quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Eleições 2022 - Lula e a questão Alckmin - Luis Felipe Miguel

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Eleições 2022 - Lula e a questão Alckmin**



Luis Felipe Miguel***

O IPEC - antigo Ibope - mostra Lula lá na frente, ganhando folgado no primeiro turno. Está quase 30 pontos à frente de Bolsonaro. Moro, com carnaval da mídia e tudo, não chega a dois dígitos, acompanhado de perto por meio Ciro - isto é, aquele Ciro Gomes que parece condenado a fazer metade de sua votação anterior.

Para quem insiste no "antipetismo" como fator atuante na eleição presidencial, como ainda faz boa parte da mídia, está na hora de virar o disco. Lula não apenas é capaz de levar no primeiro turno como tem, também com folga, a menor taxa de rejeição entre os principais candidatos - menor até que a de nanicos como João Doria.
Os números também permitem recolocar a questão da vice. Os defensores mais argutos da chapa com Alckmin já deixaram de lado a questão do impacto eleitoral da composição. Assumem que, embora a presença de Alckmin não tire votos, já que o eleitorado do campo democrático não tem para onde correr, também não acrescenta.
A questão, dizem, é a garantia de "governabilidade" que o ex-governador acrescenta à chapa. E a questão é exatamente esta: governabilidade para quê?
Alckmin na vice é um indicativo poderoso de que Lula, novamente presidente, não afrontará os interesses dominantes no Brasil. Que aceitará os limites impostos, ainda maiores do que aqueles dos primeiros mandatos.
É a espada de Dâmocles pendente sobre a cabeça do novo governo, pronta a cair caso se dê um passo fora da linha.
Nós precisamos, porém, não de "governabilidade" em abstrato, mas de condições políticas para a transformação do país. Para mexer na política tributária, na política agrária, na mídia, militares, mercadores da fé.
Isso só se faz com ação para mudar a relação de forças, isto é, com mobilização e organização do campo popular.
Lula é um político de enorme competência, que sabe medir o pulso das conjunturas. Não adianta esperar que ele tome a iniciativa de adotar posições menos acomodatícias.
O necessário é fazer pressão.
Este foi o erro ao longo dos governos petistas - boa parte dos movimentos abriu mão de fazer pressão, julgando que seu papel era apenas defender os companheiros no poder. Mas as classes dominantes nunca param de fazer pressão, com todos os muitos meios de que dispõem.
Se a pressão vem de um lado só, é natural que obtenha êxito e empurre o governo para o conservadorismo.
Infelizmente, a postura de muitos diante da questão da vice - abster-se de tomar posição, aceitar qualquer decisão - mostra que, uma vez mais, o risco é de um governo sempre na defensiva, condenado a fazer muito pouco e sob ameaça permanente.

* James Rougeron -"Fighting Man" - 1818. Disponível em: https://www.mutualart.com/Artwork/Fighting-Men/0D93A954FA51F127, acesso em 16 de dezembro de 2021.

** Publicado originalmente no perfil do Facebook do prof. Luis Felipe no dia 15 de dezembro de 2021. Reproduzimos aqui com a autorização do autor.

** Professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). É autor de  "Democracia e representação: territórios em disputa" (Editora Unesp, 2014), "Dominação e resistência" (Boitempo, 2018), dentre outros. Está lançando neste final de 2021 "Democracia como emancipação" junto de Gabriel Eduardo Vitúlio pela editora Zouk.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Labaxúrias Decantarábias: Porque esse episódio é um problema político

 Labaxúrias Decantarábias: Porque esse episódio é um problema político

Esther Alferino*


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Eis minha análise que ninguém pediu, mas vou fazer.

Dia desses vimos Micheque, a primeira-dama, falando em línguas estranhas e sapateando, em comemoração a nomeação de André Mendonça para o STF.

Virou chacota e ela disse que foi vítima de intolerância religiosa.
Em um país cristão podemos falar de deboche de manifestações extravagantes de fé cristã, mas não de intolerância religiosa contra esse grupo. Não existe nenhuma estrutura que desfavoreça esse grupo religioso ou a profissão de sua fé. Deboche é muito diferente de cristofobia.

Mas por que a esposa do presidente nessa cena é um problema político?

Porque desde a campanha, o marido dessa senhora e seus apoiadores falavam sobre um ministro "terrivelmente evangélico", um ministro que irá herdar questões centrais para o interesse de um grupo específico de pessoas, os evangélicos, e para a base governista. Vai passar pelas mãos dele, por exemplo, o caso dos perfis fakes do "gabinete de ódio" do presidente e seus filhos. Ele será o novo relator do caso dos incêndios na Amazônia e no Pantanal. Relator da omissão do senado em taxar grandes fortunas. E a primeira-dama, com sua oração extravagante, sabe exatamente como ele vai se posicionar sobre esses assuntos. Assim como ela sabe como ele vai se posicionar em relação a temas sérios sobre os direitos das pessoas LGBT, da questão das armas e do marco temporal das terras indígenas.
Andre Mendonça terá em mãos algumas das questões centrais para o governo do qual essa moça faz parte por casamento, por isso ela acredita que o deus dela é deus de promessas (pra mim ele é assim, com letras minúsculas, porque meu Deus não honra o mal) como ela menciona entre um labaxúria e outro, porque ela realmente acredita que tem, por direito divino, um país do jeito que ela deseja.

Rir e debochar das formas de culto alheias pode não ser exatamente bonito, mas essa moça nos dá, todos os dias, razões pra sentir ódio do que ela representa, e se nosso ódio vier em deboche, tudo bem. Espero sinceramente que ele se transforme em ação política, inclusive para aprender a dialogar com o povo do reteté, que em sua maioria está em sério aperto e pode abandonar essa base cristofascista em tempo.

