Por Jefferson Nascimento*
Algumas reações contrárias à demissão da assessora-chefe do Ministério da Igualdade Racial seguiram a avaliação de que "pessoas negras nunca têm uma segunda chance". Infelizmente, a avaliação está historicamente correta, mas parece inadequada para o caso. Esse caso é sobre pré-requisitos básicos para uma assessora-chefe de Ministério: capacidade de realizar cálculo político e agir adequadamente no exercício de função.
Para começar, um erro de avaliação da equipe ministerial, fragilizando a posição da ministra Anielle Franco, que poderia defendê-la. A equipe do Ministério da Igualdade Racial foi à São Paulo de jatinho da Força Aérea Brasileira (FAB). Sabe quem também usou o jatinho da FAB? Fufuca, Ministro dos Esportes, aquele do Centrão, bolsonarista até outro dia que assumiu no lugar de Ana Moser. No entanto, o Ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, e seus assessores foram em voo comercial. Não há ilícito na decisão da equipe de Anielle e Marcelle, mas evidencia - no mínimo - uma ingenuidade política ao acreditar que a mídia pouparia o governo, tendo usado essa crítica reiteradas vezes para o governo Bolsonaro. Mais ingênuo ainda seria esperar que a parcimônia dispensada à Fufuca se estenderia a elas. Silvio Almeida compreendeu bem os riscos. É possível argumentar que o uso dessa vez é amparado por um dos três critérios (missão institucional) e que nem de longe se equivale aos abusos de outrora. Porém, os membros do governo Lula devem ser bem céticos em vez de esperar essa isenção de empresas jornalísticas cuja agenda política já ficou clara diversas vezes. Era, portanto, esperado que Anielle Franco fosse objetiva ao explicar a missão institucional previamente e determinasse que todas as servidoras evitassem vídeos/stories em clima de festa com cânticos de torcida dentro do avião - e ela mesmo não fizesse. Esses deslizes abriram margens para explorações indevidas do fato.
Para piorar, o Protocolo poderia ter sido assinado em Brasília ou na sede da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) no Rio de Janeiro em evento anterior à final. O jogo poderia ser usado para exibir faixas, vídeo institucional no telão do estádio, anúncios e/ou camisas para publicizar a parceria. Consta que a iniciativa de assinar o documento no Morumbi foi sugerida pelo próprio Ministério da Igualdade Racial. Há aí, talvez, um desconhecimento por parte da equipe: uma das formas de sedução usadas pela CBF para aumentar seu capital político após a proibição de doações de campanha é justamente dar convites, cargos, camisas e comendas. Do mais singelo ingresso para um jogo, chefia de delegações em jogos e competições até cargos remunerados serviram para alimentar sua bancada no Congresso e têm aproximado a CBF dos últimos governos.
Além dessa exposição e fragilidade da equipe ministerial, a demissão de Marcelle Decothé ocorreu após uma sucessão de erros que podem ter custos políticos consideráveis dificultando ações da própria pasta e contrariam o manual de conduta de servidores. A seguir o elenco de problemas:
1) O primeiro story é uma foto de outras servidoras do Ministério com camisas da seleção brasileira. A legenda ironiza dizendo que, em "30 segundos com a CBF", as colegas teriam se tornado "patriotas" e, por isso, seriam (ou poderiam ser) canceladas. Ora, não sejamos ingênuos sabemos que patriota é um eufemismo recente para bolsonarista, principalmente quando associado à camisa da seleção brasileira. Porém, essa ironia ocorreu durante a viagem para uma missão do governo justamente junto à CBF. Como construir pontes e relações políticas ironizando a outra entidade? É claro que a CBF tem um histórico que merece atenção e crítica, mas também é preciso ser justo: Ednaldo Rodrigues tem sido um presidente com ações de combate ao racismo. Que tais ações não caracterizam um ativismo, concordamos. Mas, como servidoras do Ministério da Igualdade Racial podem se dar ao luxo de atacar uma entidade que, mal ou bem, começou a tratar do tema? Inclusive, na contramão do que faz a Federação Internacional de Futebol (FIFA). O evento em questão, aliás, ocorreu no Morumbi, dentre outros motivos, pela preferência da equipe do ministério assinar o Protocolo no jogo da final da Copa do Brasil em uma aproximação maior que o necessário para ações desse tipo. O fato é que a brincadeira mirou as colegas e a crítica ao bolsonarismo, mas acertou a entidade cuja parceria para o Protocolo era a razão da viagem.
2) Há um story que critica a entrada no estádio dentro de uma viatura da Polícia Federal (PF). Uma crítica que não é possível afirmar se foi endereçada à força de segurança ou à situação. O fato é que Marcelle poderia abrir mão dessas facilidades e pegar a fila como os torcedores comuns. Ao não fazer isso, sugere que não estava incomodada com a facilidade e queria, na verdade, fazer outro tipo de crítica. De todo modo, sem contexto, pareceu uma crítica aleatória e gratuita a uma força cujas relações com a esquerda não são e não tendem a ser fáceis, mesmo na gestão Flávio Dino.
