanto dos políticos e dos partidos, quanto da
sociedade. O linguajar tecnicista e administrativista domina cada vez mais nas
conversas dos políticos. Este é um largo caminho para a inoperância e a
incompetência. Em política, as soluções precisam ser políticas. A técnica e a
administração devem ser auxiliares da política. Mas os partidos e os políticos
inverteram essa equação.
O afastamento dos partidos da sociedade produz uma
inevitável despolitização, desorganização e perda de qualidade cívica da mesma.
Isto abre as portas para uma crescente influência de grupos religiosos,
fragmentação de pautas, fake News e pós-verdades, visões obscurantistas e
anticiência, teorias conspiratórias etc.
Sempre existirão políticos oportunistas prontos
para abraçar essas pautas para encurtar seus caminhos para o poder. As novas
ondas de extrema-direita se aninham nesse ambiente de despolitização e
desorganização social. Capturam massas amorfas, mergulhadas em sua própria
solidão. Este é o maior custo a ser pago pela transformação dos partidos
democráticos e de esquerda de partidos da sociedade em partidos do Estado. O
risco é alto: o do definhamento das democracias.
O
estudo “Por
uma Sociologia Sistêmica Pós-Colonial da América Latina” propõe uma teoria
sociológica sistêmica pós-colonial para analisar a América Latina enquanto
região da sociedade mundial moderna. O autor toma a teoria da sociedade de
Niklas Luhmann como ponto de partida para este esforço de construção teórica,
que consiste em combinar a análise da unidade da sociedade mundial com a
consideração das diferenças e variedades regionais construídas em seu interior.
Para alcançar este objetivo o estudo identifica e propõe solução para um
problema fundamental na teoria da diferenciação funcional da sociedade
formulada por Luhmann: Sua descrição da transição à sociedade moderna enxerga
somente um processo de diferenciação funcional singular e interno à Europa,
desconsiderando, como os pós-coloniais costumam dizer, o papel da “diferença
colonial” na constituição da transição para a modernidade. Para compreender a
globalidade das diferenças regionais, a teoria dos sistemas precisa não apenas
investir em estudos sobre a globalização dos sistemas funcionais a partir do
século XIX, tendo a Europa como o núcleo difusor dos processos sociais globais,
mas sobretudo questionar e revisar sua descrição da própria transição para a
sociedade moderna, realizando uma profunda autocrítica.
Por
isso, o autor propõe rever a tese da transição à sociedade mundial
funcionalmente diferenciada a fim de escapar da narrativa da singularidade
ocidental, segundo a qual outras regiões recebem, sempre de fora para dentro,
estruturas sociais e semânticas gestadas primeiramente na Europa. A ideia é
recontar a história da modernidade, substituindo a narrativa única de uma
diferenciação funcional desenvolvida inicialmente no interior da Europa e
depois expandida para o resto do mundo por narrativas plurais sobre a
experiência de cada contexto “geo-histórico” como parte do desenvolvimento
“entrelaçado” e “múltiplo” de sistemas funcionais globais. O diálogo com a
crítica “pós-colonial” conduz o autor à tese de que, também na teoria dos
sistemas, é necessário reescrever a história do ocidente a partir das relações
e diferenças que o constituíram.
O
argumento principal é que é possível propor uma recepção da teoria da sociedade
mundial de Luhmann que corrija seus componentes eurocêntricos, permitindo
construir uma concepção não culturalista e não essencialista da América Latina.
Processos e estruturas da regionalização são considerados como variações
normais da modernidade global, e esta, por sua vez, enquanto dinâmica
societária diferenciada e não estacionária. Nesta recepção crítica da
sociologia de Luhmann, a construção da América Latina como regionalização
semântica e estrutural deixa de ser vista como desvio, sob o signo da falta, da
modernidade plena de outras regiões. A modernidade contemporânea não é
identificada com nenhuma região específica do planeta, embora se reconheça a
centralidade da Europa em sua emergência. Todas as regiões, assim como outras
configurações estruturais, se constroem a partir da modernidade global, na qual
estruturas neocoloniais se reproduzem, mas não constituem um sistema unitário
como nas relações coloniais do passado pré-moderno, e sim um conjunto de
relações centro/periferia fragmentadas pela lógica da diferenciação funcional
da sociedade. O unitarismo estrutural característico do colonialismo, com sua
relação entre “centro” e “periferia” válida em todas as dimensões, é rompido
pela diferenciação funcional, que impõe uma fragmentação da oposição
centro/periferia em múltiplas diferenças entre “centros” e “periferias” no
interior dos distintos sistemas funcionais.
Para
o autor, a diferenciação funcional não apenas fragmenta e rompe com o primado
da colonialidade; ela também produz o horizonte e as condições de possibilidade
de crítica e transformação semântica e estrutural das assimetrias entre povos,
Estados e nações. Ele identifica um deficit de autorreflexão no
pós-colonialismo, que pretende fazer uma crítica “externa” da
modernidade/colonialidade, como se o horizonte normativo de uma “humanidade
compartilhada”, que também orienta em última instância a crítica pós-colonial,
não dependesse de uma formação societária na qual a colonialidade não é a forma
primária, necessária e naturalizada de constituição de relações e unidades
sociais. O ponto central é que a diferenciação funcional da sociedade mundial
produz a contingência das estruturas de desigualdade social em toda as suas
formas: A referência ao ideal de que “somos todos humanos” é uma fonte
conhecida da semântica moderna da inclusão de todas as pessoas nos sistemas
funcionais de uma sociedade pós-tradicional e pós-colonial, na qual diferenças
ontológicas entre pessoas, grupos, povos, nações, classes, gêneros, etnias etc.
podem ser observadas como construções contingentes e arbitrárias passíveis de
transformação.