* Mestre em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro

** Bloco de madeira do século XVII representando sonho supostamente premonitório de Frederico III da Saxônia. Dias após o sonho de Frederico III, o reformador Martinho Lutero teria apresentado suas 95 teses ao mundo. Ilustração disponível em: https://reboarts.wordpress.com/2016/10/31/fredick-iiis-dream, acesso em 10 de dez. de 2021.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Lançamento - O Dourado e a Piabanha: impressões sobre a pesca de um eco-historiador ativista - Arthur Soffiati

 Com grande satisfação que convidamos para o lançamento do livro “O Dourado e a Piabanha: impressões sobre a pesca de um eco-historiador ativista” de Arthur Soffiati. 

Nesta live de lançamento teremos uma conversa animada com o autor mediada por José Colaço, antropólogo e prefaciador do livro. Esta atividade imperdível será transmitida ao vivo pelo canal do Neanf/INCT-InEAC/UFF no You Tube.

O Neanf é Núcleo de Estudos Antropológicos do Norte Fluminense Neanf/INCT-InEAC/UFF coordenado pelo Prof. José Colaço (COC e PPGJS/UFF).




quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Lançamento - Funk para além da festa - Disputas simbólicas e práticas culturais no Rio de Janeiro - Luciane Silva

 Eis que Luciane Silva (UENF) apronta mais uma das suas. Ela está lançando, pela Ciclo Contínuo Editorial, o seu "Funk para além da festa - Disputas simbólicas e práticas culturais no Rio de Janeiro".




Reproduzindo uma síntese sobre o livro publicado no site da editora:

"O livro nos encoraja a apreender e questionar o baile 'além do baile', que é o cerne da abordagem da qual ele se origina. É por isso que não é, a rigor, uma etnografia do baile. O baile aparece aqui como uma situação cuja ocorrência se torna possível pela conjunção de elementos que vão além da música e da dança. À maneira da análise situacional da antropologia social britânica, Luciane nos convida a seguir e dissecar cada uma dessas dimensões que se juntam, são compostas ou se opõem para fazer o baile acontecer. Como um pano de fundo contra o qual se manifestam as batalhas, às vezes silenciadas, às vezes em choque de armas, que opõem a favela ao Estado, o batidão evoca aqueles 'tambores de aflição' ouvidos na Zâmbia por Victor Tuner, e cujo ritual marcava a angústia e revolta resultantes da presença colonial."

- Jean-François Véran - Professor adjunto de Antropologia na PPGSA do Instituto de Filoso a e Ciências Sociais da UFRJ


O lançamento pode ser adquirido no site da Ciclo Contínuo Editoral.


Aproveitando o ensejo, avisamos que neste 02/12, 19 hs, a Luciane fará live de lançamento do livro junto a ilustríssim@s convidad@s. O evento pode ser acompanhado no Youtube da editora.


Como eu mesmo já disse em outra ocasião: funkem-se!


quinta-feira, 25 de novembro de 2021

FLORESTAN FERNANDES: TRAJETÓRIA, MEMÓRIAS E DILEMAS DO BRASIL

 Mesa-Redonda sobre o livro "FLORESTAN FERNANDES: TRAJETÓRIA, MEMÓRIAS E DILEMAS DO BRASIL"

Data: 13/12/2021 –  Horário: 14 hs

Inscrições: https://forms.gle/eV72UaZeoCpeyH9T8

Com @s autor@s/organizador@s:

Eliane Veras - UFPE

Diogo Valença - UFRB

Aristeu Portela Jr. - UFRPE

Lucas Trindade – UFRN

Mediação: George Coutinho – UFF/ Debatedora: Adelia Miglievich – UFES

 

Organização:

Sociedade Brasileira Contemporânea: Cultura, Democracia e Pensamento Social – UFPE

NETIR - Núcleo de Estudos em Transculturação, Identidade e Reconhecimento – UFES

IMAGINA-SUL - Grupo de Estudos e Pesquisas da Imaginação e do Pensamento Político- Social no Sul do Mundo – UFF-Campos

Download gratuito no portal Marxismo 21 do livro "FLORESTAN FERNANDES: TRAJETÓRIA, MEMÓRIAS E DILEMAS DO BRASIL": https://marxismo21.org/florestan-fernandes-trajetoria-memorias-e-dilemas-no-brasil/




sexta-feira, 19 de novembro de 2021

O 20 de novembro é dia de festa e de luta!

Fonte: CUT.

O 20 de novembro é dia de festa e de luta! 

Milton Lahuerta*

O dia da "Consciência Negra" é um excelente motivo para lembrar não só da luta histórica do Povo Negro, mas principalmente para lembrar do Brasil! 

Já se disse que "se existe uma história do Povo Negro sem o Brasil, não existe uma história do Brasil sem o Povo Negro" e essa é uma verdade irrefutável! 

O nosso país foi construído, desde os primórdios da colonização, pela extrema violência exercida contra os povos originários e contra as várias etnias escravizadas na África, que para cá foram trazidas ao longo de mais de três séculos. Essa marca ninguém pode apagar de nossa história e nos atormenta negativamente até hoje!

Do mesmo modo, nessas condições malsãs, também foi se estruturando uma sociedade. Por baixo, amalgamando etnias e culturas numa síntese criativa, se estabeleceu um "povo novo", como gostava de dizer o grande Darcy Ribeiro, enriquecido ainda mais pela vinda de imigrantes pobres de todas as partes do mundo. Somos, portanto, um povo profundamente mestiço, que tem dentro de si a África, a Ásia e a Europa, e afirmar isso não significa, em nenhum sentido, deixar de reconhecer a profunda violência que nos marca desde sempre nem muito menos aceitar  a ideia de uma "democracia racial". Mas apenas reiterar que essa é uma dimensão que nos engrandece e que nos honra diante do mundo. 

