sábado, 14 de dezembro de 2024

Wladimir e a direita autoritária - George Gomes Coutinho

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Wladimir e a direita autoritária**

George Gomes Coutinho***

Já apontei que o prefeito Wladimir Garotinho, reeleito neste 2024 com a maior votação nominal da história da cidade, não poderia ser classificado como um “palhaço macabro”, termo utilizado por Caetano Veloso para designar a extrema-direita no Brasil e no mundo. E, de fato, seu diálogo com agentes dos dois lados do espectro político, sua abertura para implementar políticas públicas mirando a efetividade e não identitarismo ideológico, sua performance pública em diversas ocasiões ignorando discursos de ódio a grupos políticos ou a setores da sociedade, tudo isso reitera: Wladimir não é um fascista. Contudo, há contradições que preciso apontar. E no período pós eleitoral o prefeito, enfim, optou por escorregar em cascas de banana que acendem sinal de alerta para quem milita no campo democrático. E, creio, cabe correção de rota enquanto há tempo.

O prefeito, quadro neste momento do PP, o Progressistas, ainda em campanha já havia exibido como sinal de prestígio tanto o apoio de Ciro Nogueira, este no mesmo partido de Wladimir, quanto o de Flávio Bolsonaro do PL. Aos mais ligeiros lembro que o PP tem ministério no Governo Lula. Então, a questão não é propriamente o PP ou o Centrão, instância política brasileira a qual nenhum presidente brasileiro pode abrir mão na atual configuração de nosso sistema. O problema são as companhias específicas que citei. Nogueira e Flávio não são nomes do campo democrático. Mesmo que Wladimir tenha, ao menos em um primeiro momento, se aproximado de ambos de forma acanhada e almejado apenas ampliar seu capital político, o gesto de proximidade já o tornou uma liderança semileal à democracia. A semilealdade democrática, descrita pelo cientista político Juan Linz em seu The Breakdown of Democratic Regimes, lançado em 1978, indica condescendência com lideranças de DNA autoritário. Ao invés de isolar, implementar um cordão sanitário, algo encontrado em lideranças democráticas mundo afora, a opção é por confraternizar com extremistas. Podemos intuir que os supracitados talvez ofertem benefícios que outros agentes ou grupos não ofertaram: portas que se abrem, contatos vantajosos com o primeiro escalão. Tudo isto podemos colocar na conta do cálculo racional frio e pragmático.

Porém a hipótese do mero cálculo anda constrangida lamentavelmente por ações do próprio Wladimir que parece querer arriscar o respeito adquirido dentro do campo democrático. Nunca é tarde para lembrar que parte de seus votos tem por origem os que viram na delegada Madeleine a representante da extrema-direita nas eleições municipais campistas. Sim, Wladimir atraiu votos tímidos ou entusiasmados do campo democrático. Por isso vamos por partes.

Recentemente uma das indiscretas postagens em rede social de Wladimir adulando o patriarca do clã Bolsonaro é motivo suficiente para questionarmos as convicções do prefeito boa praça. Todos os fatos ventilados alhures indicam Jair Bolsonaro como uma liderança francamente radioativa ao regime que deu os mandatos da carreira política de Wladimir. O passado e o presente de Jair Bolsonaro o fazem palatável apenas a assemelhados ideológicos, seja Donald Trump ou Viktor Orbán. Isso a despeito de sua popularidade doméstica. E não, aparecer na foto com um homem que instigou seus liderados com discursos de eliminação de adversários não é o mesmo que ser fotografado ao lado do Mickey em Orlando. Com tudo isso, por crimes contra o Estado de Direito, Wladimir pode ter sido registrado ao lado de um futuro criminoso condenado.

Ainda, o prefeito também achou por bem se meter na Guerra Cultural ao entrar na discussão de gênero e sexualidade nas escolas campistas a pretexto de se considerar “conservador”. O termo “conservador” vale para personagens importantes como Edmund Burke (1729-1797) ou Alexis de Tocqueville (1805-1859), filósofos da conservação política temerosos que eram de mudanças sociais e institucionais bruscas. O ponto é que jamais o conservadorismo destes flertou com o obscurantismo.

