A desigualdade como problema moderno*
Roberto Dutra**
* Publicado originalmente
em Folha 1.
A
sociedade moderna é a primeira sociedade em que a desigualdade é percebida como
problema social. Quanto mais trivial este fato parece ser, mais as
pré-condições sociais desta problematização são esquecidas. Compreender a
desigualdade não é só explicar causalmente seu surgimento, sua reprodução e sua
mudança, mas também as condições sociais que tornam possível problematizar este
fenômeno e observar suas causas não como um dado da natureza, mas como
estruturas sociais que podem ser modificadas.
Como
é possível que a vida social nos permita ver a desigualdade como um problema e
não como garantia natural de ordem? A crítica e a problematização da
desigualdade social do ponto de vista da justiça e igualdade pressupõem uma
ordem social que seja compatível com a mutabilidade destes fenômenos. Na maior
parte da história social da humanidade a desigualdade não foi um problema, mas
sim um dado da natureza aceito como tal pelos humanos. Nem toda ordem social
comporta a problematização e a mudança das estruturas de desigualdade social.
Tanto a crítica da desigualdade quanto as idéias sobre justiça social que
orientam esta crítica, incluindo as utopias políticas e o “igualitarismo
primitivo” dos sociólogos (Müller, 2002, p. 497-498), pressupõem uma ordem
social na qual a mudança das estruturas de desigualdade possa ocorrer sem que
esta ordem social desmorone. A mudança das estruturas de desigualdade requer
certa continuidade institucional e cultural na sociedade. A idéia de que
podemos transformar as estruturas de desigualdade social é muito mais do que
uma expectativa sociológica projetada na sociedade (Sachweh, 2011, p. 581): é
uma conquista evolutiva da sociedade moderna, que está diretamente ligada à
transição para um novo tipo de ordem social, na qual o princípio da igualdade
orienta a participação dos indivíduos na política e no direito. É somente como
resultado de práticas sociais específicas destas esferas que a desigualdade
deixa de ser vista como um dado natural para ser percebida como um obstáculo à
realização de determinadas normas e valores sociais. A problematização jurídica
e política da desigualdade é o resultado da diferenciação da sociedade em
esferas sociais autônomas (economia, política, direito, ciência, família,
religião, artes etc.), que abre um horizonte de observação no qual assimetrias
entre indivíduos e grupos sociais podem ser percebidas como contingentes e
arbitrárias.
A
igualdade moderna é complexa (Walzer, 2003): não supõe e nem exige a eliminação
de toda e qualquer assimetria social, mas daquelas assimetrias que se somam
umas as outras e geram um processo de acumulação de vantagens e desvantagens
que destroem a possibilidade de igualdade no acesso a um padrão de vida
considerado “digno” e “civilizado” em cada contexto. A igualdade moderna é complexa,
não absoluta, porque a sociedade não é uma unidade, mas uma pluralidade de
esferas. É este tipo de igualdade complexa que chamamos de cidadania. A
pluralidade estrutural criada a partir da diferenciação da sociedade em esferas
disponibiliza um horizonte comparativo que coloca as desigualdades em situação
de maior ou menor pressão por legitimação. Formas de desigualdade típicas de
uma esfera (como as desigualdades de classe produzidas na economia e no sistema
de ensino) podem ser contrastadas com formas de igualdade vigentes em outras
esferas (como a igualdade formal vigente no sistema político e no sistema
jurídico). Em sociedades estamentais como o sistema feudal e o colonial, havia
uma unidade estrutural que bloqueava o horizonte comparativo e com isso
contribuia para a legitimação não problemática da desigualdade.
Em
sua clássica sociologia da cidadania, Marshall (1967) vincula explicitamente o
desenvolvimento da busca por igualdade à superação desta unidade estrutural
característica de sociedades estamentais e com isso à diferenciação da
sociedade em instituições funcionalmente especializadas. Em sociedades feudais,
afirma, “não havia nenhum princípio sobre a igualdade dos cidadãos para
contrastar com o princípio de desigualdade de classes”(Marshall,1967, p. 64).