Que a luta pela igualdade e contra todo tipo de discriminação continue a orientar os brasileiros que acreditam nesse país e reconhecem a presença negra como fundamental na formação do nosso povo!

E que sigamos com os ensinamentos do inspirado Gilberto Gil, ao proclamar que "a felicidade do negro é uma felicidade guerreira!" 

Ao que se poderia acrescentar que toda felicidade só pode ser uma felicidade guerreira!

Viva o Povo Negro, viva o Brasil mestiço, viva os brasileiros de todas etnias que contribuiram para formar o nosso povo!

Sociólogo. Doutor em Ciência Política (USP). Professor associado ao Departamento de Ciências Sociais (Área de Ciência Política) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus Araraquara.

sábado, 13 de novembro de 2021

Lançamento "Irracionalismo de conveniência" – Sérgio Silva + Prefácio



Eis que que Sérgio Silva, o polímata da Unirio, coloca mais uma das suas criações no mundo.

“Irracionalismo de conveniência: ensaio sobre a pós-verdade” nos chega pela editora curitibana Appris e sintetiza o conjunto de inquietações teóricas e politicas do autor. Sérgio não só revisita autores tão diferentes como Foucault ou Adorno. Bebe na fonte destes, penso que para ganhar fôlego e fúria, e os renova para decifrar os desafios destas inquietantes primeiras décadas do século XXI.

Para quem quiser ter um petisco do debate, recomendo o vídeo abaixo da conversa de Sérgio com o querido Fabrício Neves (Unb) sobre o trabalho recém-lançado:




Também abaixo socializo o prefácio que elaborei para este livro do Sérgio. Aos navegantes aviso que tive a honra de ter sido orientado por Sérgio em uma das minhas vidas na UENF. Hoje eu e ele podemos dizer que somos amigos na universidade e brothers de armas. Ou, para ser mais preciso, brothers nas artes das seis cordas.

Finalizo dizendo que igualmente muito me honrou o convite para escrever este prefácio. Sem dúvida minha contribuição não dá conta da complexidade e da sofisticação da proposta  corajosa de Sérgio. Mas, funciona como um convite para o leitor fazer o mergulho neste lançamento.

 Boa leitura!

 PS: O livro pode ser encontrado nas boas casas do ramo.. e, evidentemente, no site da editora Appris: https://www.editoraappris.com.br/


Das conveniências do irracionalismo - Prefácio de “O irracionalismo de conveniência: ensaio sobre a pós-verdade, fake News e a psicopolítica do fascismo digital” de Sérgio Pereira da Silva. Editora Appris, Curitiba, 2021

 

George Gomes Coutinho

 

A crise do setor financeiro e imobiliário em 2008 nos EUA. A conformação das novas e perversas dinâmicas do sistema internacional. A ascensão e previsível queda da Terceira Via inventada, recauchutada, testada e torpedeada por seu perfil conciliatório e pusilânime com as estruturas sociais brutais do mundo pós-fordista. A persistência da pauperização, da precarização do mundo do trabalho, das promessas não cumpridas e tampouco remotamente entregues no mundo do caráter corroído discutido por Richard Sennett[1] há tempos atrás. O suposto empresário de si, o “empreendedor” envolto em fantasias e auto-mistificações falsamente douradas, incensado a partir de nada, frustrado, oprimido, adoecendo sistematicamente e criando índices de sofrimento mental ainda não detectados em outros momentos históricos. A mônada com pés de barro.

Em meio a tudo isso há ainda a pandemia de Covid-19 enquanto escrevo que denunciou e segue denunciando em cores, áudios, movimento e índices as diferentes faces da desigualdade em todos os aspectos por todo globo terrestre.

Esta sociedade complexa, intrigante e com traços distópicos incomoda e pressiona por respostas. É com este momento, onde temos tudo e não temos nada diante de nós, que Sérgio Silva e seu trabalho se defrontam. Diria que autor e obra corajosamente se defrontam com mais uma das grandes crises modernas nadando de peito aberto em mar revolto. Mas, não obstante a humanidade já ter passado por momentos disruptivos e francamente vertiginosos, Sérgio e seu livro ressaltam menos o que há de cíclico em nossa conjuntura, o retorno da roda, e mais os elementos particularmente trágicos que singularizam o que vivemos.  Trata-se de um trabalho de diagnóstico do tempo presente.

Antes de prosseguir penso ser relevante fazer um paralelo com um autor que se apresenta como alma gêmea e, não obstante a sua ausência no trabalho de Sérgio, apresentou um opúsculo em 2009 que se coloca em comunicação tão íntima com a proposta deste livro que podemos dizer que ambos funcionam como vasos comunicantes. Falo do crítico cultural Mark Fisher (1968-2017) e seu Realismo Capitalista[2].

Sérgio Luiz Silva e Mark Fisher são teóricos críticos em estilo livre[3]. Fisher assinalava com alguma ironia, por vezes sarcasmo e muita indignação o cenário de terra arrasada do mundo pós-neoliberal, tudo isso em uma narrativa que vai da cultura erudita ao pop na velocidade da luz. O ocidente após Thatcher, Reagan, Consenso de Washington e afins não enveredou acriticamente somente em fórmulas austericidas que redundaram em índices assassinos de concentração de riqueza. Esta sociedade que vivemos hoje e que não nasceu ontem, sendo tudo engendrado nas últimas décadas na verdade, contaminou algo além da imaginação de editoralistas da mídia convencional, policy makers e agentes coletivos ou individuais do setor financeiro.  Fisher denunciava nada menos que subjetividade humana mutilada, decepada pela violência simbólica de slogans como “there´s no alternative” tal como triunfante já bradou o thatcherismo. Tanto se fez, tanto se repetiu que não há nada além de capitalismo (e desta modalidade específica de capitalismo), que o homem comum assim olhou diante de si um abismo que fornece um presente eternamente cinzento e bárbaro. Um Dia da Marmota sem final feliz.  E, como sabemos, no risco de flertar em demasia com o abismo o observador pode ser engolido confundindo-se simbioticamente com a escuridão.