3) A crítica aos torcedores do São Paulo Futebol Clube demonstra dois problemas. (1) Hipocrisia ao procurar a diversidade nos camarotes destinados às celebridades e autoridades. De fato, os preços da final impôs uma maior elitização no geral, mas não seria no camarote que ela encontraria a diversidade em jogo algum e em qualquer estádio brasileiro. Ela poderia ir ao encontro do povo nas arquibancadas, sobretudo no anel superior ao sol de quase 40 graus. E ela não foi, não é? (2) Revela também desconhecimento ao reforçar estereótipos antigos (torcedor são-paulino elitizado) e ignora o esforço de setores importantes da torcida (vide Bonde do Che) na defesa de pautas de esquerda, no ativismo em defesa de causas populares e combate ao racismo. Fruto de hipocrisia e desconhecimento, a crítica configura ainda um erro político gravíssimo: foram grupos dessa torcida que fizeram o presidente Júlio Casares não receber Bolsonaro com status de autoridade, quando este foi levado ao Morumbi por Tarcísio e Ricardo Nunes. Sequer aquela foto típica em que algum diretor presenteia o convidado com a camisa ocorreu. Bolsonaro não ficou no camarote da diretoria e ainda foi hostilizado por torcedores. Faz sentido interditar o diálogo com essa torcida? Até porque o mesmo jamais ocorreu no Flamengo, com Landim, onde Bolsonaro era presença constante em jogos e até levantando taças nos títulos recentes. E mais: qual contribuição esse ataque trará para a construção de um futebol brasileiro mais popular? No fim, foi só ataque incompatível com a natureza da presença de Marcelle no Morumbi.
4) Para completar a falta de cálculo político há um story atacando os descendentes de europeus e paulistas. O São Paulo sequer nasceu como clube de comunidade de imigrantes. Mas, isso seria exigir que ela se interessasse pela história do clube. Porém, a questão central é que politicamente a declaração é desastrosa para o governo. Governo no qual Marcelle Decothé é servidora. O cerne não debater se faz ou não sentido defender "o legado dos imigrantes europeus" e sequer tratar de alguma afinidade com imaginário do bandeirantismo. A questão apenas é: qual a razão e a utilidade política para tais críticas e ataques sem contexto?
5) Marcelle ainda fez críticas ao Flamengo: "diretoria fascista" e atletas xingados com palavrões (p** no koo/c*). O desabafo seria comum se partisse de torcedores na arquibancada visitante do Morumbi. Porém, é adequado quando expresso por uma assessora ministerial em serviço? Quem são esses atletas assim xingados? Seriam apenas os atletas paulistas, descendentes de europeus e brancos que merecem esse termo "p** no koo/c*"? Pela tietagem, sabemos que Gerson não está dentre esses criticados, mas e Wesley, Gabigol, Bruno Henrique e Victor Hugo? Pergunto para entender se nesse momento também a assessora se preocupava com a questão racial ou se ela só importava na avaliação de Marcelle sobre a torcida rival elitizada com a qual compartilhava o camarote.
É possível ainda ressaltar o silêncio de Marcelle e toda a equipe do Ministério quando a Polícia Militar usou a força para dispersar torcedores pobres que foram ao estádio depois do jogo homenagear os jogadores. Esses torcedores não eram os torcedores do camarote, não puderem ver o jogo in loco como Marcelle, Anielle e Fufuca. Esses torcedores apenas poderiam ver seus ídolos pelas grades do portão de saída do estádio. Não é honesto afirmar omissão ou má vontade da equipe do Ministério da Igualdade Racial, o histórico de militância de Anielle e Marcelle (e não do ministro dos Esportes) confirmam o real engajamento delas com a luta antirracista. Porém, demonstra o simples, elas não viram. Não viram porque não estavam próximo dali, não viram porque entraram, assistiram o jogo e saíram como autoridades que são. Não viram, como não poderiam ver alguma diversidade (ainda que pequena pelos preços da final) desde o camarote das autoridades. Daí o cuidado com as armadilhas e seduções do poder, que podem distanciar as pessoas de suas bases.
Infelizmente, é verdade histórica que pessoas negras não recebem o benefício da dúvida - sobretudo mulheres negras - e quase nunca contam com uma segunda chance na nossa sociedade e isso tem a ver com a dinâmica do poder. Entretanto, neste caso, cabe a reflexão diante da sucessão de postagens irônicas e agressivas: não se deve esperar cálculo político de uma assessora-chefe? Existiria objetivamente uma extensão de dano político para justificar ou não a demissão de Marcelle Decothé? É claro que é uma estupidez o argumento de um racismo reverso mobilizado por alguns. Não é esse o cerne da questão e, sim, o fato de que a principal assessora de um ministério precisa agir politicamente, principalmente em missões institucionais.
*Jefferson Nascimento é cientista político, professor do IFSP-Campus Sertãozinho, membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos.
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