Com a diferenciação da sociedade em esferas autônomas, ao contrário, a
desigualdade de classe deixa de estar fundada em seu próprio direito, e passa a
ser “um produto derivado de outras instituições” (Marshall, 1967, p. 77). As
duas coisas também podem ser afirmadas em relação às relações de gênero,
raça/etnia e à própria divisão política do mundo em nacionalidades (o lado
excludente do princípio da cidadania que Marshall não abordou): assim como as
relações de classe, elas são constitúidas e observadas em contraste com formas
de igualdade vigentes em outras esferas, especialmente com a igualdade formal
de natureza política e jurídica, e são produto derivado de outras instituições.
A desigualdade pode deixar de ser um problema
O
horizonte cognitivo e normativo que condiciona a problematização da
desigualdade não é um dado. Como a hipótese sobre a possível formação de uma
sociedade “neofeudal” sugere, este horizonte pode ser eliminado da vida social:
a institucionalização da igualdade em determinadas esferas sociais, como o
direito e a política, pode ser removida pela formação de estamentos capazes de
suprimir a diferenciação da sociedade em esferas. A desigualdade pode deixar de
ser um problema para se tornar novamente um dado natural.
Esta
possível eliminação do horizonte cognitivo e normativo da igualdade eliminaria
também as condições de possibilidade da crítica social da desigualdade. Vale
repetir: Esta crítica social é institucionalizada através da introdução e
desenvolvimento de direitos de cidadania universalistas, dependendo diretamente
das estruturas do sistema político e do sistema jurídico: É somente porque
todos os cidadãos têm formalmente o mesmo status político e jurídico que as
desigualdades em outras esferas da vida se tornam um problema que deve ser
revolvido a partir de decisões políticas e jurídicas: “A distinção entre
igualdade e desigualdade constitui um paradoxo. Quanto mais iguais nos
tornamos, segundo o paradoxo, mais descobrimos desigualdades, algumas delas de
natureza infinitesimal” (Müller, 2002, p. 497).
Recentemente,
alguns estudiosos têm levantado a hipótese da refeudalização e renaturalização
das desigualdades sociais na sociedade mundial contemporânea (KALTMEIER, 2020;
KOTKIN, 2020; DURAND, 2020; ROTH, 2021). Para Joel Kotkin e Olaf Kaltmeier, a
classe economicamente dominante está se transformando em um estamento global
que concentra recuros econômicos, políticos e culturais no topo da pirâmide
social, destrói as classes médias e constrói aquela fusão de dimensões da desigualdade
que elimina qualquer esfera da igualdade capaz de servir de contraponto às
assimetrias sociais existentes. O novo estamento global passa a dominar a
subjulgar as elites políticas, jurídicas e culturais. Surgiria um novo tipo de
ordem social de estamentos fechados que suplanta a diferenciação da sociedade
em esferas autônomas. Para Cédric Durand, estaríamos diante da formação de um
“tecnofeudalismo” como resultado da evolução recente da economia de conquista
de dados e espaços digitais: as plataformas corporativas que conquistam,
concentram e administram o “mar de dados” (Big Data) produzidos pela multidão
de indivíduos e organizações tornam-se “senhores feudais”, dos quais estes
indivíduos e organizações passam a depender de modo radicalmente assimétrico.
Para Steffen Roth, a possibilidade de formação de uma sociedade neoestamental
deve ser tratada como um cenário improvável ao lado de outros possíveis. Ele
advoga que a entronização do valor da saúde, como possibilidade surgida da
pandemia da Covid-19, produziria a cosmovisão adequada para sustentar e
legitimar esta hierarquia neoestamental pós-moderna: povos sanitarimente
inferiores poderiam ser governados e colonizados por povos sanitariamente
superiores:
“Em
uma sociedade mundial da saúde "neo-medieval", seria fácil e óbvio
medir não apenas funções específicas, mas praticamente todos os papéis, valores
ou comportamentos tendo como parâmetro sua contribuição ou ameaça à saúde. O
surgimento de classes, castas ou Estados correspondendo a diferentes níveis de
saúde, pureza, infecção ou poluição seria uma consequência provável” (ROTH,
2021, p. 7).