Neste cenário em que o arbítrio se coloca como relação necessária e o interesse mal compreendido impõe uma ontologia postiça é que se apresentam os sintomas discutidos por Sérgio em nossa contemporaneidade. Pós-verdade, fake news, barbarização da opinião pública, autoritarismo, reedição do fascismo em versão atualizada 2.0 e necropolítica. Em meio a tudo isso um capitalismo mais do que anti-iluminista que se apresenta até mesmo com traços pós-humanos. Pulsão de morte em ritmo de videoclipe.

As consequências desta sociedade não redundaram somente em indivíduos dopados em um ciclo de consumo dia após dia de sujeitos aprisionados na maldição da obsolescência programada. O projeto é de uma sociedade de tiranos e narcisicamente orientada. Algo que a filosofia política há poucos séculos atrás chamaria simplesmente pelo nome de guerra de todos contra todos. Minha base humanista não vê a menor chance de isso render bons frutos. E não tem dado.

Desta franca deterioração situada além dos limites da opinião pública, que redundou na ressurgência dos projetos autoritários em diferentes graus e vitoriosos nos processos de concorrência eleitoral, é difícil não reconhecer que ambos os lados do espectro político contribuíram de maneira direta ou indireta. Nos governos no flanco esquerdo, para além de abraçarem sem maiores questionamentos o receituário fiscal, há aquela arrogância costumeira. Oras, aos campeões morais o sucesso é inevitável! No lado direito, compartilhando a mesma cartilha de políticas públicas fornecida pelo ultraliberalismo, a insuficiência de enfrentarem de maneira honesta seus próprios demônios. Entre progressistas e conservadores, em uníssimo, a falta de imaginação política e de compreensão das experiências do século XX e das demandas do século XXI. Neste ínterim, segue o mundo concreto desabando na cabeça de milhões de pessoas que não sonhavam e não imaginavam mais qualquer outro tipo de futuro. Eis o cenário onde grassa o chorume analisado neste trabalho.

Sérgio compreendeu o caráter multivariado das patologias do nosso tempo. Se armou com as armas de uma teoria crítica renovada que não abre mão da tradição do materialismo multidisciplinar. Desejo e necessidade são olhados com lupa em suas contradições, complementariedades e dinâmica. Teoria social, psicanálise, sociologia e epistemologia são ferramentas habilmente combinadas. Como se não bastasse ainda há Habermas, Foucault, Adorno, Elias, dentre outros, que são mobilizados criativamente em novas sínteses arriscadas e que, por vezes, podem fazer com que ortodoxos de diferentes matizes sintam certo desconforto. Mas, pouco importa. O objeto em sua complexidade se coloca em posição de prioridade analítica e as ousadias teóricas se justificam mais do que qualquer outra coisa. Importa é compreender em minúcias o inferno semiótico em que estamos.

O livro de Sérgio é critica e compreensão. Fornece um quadro interpretativo poderoso para compreendermos como a opinião pública se tornou o ringue de vale tudo que conhecemos. E há, também, em meio aos meandros argumentativos e analíticos que explicam o fascismo nosso de cada dia, espaço para uma esperança rebelde e sutilmente subversiva. A utopia de Sérgio envolve a aposta em uma terapêutica do diálogo como cura para a barbárie.  Uma atuação voltada interativamente para o entendimento, um uso da razão em uma plenitude expressiva muito além do embotamento coisificado fornecido pela sociedade dos cliques de curtir/descurtir. A utopia de Sérgio é pulsão de vida. É interesse bem compreendido embebido do que há de melhor na tradição iluminista com a qual Sérgio se agarra angustiado.

Por fim, tal como o título denuncia, temos sim um Irracionalismo de conveniência cinicamente mobilizado como resposta aos afetos, frustrações e desalentos do horizonte árido dado pelo realismo capitalista. Mas, o trabalho do Sérgio apresenta, na verdade, todas as inconveniências deste irracionalismo. O preço a ser pago pelo uso de tal playbook pode ser alto demais, insuportável eu diria. A questão é que temos tempo ainda de evitarmos um ponto de não retorno. E este livro dá, nas brechas, algumas possibilidades enquanto nos explica o funcionamento da hidra.

 

Campos dos Goytacazes, 13 de maio de 2021.

 

Referências

BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1989.

FISHER, Mark. Capitalism realism: is there no alternative? London: Zero Books, 2009.

HOLLERAN, Max. Marshall Berman´s freestyle marxismo. In: New Republic. New York City, New Republic, n. 14, abr. 2017.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo: Rio de Janeiro: Record, 1999.



[1] SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.

[2] A edição brasileira foi publicada pela Autonomia Literária em 2020.

[3] Devo esta expressão a Max Holleran em artigo publicado no ano de 2017 na revista New Republic. Holleran definiu o não menos inventivo Marshall Berman como praticante de um marxismo em estilo livre (freestyle marxism). Penso que o termo aqui se adeque como mão e luva.

Viva a universidade, viva a inteligência, viva a vida!

 

Fonte: UNESP.

Nosso querido amigo e professor Milton Lahuerta (UNESP-Araraquara) nos autoriza, gentilmente, a publicar esta bela reflexão sobre a Universidade como lugar de crítica do poder e de liberdade de pensamento. Boa leitura! 

Viva a universidade, viva a inteligência, viva a vida! 

Milton Lahuerta*

Diante dos ataques à universidade e à inteligência, e do culto da morte que se está naturalizando em nosso país, vale lembrar de um episódio ocorrido num outro momento de trevas na história do Ocidente.

