Por Jefferson Nascimento*
(Foto: Shutterstock)
Hoje, 02 de
julho, uma das manchetes em destaque no portal Globo.com recebeu o título “Com
intensa agenda internacional, Lula recupera espaço do país na política externa,
mas patina sobre a guerra na Ucrânia, avaliam especialistas”[i].
Essa matéria não é isolada, chama a atenção o ativismo da imprensa nacional em
relação ao conflito na Ucrânia com um viés convergente com
a posição dos Estados Unidos. Ao ler a matéria, qual não é a surpresa: apenas um
dos especialistas falou sobre a guerra, o ex-diplomata Paulo Roberto de Almeida,
que se tornou diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri)
no governo Temer e foi exonerado no governo Bolsonaro. Almeida, em entrevista ao canal MyNews
em 2021, comentou a demissão de Ernesto Araújo e justificou o anonimato dos diplomatas
na carta de repúdio à Araújo pelo risco de represálias que atrapalhariam a carreira no Itamaraty, ilustrando com exemplos pessoais: teria sido censurado em “governos
tucanos” e colocado nas “escadas e corredores nos tempos lulo-petistas”. O mesmo
diplomata, apesar de ter sido demitido na gestão Bolsonaro e ter se tornado crítico à Ernesto Araújo e Olavo de Carvalho, participou de eventos do Brasil Paralelo,
como o Webinário 2018 Brasil e é autor do livro O Homem que pensou o
Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos[ii].
Como se vê, uma escolha a dedo para manter o viés pró-Estados Unidos. O
ex-diplomata faz afirmações como: “O que Lula está fazendo é absolutamente
inócuo, ninguém apoiou esse clube da paz [...]” e “A gente vê o
antiamericanismo da velha esquerda [...]”. Pela volta do tema à tona, resgato
um texto de minha autoria publicado no Jornal A Vanguarda. O texto resgata fatos e reflete sobre causas do conflito, saindo desse simplismo de
forjar um único agressor para encaixar na máxima reverberada por Almeida de que “quando
você tem um agressor, o dever de todos os estados membros é vir em socorro e
apoio à parte agredida”.[iii]
Segue o texto.
Uma
polêmica tomou conta dos noticiários: a posição de Lula em afirmar que a Rússia
não era a única responsável pelo conflito. O foco foi a frase: “Decisão da
guerra foi tomada por dois países”. Não pretendo defender Lula. Meu ponto é
direto: problematizar a militância da imprensa na posição pró-EUA omitindo
fatos e acontecimentos indispensáveis para compreensão do conflito. O ápice foi
um veículo de comunicação dar status de escândalo a uma fake news
iniciada por um secretário do governo estadual paulista afirmando que a estatal
ucraniana Antonov, mesmo em crise financeira, faria investimentos de US$ 50
bilhões no estado de São Paulo, cancelados após a posição de Lula sobre a
guerra. A empresa desmentiu e negou ter representantes no Brasil. A emissora se
defendeu dizendo que era necessário “apurar”, pois “a reunião existiu”. Ora,
não sei o que é mais grave: um secretário de governo mentir ou ser incapaz de
checar com uma empresa a identidade de seus representantes. Sobre a reincidente
emissora, não é preciso novos comentários.
Essa
militância obstinada nega fatos que ultrapassam e antecedem qualquer fala de
Lula ou posição do Ministério das Relações Exteriores. Sendo direto: afirmar que EUA e União Europeia, por meio da OTAN, e
a Ucrânia têm parcela de responsabilidade na guerra não retira a
responsabilidade russa e nem torna Putin um herói. Diferente de filmes e
novelas, a realidade é multifacetada.
Esse adendo fiz em fevereiro de 2022 no texto “Rússia,
Ucrânia e OTAN: a história sempre importa”[iv].
O texto sintetiza fatos públicos não sendo um “furo”. Na apresentação afirmei: “Elencar os fatos
recentes decisivos para esse conflito não é o mesmo que identificar um
‘mocinho’ nesse trágico evento” e concluí:
[...] ainda
que o imperialismo russo mova Putin a reconhecer a soberania das províncias
rebeldes pró-Rússia e a avançar militarmente sobre o vizinho, não se pode
ocultar que o outro imperialismo avançou militarmente ali e progride em todo
mundo, seja pela força das armas ou pela desestabilização interna de países
considerados estratégicos. A condenação à invasão russa na Ucrânia não pode ser
feita sem considerar a ação da outra potência que, vez ou outra, culmina num
humorista ou num boçal submisso na presidência dessas áreas de interesse.