Como
vimos, a diferenciação da sociedade em esferas e a igualdade política e
jurídica são condições de possibilidade para que a desigualdade seja
problematizada, criticada e politizada na sociedade. O aumento da desigualdade
e da dependência econômica em relação às corporações que controlam Big Data, e
a prevalência de um sistema social (saúde) sobre os outros parecem ser
condições necessárias, mas não suficientes para apontar o colapso das condições
de problematização da desigualdade. Para que ocorra este colapso, o aumento da
desigualdade e o surgimento da dependência na economia digital teriam que
resultar não só na fusão das formas de inclusão e desigualdade de distintas
esferas sociais, mas esta fusão teria também que eliminar o horizonte normativo
e cognitivo da igualdade que permite a problematização da desigualdade. A
prevalência do sistema econômico e das desigualdades econômicas teria que ser
acompanhada pela formação de uma ordem social mais ampla, destituída de
qualquer esfera na qual o valor da igualdade esteja institucionalizado e sirva
de parâmetro imanente para politizar desigualdades observadas em outros
sistemas sociais. Concretamente, esta ordem social mais ampla teria que ver
destruída por completo a igualdade formal entre indivídos e povos,
institucionalizada no sistema de Estados nacionais e na cidadania, para que a
renaturalização da desigualdade pudesse substituir a igualdade complexa. O mesmo
vale para a possibilidade de que o sistema da saúde venha a ocupar a posição de
centralidade que a economia ocupa na maioria das situações, com a consequência
de que a estrafificação sanitária se torne a dimensão capaz de fundir a agregar
desigualdades em uma hierarquia social global, unitária e renaturalizada.
A
prevalência de uma esfera social sobre outras é muito mais regra do que exceção
na história da sociedade mundial moderna e não significa necessariamente a
fusão de estruturas de desigualdade destas diferentes esferas. A formação de
grupos estamentais também não basta para identificar o colapso da igualdade.
Estruturas de desigualdade estamental especificamente modernas não apenas se
formaram a partir de desigualdades de patrimônio e poder ao longo dos séculos
XIX e XX (BOURDIEU, 2014), como também foram politizadas e em boa medida
alteradas pela própria evolução das esferas sociais.
No
entanto, a possibilidade do colapso da igualdade não pode ser descartada. O
aumento vertiginoso das desigualdades econômicas, os obstáculos à superação de
desigualdades raciais, étnicas e gênero em diferentes esferas sociais e a
fragilidade institucional dos direitos igualitários de cidadania são fenômenos
que apontam justamente para a possibilidade de desconstrução do horizonte
normativo e cognitivo da igualdade e da consequente renaturalização das
assimentriais sociais dos mais diversos tipos.
Bibliografia
BOURDIEU,
P. Sobre o Estado. São Paulo: Cia das Letras, 2014.
DURAND,
C. Technoféodalisme: Critique de l’économie numérique. Paris: Éditions La
Découverte, 2020.
KALTMEIER,
O. Refeudalisierung und Rechtsruck: soziale Ungleichheit und politische Kultur
in Lateinamerika. Bielefeld: Bielefeld University Press, 2020.
KOTKIN,
J. The coming of neofeudalism. A warning to the global middle class. New York:
Encounter Books, 2020.
MARSHALL,
T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.
MÜLLER,
H-P. Die drei Welten der sozialen Ungleichheit: Belohnungen, Prestige
und
Citzenship. Berliner Journal für Soziologie, n. 4 , p. 485-503, 2002.
ROTH,
S. The Great Reset. Reestratification for lives, livelihoods, and the planet.
Technological Forecasting and Social Change, v. 166, p. 1-8, 2021.
SACHWEH,
P. Unvermeindbare Ungleicheiten? Alltagsweltliche Ungleichheitsdeutungen
zwischen sozialer Konstruktion und gesellschaftlicher Notwendigkei. Berliner
Journal für Soziologie, n. 21, p. 561-586, 2011.
WALZER,
M. Esferas da justiça. Uma defesa do pluralismo e da igualdade. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
**
Sociólogo. Mestre em Políticas Sociais. Doutor em Sociologia.
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