No contexto de polarização fratricida que levou à eclosão da Guerra Civil Espanhola,   empolgado com as sucessivas vitórias das forças fascistas e em resposta ao discurso feito por Miguel de Unamuno, o general franquista José Millán Astray, em 12 de outubro de 1936, na cerimônia de abertura do ano letivo na Universidade de Salamanca, proferiu uma série de disparates em defesa da brutalidade, entre eles: "Morram os intelectuais! Viva a morte!"

Ao se defrontar com tamanha ignomínia, Miguel de Unamuno (1864-1936), intelectual e pensador liberal conservador com grande prestígio na Espanha, dirigindo-se a Astray, não conteve a indignação e explicitou a dramaticidade que marcou a cerimônia:

"Acabo de oír el grito de ¡viva la muerte! Esto suena lo mismo que ¡muera la vida! Y yo, que me he pasado toda mi vida creando paradojas que enojaban a los que no las comprendían, he de decirlos como autoridad en la materia que esa paradoja me parece ridícula y repelente. De forma excesiva y tortuosa ha sido proclamada en homenaje al último orador, como testimonio de que él mismo es un símbolo de la muerte. El general Millán Astray es un inválido de guerra. No es preciso decirlo en un tono más bajo. También lo fue Cervantes. Pero los extremos no se tocan ni nos sirven de norma. Por desgracia hoy tenemos demasiados inválidos en España y pronto habrá más si Dios no nos ayuda. Me duele pensar que el general Millán Astray pueda dictar las normas de psicología a las masas. Un inválido que carezca de la grandeza espiritual de Cervantes se sentirá aliviado al ver cómo aumentan los mutilados a su alrededor. El general Millán Astray no es un espíritu selecto: quiere crear una España nueva, a su propia imagen. Por ello lo que desea es ver una España mutilada, como ha dado a entender.

Este es el templo del intelecto y yo soy su supremo sacerdote. Vosotros estáis profanando su recinto sagrado. Diga lo que diga el proverbio, yo siempre he sido profeta en mi propio país. Venceréis, pero no convenceréis. Venceréis porque tenéis sobrada fuerza bruta, pero no convenceréis porque convencer significa persuadir. Y para persuadir necesitáis algo que los falta en esta lucha, razón y derecho. Me parece inútil pedirlos que penséis en España."

Viva a universidade, viva a inteligência, viva a vida!

* Sociólogo. Doutor em Ciência Política (USP). Professor associado ao Departamento de Ciências Sociais (Área de Ciência Política) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus Araraquara.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Divulgação: Cine Darcy - 08/11 - 19 hs - "Meu bairro, Minha língua"

 O Cine Darcy apresenta nossa próxima sessão, a exibição e debate da série: Meu bairro, Minha língua, idealizado por Vinícius Terra.




Na segunda-feira, dia 08 de novembro, às 19:00 será realizada a transmissão, pelos canais YouTube e Facebook do Cine Darcy, do primeiro episódio da websérie Meu Bairro, Minha Língua, cujo tema central é o sentido da lusofonia na construção dos territórios de língua portuguesa. Após a exibição, haverá o debate com a presença do idealizador do audiovisual, o rapper Vinícius Terra e os convidados Mila Schiavo, produtora musical e musicista, Yuri Costa, cientista social. 

Mediação: Elis Miranda: Professora UFF

Sinopse:

“Descolonizar o idioma, conectar pessoas; ‘Meu Bairro, Minha Língua {...}’ é a redescoberta de nossas raízes, heranças culturais e relações históricas, por intermédio da música, a partir da aproximação de artistas da língua portuguesa.
Os bairros da língua portuguesa são o foco de percepção das mudanças no idioma e como cada artista local compreende e percebe a questão linguística e ao mesmo tempo a memória afetiva de seu bairro de origem em suas criações.

‘Meu Bairro, Minha Língua {...}’ nos dá, por intermédio da história de cada artista (suas cores, vozes, nações e origens), a oportunidade de mostrar uma língua democrática, descentralizada, descolonizada e cada vez mais alinhada ao nosso tempo.” ( Retirado do canal no YouTube do Vinícius Terra)
 
Acompanhem nossas redes sociais para saberem mais informações da sessão nos próximos dias.

Facebook: https://www.facebook.com/cinedarcyuenf

Instagram: https://www.instagram.com/cinedarcyuenf/

YouTube: https://www.youtube.com/c/CineDarcyUENF


quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Mistura explosiva: endividamento, fome e o “novo” Bolsa Família

 

Fonte: BBC.

Mistura explosiva: endividamento, fome e o “novo” Bolsa Família*

 

* Publicado originalmente no Blog do Pedlowski.

 

Luciane Soares da Silva**

 

Desde o início da pandemia em fevereiro de 2020, no Brasil, assistimos a um processo de deterioração das condições gerais de vida da população em todas as cidades. A visibilidade desta deterioração estava no aumento do número de famílias vivendo nas ruas, nas filas de emprego, na impossibilidade de cumprimento do isolamento social nas favelas. Vimos de perto formas de improvisação dos governos municipais, de negação do governo federal e de autoritarismo de governos estaduais que tentaram forçar seus servidores ao retorno presencial em mais de uma ocasião.  Um elemento comum deve ser destacado ao longo de toda a pandemia: a capacidade de organização da sociedade civil nos processos de resistência e fraternidade política. Nas favelas, foi mais comum que funcionassem ações coletivas para alimentação e medidas sanitárias do que ação efetiva das Prefeituras. Sindicatos da educação, da justiça e categorias organizadas rechaçaram as investidas de retorno ao trabalho de forma atabalhoada e colocando vidas em risco. Cidadãos comuns reuniram forças e organizaram entregas sistemáticas de alimento  à centenas de famílias em situação de pobreza e extrema pobreza. Movimentos de produção rural e  pequenos agricultores doaram toneladas de alimentos à população.