Veja que depois de fevereiro de 2022 sanções, envios de armas e
outras ações envolveram ainda mais a OTAN, EUA e a UE. A Primeira Guerra
Mundial já mostrou que não se resolve um conflito complexo escolhendo bodes
expiatórios. Ademais, a reunião com o ministro russo
Sergey Lavrov terminou com o Brasil defendendo o fim imediato da guerra e a
Rússia pedindo um acordo que "resolva de forma duradoura o conflito".
Posições diferentes, não é?
É preciso reconhecer que a polêmica é
facilitada pela comunicação catastrófica do governo brasileiro. Em diversos
momentos, Lula e os ministros falam sem uma articulação com a equipe de
comunicação caindo em armadilhas, muitas vezes, por falta de clareza e
objetividade.
No entanto, a posição dura dos EUA não é
gratuita. Desde a Lava Jato, o Brasil foi colocado novamente numa posição
frágil submisso aos interesses de Washington. A posição de Biden em reconhecer
Lula desde o primeiro momento também não viria de graça. Cabe ao Brasil
comunicar melhor suas posições. O chanceler Mauro Vieira faz, Lula insiste em
falar dentro e fora do país como se estivesse em 2003.
A conjuntura mudou e vários países
passaram por desestabilização política desde fora, sob formas diversas de
golpes (lawfare, revoluções coloridas, revoltas supostamente populares e
outros) e em seus lugares governos alinhados aos interesses estadunidenses,
destacados pela fragilidade ou autoritarismo, tocaram um processo antipolítico,
antipovo, antinacional sob a aparência da representatividade exaltada na
democracia liberal. Prática que deu notoriedade a figuras reles como Juán
Guaidó na Venezuela e influenciou manifestações até em Cuba em 2021. Retomo
outra passagem de 2022:
Zelensky também negociou com Trump quando
o ex-presidente dos EUA queria a investigação de Hunter Biden e sua empresa
Burisma, sediada na Ucrânia. A investigação ganhou oposição do Conselho de
Segurança Nacional dos Estados Unidos. Segunda consta, Alexander Vindman,
membro do conselho especialista em Ucrânia, teria alertado para o risco de a
investigação ser considerada “jogada partidária”. Vindman justificou “Sou
patriota, é meu dever sagrado e minha honra defender o país”.
É isso mesmo: um membro do Conselho de
Segurança, nomeado por Trump, não considerou adequada essa investigação para
“defender o país”. Afinal, de Obama à Trump, passando por McCain e Biden, a
Ucrânia é um projeto de Estado e o apoio dos Estados Unidos à chamada Revolução
Maidan não é um empenho no combate à corrupção e muito menos uma ode à
soberania nacional. O ano era 2014 e esse apoio não estava fora do contexto
da Primavera Árabe e nem das think tanks que se projetaram no Brasil durante e
após as Jornadas de Julho.
Após
a desestabilização política, o roteiro incluiu líderes que desacreditassem as
chamadas instituições democráticas e as colocasse à serviço do entreguismo e do
ataque ao povo e seus direitos – Zelensky, Bolsonaro e projetos malsucedidos
como Guaidó e Sérgio Moro se encontram nesse pastelão. A degeneração do caráter
representativo para uma explícita concertação para o lobby de interesses
alheios aos populares têm sido o mote desde a Primavera Árabe. É nesse contexto e desse lugar que a imprensa
brasileira faz essa celeuma sobre declarações que destaquem o caráter
multifacetado da guerra em vez de uma farsa hollywoodiana com vilões e
mocinhos.
* Jefferson Nascimento é Doutor em Ciência Política, Professor do IFSP - Campus Sertãozinho, membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA).
[ii]
Roberto Campos, que era apelidado de Bob Fields pelo seu norteamericanismo, foi se alinhando ao neoliberalismo ao longo dos anos
1970 e 1980, inclusive defendendo entusiasticamente as políticas de Margareth
Thatcher. O livro de Almeida é uma ode a
Campos, que foi ministro do Planejamento na gestão Castelo Branco, durante a
Ditadura Militar, e cujo neto é o atual presidente do Banco Central, nomeado na
gestão Bolsonaro. O próprio Almeida ingressou no Itamaraty durante a Ditadura,
em 1977.
[iii]
As frases atribuídas à Paulo Roberto de Almeida constam na matéria do Globo.com
citada no início do parágrafo e acessível pelo link disponível na primeira nota.