O genocídio palestino e nós: da má consciência
à coragem moral
Paulo Sérgio Ribeiro
Em 2021, sobrevivíamos
ao terceiro ano da Era Bolsonaro sob a ameaça permanente de uma pandemia ou,
precisamente, aos crimes contra a humanidade perpetrados pela extrema direita então
no poder. Os efeitos deletérios dessa crise ainda se fazem sentir em diferentes
domínios da vida brasileira e revelaram ao mundo toda a brutalidade da frente
neocolonial avalizada pelo Governo Bolsonaro sobre os nossos povos indígenas. Naquele
momento, não hesitamos em seguir o argumento (ver Genocídio,
por quê?) que imputava aos próceres daquele governo o genocídio indígena.
Iniciada a discussão,
propus a um competente (e amigo) antropólogo que lhe desse continuidade com
todo o repertório que, supunha eu, a antropologia brasileira dispõe sobre a questão
indígena, mas ele declinou. A seu ver, a tarefa requereria um olhar mais
experimentado do que as escolhas profissionais que fez permitiria ter e, em
nome da honestidade intelectual, optou por deixar o assunto a quem lhe
oferecesse uma dedicação à altura das exigências que o “fazer carreira” nas ciências
sociais pressupõe (ou impõe).
Sejamos justos: mesmo
uma opinião com rudimentos sociológicos pede um ponto de vista menos voluntarista
sobre a agenda pública do momento, pois é inevitável confirmar o que Bourdieu certa
vez sentenciou: a opinião pública “não existe”. Ora, se não podemos mesmo ter opinião
sobre todo e qualquer assunto, não é tão óbvio assim que precisemos
ser passivos à articulação dos interesses materiais e ideais que nos afetem como
partícipes da história do tempo presente e, deste modo, gostaria de esboçar esta
reflexão a partir da fatídica constatação de que somos testemunhas de outro
genocídio, o dos palestinos sitiados em Gaza, elegendo a ética da
Modernidade como posição irredutível.
Aos não “iniciados”: do que se trata a “ética da Modernidade”? Partindo aqui muito ligeiramente da abordagem de Habermas, poderíamos delinear essa ética pelo caráter responsivo que os “tempos modernos” exigem de cada um de nós perante a História, uma vez que a ruptura promovida pela era moderna é justamente a impossibilidade de fundamentarmos em outras épocas que não seja a atual uma orientação normativa para as nossas vidas, já que embarcamos, ao menos desde as grandes navegações no século XVI, em um processo de mudança social cujo moto contínuo é a sempre renovada expectativa do “novo”, abrindo, pois, todas as comportas da subjetividade humana.
Contudo, essa viagem sem volta dos homens e mulheres modernos não é um vale-tudo: viver em um regime de historicidade em que não há mais uma fonte de sentido unitária
para quaisquer preceitos e regras, tal como a religião um dia prometeu ser de
maneira inconteste, fez com que ganhássemos um bônus e pagássemos um tributo,
respectivamente, a autonomia do pensamento como o lócus do direito à crítica em
um mundo onde não há um recôndito sequer da realidade que não possa ser posto
em questão em um debate reconhecido por todos; e a vacuidade da condição moderna
onde, não raro, vemos a nós mesmos “à deriva” com essa ausência de um elemento
unificador das múltiplas filiações valorativas a que estamos sujeitos desde então.
Copo metade cheio,
metade vazio, eis que somos instados a fazer escolhas e estas, para retomar o
fio da discussão, têm uma inegável dimensão ética, sobretudo para quem não se vê
obrigado a abrir mão do potencial crítico da Modernidade para adotar posturas
dúbias como, por exemplo, a de quem presume (simulando até um certo charminho crítico) que todos os
discursos sobre as relações entre o Estado de Israel e o povo palestino em Gaza
e na Cisjordânia são verossímeis por terem igual pretensão de validade e, logo,
caberia a quem está longe das chamas e dos destroços nada além do que isenção de
ânimo. Afinal de contas, já temos problemas de sobra no Brasil para nos ater
à geografia do Oriente Médio. Ademais, alguém de boa-fé poderia complementar: como
não subestimar a complexidade daquele conflito sem se deixar levar pela
propaganda de guerra de Israel nem pela retórica do Hamas?
Eis uma resposta: ainda que nós, cientistas sociais, não deixemos de explorar todos os recursos semânticos possíveis da língua, materna ou não, em que desenvolvemos a nossa ciência para sermos eficazes na comunicação dos seus resultados perante nossos pares ou, em alguns casos, para sermos “lembrados” pelo mercado editorial, nem por isso a busca da verdade se deixa sacrificar pelo mero uso da retórica. Noutros termos, a verdade de uma proposição sobre a questão palestina não se confunde com um conjunto de crenças de um determinado público como a audiência cativa das mídias corporativas que se copiam no dito mundo ocidental retroalimentando o seu público com toda sorte de preconceitos sobre o mundo árabe e muçulmano.
A verdade, apreciável
à luz de fatos históricos suficientemente documentados, ainda importa. Afirmar
isso nos dias que correm não é só uma veleidade iluminista, mas sobretudo um
ato de coragem moral. Não haveria exemplo mais bem acabado do que seja essa coragem do que o de Norman Finkelstein, cientista político estadunidense e
judeu antissionista que, diante de uma ruidosa plateia alemã em
2008, desnudou as inversões ideológicas de alguns estudantes ali
presentes sobre a opressão racista do Estado de Israel nos territórios palestinos
ocupados:
Ser oriundo de uma tradição como o judaísmo e não ser cúmplice da sua distorção sob a forma de um verdadeiro apartheid do povo palestino mantido sem disfarce algum na expansão territorial de Israel com o advento do seu Estado étnico (1948) talvez seja a mais solitária das missões que um intelectual público possa vir a se comprometer. Mas para Finkelstein a condição moderna ainda traduz uma promessa de emancipação que valha a pena insistir ao aderir à solidariedade e ao internacionalismo quando defronta-se com a circunstância igualmente solitária dos povos – indígenas, no Brasil; palestinos em Gaza e na Cisjordânia – que vivem os horrores do imperialismo e do colonialismo no século XXI.
Nenhum comentário:
Postar um comentário