Os meses passaram, as mortes por COVID-19 aumentaram e passamos a lidar com duas frentes de problemas: uma crise sanitária e outra humanitária. Os auxílios recebidos não foram suficientes para enfrentar a insegurança alimentar que já estava na mesa dos brasileiros. Principalmente mulheres que chefiam famílias e vivem de trabalho informal. Principal grupo a perder suas fontes de renda com a pandemia. Não havia mais como vender alimentos em festas, realizar diárias, ocupar-se de trabalhos estéticos e uma infinidade de ocupações que dependem de um mercado de alimentação, lazer, turismo, serviços em geral.

Chegamos ao fim de 2021 com o fechamento natural deste quadro: o acirramento da pobreza. Na Portelinha, comunidade localizada em Campos dos Goytacazes, é certo arriscar que mais de 50% das famílias vive quadro de desemprego e insegurança alimentar. Para além disto, é possível supor que esta realidade pode ser amplificada para a cidade e capitais.  São milhões de desempregados e as cenas de pessoas revirando o lixo não produz qualquer efeito sobre o governo federal. Temos a comprovação de que o ministro da economia tem lucrado como nunca ao longo dos meses recentes. E é certo dizer que ele odeia pobres.

Que temos um presidente genocida, não é preciso repetir. Temos uma tarefa pela frente no dia 15 de novembro. E a considerar a gravidade do quadro de fome e desemprego no país, esta tarefa não é fácil. Será necessário reafirmar as bandeiras que foram levantadas ao longo destes dois anos. Sobre a importância do funcionalismo, do SUS, da Universidade, da Ciência. Será necessário denunciar os crimes ambientais cometidos pelo governo Bolsonaro e seus apoiadores. Mas talvez seja igualmente necessário fazer o diálogo com aqueles que neste momento estão revirando todo e qualquer lugar no qual possam encontrar alimento.  A experiência da fome é limítrofe pois estabelece para quem a vive, uma condição de não humanidade. Em um cenário de desigualdade no qual vemos estas diferenças de forma ampliada, será preciso quebrar algumas paredes e direcionar energia ao contato com periferias, zonas rurais, população em situação de rua e outros territórios em vulnerabilidade.

Com a chegada do Natal, dos embrulhos, perus, luzes, férias, viagens, todos este quadro parecerá ainda mais distópico. Com a segunda dose no braço, famílias planejam realizar encontros interrompidos. Quando as festas acabarem estaremos de frente para uma eleição. O candidato Bolsonaro pretende levantar sua popularidade com um novo auxílio. O Programa Auxílio Brasil pretende substituir o Bolsa Família. Além de ainda não ter uma clara dotação orçamentária, o programa institui penduricalhos meritocráticos. Existem pontos questionáveis sobre a relação entre creches e rede privada, uma vez que os municípios ficarão fora desta intermediação[1], bagunçando relações que podem ser melhor administradas a partir da esfera municipal. Das muitas mudanças cujo objetivo parece ser “incentivar” crianças, jovens e adultos a produzir melhor, a mais assustadora é certamente a que propõe consignar o auxílio. Exatamente: um incentivo ao micro empreendedorismo de pessoas em condição de extrema pobreza. Neste texto não será possível detalhar as implicações e fragilidades contidas na proposta. Mas vale a pena citar o conteúdo original da Medida Provisória 1.061 de 9 agosto de 2021 que institui o Programa Auxílio Brasil e o Programa Alimenta Brasil[2]:

Da consignação

Art. 23. Os beneficiários de programas federais de assistência social ou de transferência de renda poderão autorizar a União a proceder aos descontos em seu benefício, de forma irrevogável e irretratável, em favor de instituição financeira que opere modalidade de microcrédito, para fins de amortização de valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos e financiamentos, até o limite de trinta por cento do valor do benefício, nos termos do regulamento.

Supondo que o auxílio seja suficiente para cobrir o valor atual de uma cesta básica em São Paulo, o que o governo pretende ao instituir um “consignado” sobre valores que mal possibilitam a alimentação de uma família?

Sabemos que há um risco real de que este auxílio reabilite Bolsonaro entre os mais pobres. Isto porque a economia não crescerá em 2022 no ritmo necessário para sanar a precariedade vivida por estas famílias. E possivelmente ele usará este instrumento para percorrer o Brasil em sua campanha. O Bolsa Família sempre foi o coração das administrações petistas. Não são poucas as críticas feitas ao programa, não são poucos os defensores do programa. O certo é que vivemos uma inflação galopante que inviabiliza qualquer recuperação da mínima dignidade da população em situação de extrema pobreza. A linha entre os remediados e os miseráveis vão perdendo seus contornos. É certo que alguém colhe estes dividendos. Economicamente. Politicamente.

Nosso desafio neste dia 15 de novembro é manter o diálogo com a população, evitando que um genocida assuma o poder por mais quatro anos a partir da  consignação da miséria alheia.

[1] https://piaui.folha.uol.com.br/o-que-muda-no-novo-bolsa-familia/

[2] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.061-de-9-de-agosto-de-2021-337251007

 

** Socióloga. Professora da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Chefe do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (LESCE). Diretora da Associação de Docentes da UENF (ADUENF).

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Bolsonaro e a teologia brasileira do poder autoritário



[Pessoal] 

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Espero que estejam bem. Escrevo para indicar que semana que vem estarei em um diálogo sobre “Bolsonaro e a teologia brasileira do poder autoritário”, na próxima sexta-feira às 19h, com o pessoal do Instituto Humanitas de Estudos Integrados e o grupo de pesquisa Mythos-Logos da UFRN. 

Quem puder está junto será um prazer.

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[Abraços] 

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

O fim dos partidos militantes

 

Fonte: Justificando.

O fim dos partidos militantes*

* Publicado originalmente no Jornal GGN.

Aldo Fornazieri

A queda do muro de Berlin e o colapso da União Soviética podem ser definidos, reunidos num mesmo evento, como o marco que sacramenta o início do fim dos partidos militantes e, a rigor, dos partidos de massa. Não é a causa única, evidentemente, mas é o marco histórico. A transformação das sociedades industriais, que agregavam a aglomeração de grandes números de trabalhadores em fábricas e conformavam a existência de poderosos sindicatos, em sociedades tecnológicas que dispersam os trabalhadores em ilhas menores e em serviços, certamente é um dos fatores importantes para o declínio dos partidos militantes e de massa, principalmente os de esquerda e socialdemocratas.

Existem também fatores de ordem ideológica. Com a queda e o fim da URSS chegou-se também ao fim da luta sistêmica – o fim da luta que opunha dois sistemas de forma universal, econômica, política, social e ideologicamente: o capitalismo e o comunismo. Um sistema venceu. Nem Cuba e nem a Coréia do Norte são oposições sistêmicas ao capitalismo. A China é um modelo misto. Com isso, os partidos de esquerda, em praticamente todo o mundo, passaram a integrar e operar no sistema capitalista. Vejam-se os partidos da esquerda brasileira: o paradigma programático principal de suas lutas não é o socialismo.

No auge da sociedade industrial, que coincidiu mais ou menos com o período da Guerra Fria, os partidos precisavam ter poderosas organizações partidárias vinculadas a setores sociais definidos, a quem representavam, para serem competitivos eleitoralmente e para terem capacidade de interferir nas esferas do Estado, visando viabilizar políticas públicas e direitos em favor de seus representados. As próprias distinções ideológicas e programáticas eram mais definidas e demarcadas.

Com o novo quadro que se institui no final do século XX e nessas duas décadas do século XXI, surgem novas características: há uma maior diluição das diferenças ideológicas e programáticas, alianças mais amplas e plurais se constituem para dar apoio a governos, os partidos reduzem suas estruturas organizacionais em termos de militância organizada, há um esvaziamento da dinâmica sindicato-parido, as lutas por direitos sociais e trabalhistas (base do Estado de Bem-estar) cede espaço para pautas identitárias e políticas de moralidade.

Enfim, como nota Piter Mair, a militância, as mobilizações e os comícios perdem importância (tendência reforçada pela internet), os partidos se afastam dos cidadãos e das bases sociais e suas organizações se tornam mais enxutas e burocratizadas. A rigor, os partidos se afastam da sociedade e fluem para o Estado. Tornam-se partidos-Estado, expressões do Estado e dos governos.

Os partidos se tornam máquinas do poder, cuja relação com a sociedade não se define mais pela organização, pela representação social especifica, pela militância, mas por uma relação meramente eleitoral. Esta relação se define cada vez menos pelos preceitos de uma hegemonia estável e mais pelas circunstâncias do momento. Exemplo disso é a flutuação de votos, por exemplo, entre Lula e Bolsonaro.

A dependência dos partidos ao Estado e às estruturas do governo ocorre em várias democracias. No Brasil, essa dependência é bastante acentuada: os partidos dependem dos fundos eleitorais e partidários, do sistema de mandatos, cargos e privilégios. Os partidos, incluindo os de esquerda, fundem seus sistemas de interesses mais com os interesses do Estado e dos governos do que com os interesses da sociedade.

São poucos os parlamentares, tanto no Brasil quanto em outros países, que fazem uma crítica contundente ao sistema de privilégios agregados no setor público, ao sequestro dos recursos públicos para esse setor e à sistemática incapacidade do poder público de resolver problemas cruciais da economia, da sociedade, da perda de direitos etc.

Os eleitos, os parlamentares, seus assessores fazem parte de uma elite pública que vive de cargos e privilégios estatais. A CPI da Covid revelou não apenas uma criminosa estrutura inoperante e operante do Estado e do governo contra a sociedade, mas também uma igualmente criminosa omissão dos parlamentares que não fiscalizaram, não denunciaram, não fizeram averiguações in loco, deixando o povo no seu próprio abandono.

Os partidos estão em crise? Vários analistas optam por responder esta pergunta de forma ambígua. Por um lado, enquanto estruturas partidárias organizadas da sociedade, de fato, os partidos estão se enfraquecendo. Mas enquanto máquinas de poder insuladas no Estado, que controlam mandatos, cargos, privilégios e verbas públicas, os partidos estão se fortalecendo.

Um dos aspectos que fortalece os partidos enquanto máquinas de poder do Estado diz respeito à perda de relevância das mobilizações populares. No passado, em grande medida, essas mobilizações eram convocadas e lideradas pelos partidos. Recentemente, os partidos são coadjuvantes dessas mobilizações. Essas são convocadas a partir de eventos casuais, a exemplo do assassinato de George Floyd, ou a eventos circunstanciais, a exemplo do Fora Bolsonaro e outros tipos de lutas políticas e pautas pontuais. Mas o fato é que as mobilizações têm pouco impacto resolutivo sobre os rumos das políticas estatais e as decisões parlamentares. Isto confere um conforto aos partidos no sentido de que os seus próprios interesses são o centro de suas decisões.

O que se tem, então, é uma crise da relação dos partidos com a sociedade. E esta é a crise da democracia, o agravamento da crise da representação, a crise da democracia como democracia de partidos. As consequências dessa crise são várias. Alguns analistas chamam a atenção para uma crescente despolitização, tanto dos políticos e dos partidos, quanto da sociedade. O linguajar tecnicista e administrativista domina cada vez mais nas conversas dos políticos. Este é um largo caminho para a inoperância e a incompetência. Em política, as soluções precisam ser políticas. A técnica e a administração devem ser auxiliares da política. Mas os partidos e os políticos inverteram essa equação.

O afastamento dos partidos da sociedade produz uma inevitável despolitização, desorganização e perda de qualidade cívica da mesma. Isto abre as portas para uma crescente influência de grupos religiosos, fragmentação de pautas, fake News e pós-verdades, visões obscurantistas e anticiência, teorias conspiratórias etc.

Sempre existirão políticos oportunistas prontos para abraçar essas pautas para encurtar seus caminhos para o poder. As novas ondas de extrema-direita se aninham nesse ambiente de despolitização e desorganização social. Capturam massas amorfas, mergulhadas em sua própria solidão. Este é o maior custo a ser pago pela transformação dos partidos democráticos e de esquerda de partidos da sociedade em partidos do Estado. O risco é alto: o do definhamento das democracias.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Por uma teoria sociológica sistêmica e pós-colonial da América Latina


Por uma teoria sociológica sistêmica e pós-colonial da América Latina* 

* Publicado originalmente em Scielo.br 

O estudo “Por uma Sociologia Sistêmica Pós-Colonial da América Latina” propõe uma teoria sociológica sistêmica pós-colonial para analisar a América Latina enquanto região da sociedade mundial moderna. O autor toma a teoria da sociedade de Niklas Luhmann como ponto de partida para este esforço de construção teórica, que consiste em combinar a análise da unidade da sociedade mundial com a consideração das diferenças e variedades regionais construídas em seu interior. Para alcançar este objetivo o estudo identifica e propõe solução para um problema fundamental na teoria da diferenciação funcional da sociedade formulada por Luhmann: Sua descrição da transição à sociedade moderna enxerga somente um processo de diferenciação funcional singular e interno à Europa, desconsiderando, como os pós-coloniais costumam dizer, o papel da “diferença colonial” na constituição da transição para a modernidade. Para compreender a globalidade das diferenças regionais, a teoria dos sistemas precisa não apenas investir em estudos sobre a globalização dos sistemas funcionais a partir do século XIX, tendo a Europa como o núcleo difusor dos processos sociais globais, mas sobretudo questionar e revisar sua descrição da própria transição para a sociedade moderna, realizando uma profunda autocrítica.

Por isso, o autor propõe rever a tese da transição à sociedade mundial funcionalmente diferenciada a fim de escapar da narrativa da singularidade ocidental, segundo a qual outras regiões recebem, sempre de fora para dentro, estruturas sociais e semânticas gestadas primeiramente na Europa. A ideia é recontar a história da modernidade, substituindo a narrativa única de uma diferenciação funcional desenvolvida inicialmente no interior da Europa e depois expandida para o resto do mundo por narrativas plurais sobre a experiência de cada contexto “geo-histórico” como parte do desenvolvimento “entrelaçado” e “múltiplo” de sistemas funcionais globais. O diálogo com a crítica “pós-colonial” conduz o autor à tese de que, também na teoria dos sistemas, é necessário reescrever a história do ocidente a partir das relações e diferenças que o constituíram.

O argumento principal é que é possível propor uma recepção da teoria da sociedade mundial de Luhmann que corrija seus componentes eurocêntricos, permitindo construir uma concepção não culturalista e não essencialista da América Latina. Processos e estruturas da regionalização são considerados como variações normais da modernidade global, e esta, por sua vez, enquanto dinâmica societária diferenciada e não estacionária. Nesta recepção crítica da sociologia de Luhmann, a construção da América Latina como regionalização semântica e estrutural deixa de ser vista como desvio, sob o signo da falta, da modernidade plena de outras regiões. A modernidade contemporânea não é identificada com nenhuma região específica do planeta, embora se reconheça a centralidade da Europa em sua emergência. Todas as regiões, assim como outras configurações estruturais, se constroem a partir da modernidade global, na qual estruturas neocoloniais se reproduzem, mas não constituem um sistema unitário como nas relações coloniais do passado pré-moderno, e sim um conjunto de relações centro/periferia fragmentadas pela lógica da diferenciação funcional da sociedade. O unitarismo estrutural característico do colonialismo, com sua relação entre “centro” e “periferia” válida em todas as dimensões, é rompido pela diferenciação funcional, que impõe uma fragmentação da oposição centro/periferia em múltiplas diferenças entre “centros” e “periferias” no interior dos distintos sistemas funcionais.

Para o autor, a diferenciação funcional não apenas fragmenta e rompe com o primado da colonialidade; ela também produz o horizonte e as condições de possibilidade de crítica e transformação semântica e estrutural das assimetrias entre povos, Estados e nações. Ele identifica um deficit de autorreflexão no pós-colonialismo, que pretende fazer uma crítica “externa” da modernidade/colonialidade, como se o horizonte normativo de uma “humanidade compartilhada”, que também orienta em última instância a crítica pós-colonial, não dependesse de uma formação societária na qual a colonialidade não é a forma primária, necessária e naturalizada de constituição de relações e unidades sociais. O ponto central é que a diferenciação funcional da sociedade mundial produz a contingência das estruturas de desigualdade social em toda as suas formas: A referência ao ideal de que “somos todos humanos” é uma fonte conhecida da semântica moderna da inclusão de todas as pessoas nos sistemas funcionais  de uma sociedade pós-tradicional e pós-colonial, na qual diferenças ontológicas entre pessoas, grupos, povos, nações, classes, gêneros, etnias etc. podem ser observadas como construções contingentes e arbitrárias passíveis de transformação.

Para ler o artigo, acesse:

DUTRA, R. Por uma Sociologia Sistêmica Pós-Colonial da América Latina. Dados [online]. 2021, vol.64, no.01 [viewed 28 September 2021]. https://doi.org/10.1590/dados.2021.64.1.229. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582021000100206&lng=en&nrm=iso

Links externos:

Dados – Revista de Ciências Sociais – DADOS: www.scielo.br/dados

Página Institucional do Periódico: http://dados.iesp.uerj.br/