Falemos sobre a lei 9.531 sancionada por Wladimir e proposta na Câmara pelo vereador Anderson de Matos (Republicanos).

A discussão de gênero e sexualidade nas nossas escolas funciona analogamente como algo que ouvi há muitos anos em uma palestra proferida por um profissional da área de medicina que jamais consegui lembrar o nome: a escola é uma das maiores promotoras de saúde coletiva que podemos ter em nossa sociedade. Práticas, regras, conteúdos simples ensinados de maneira didática que impactam de maneira significativa cidadãos em toda uma vida. Sim, é na escola, em nossa sociedade, que muitos de nós ouvimos pela primeira vez, além de diversos conteúdos abstratos e formais, sobre saúde reprodutiva, tolerância, práticas esportivas como parte do desenvolvimento humano, como se alimentar bem, etc.. Escola é espaço de formação com força civilizatória. Jamais perfeita, dado que é instituição humana. Mas a contribuição da escola enquanto promotora de qualidade de vida é simplesmente inestimável.

Nestes termos, ter a escola como espaço de promoção ao respeito da diversidade sexual realmente existente e lugar de vivência e ensino da igualdade civil, política e social de gênero deveria contar com o apoio da sociedade e da classe política. Ora, é fato desconhecido a defasagem salarial de mulheres no mercado de trabalho? Igualmente é ficcional que vivemos em uma sociedade que pratica diferentes tipos de violência onde o critério para a escolha de alvos é a orientação sexual? Ainda, que na própria escola o bullying e todo tipo de linchamento tem o potencial de produzir diferentes formas de sofrimento como o cutting e, no limite, o suicídio?

A lei 9.531 sancionada por Wladimir coloca sobre os ombros dos pais a decisão de sonegar ou não os conteúdos de gênero e diversidade sexual a crianças e adolescentes. Se trata disso. É um empoderamento duvidoso das famílias em uma cruzada contra a “ideologia de gênero” (sic), um espantalho criado que segue inexistente na boca de qualquer pessoa que se interesse a estudar o assunto. Torço que o poder municipal reconsidere sua decisão e permita que nossas crianças tenham acesso respeitoso e de qualidade a estes conteúdos.  E, de forma análoga, na torcida que o prefeito se reposicione em algumas ocasiões saindo de condição de democrata semileal.

* Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-brasil-e-o-avanco-da-extrema-direita/, acesso em 14 de dezembro de 2024.

** Texto publicado na página 04 do jornal Folha da Manhã em 14 de dezembro de 2024.

*** Cientista político, sociólogo e professor no Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Os toques da morte - Carlos Abraão Moura Valpassos

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Os toques da morte 


Carlos Abraão Moura Valpassos


A morte nos toca de diferentes maneiras. Há tempos atrás, um amigo médico, clínico geral, disse que lidava diariamente com a morte, que fazia o que podia pra adiá-la para seus pacientes, mas que as derrotas eram frequentes e inevitáveis. Ele estava, portanto, acostumado a lidar com a morte.


Passei dias ruminando essa história e me indagando se eu seria demasiado sensível e se de fato poderia ser possível naturalizar a morte. Agora, faltando pouco menos de uma semana para o aniversário - contradição - de morte de minha mãe, volto a pensar nisso com frequência. 


Minha mãe entrou no hospital já sem chances, com uma respiração que me soava estranha, mas que para os médicos era um sinal claro de que aqueles eram os últimos momentos. "Gasping", explicou o médico. Ele foi além. "É difícil, eu sei o que você está passando, perdi meu pai há seis meses". Olhando pra trás, percebo que tive sorte: ele me tratou com a paciência e o cuidado de quem sabia o que eu estava passando, mesmo que nem eu soubesse naquele momento, se é que sei agora, um ano depois.


Os últimos dias de minha mãe me perseguem até hoje. A vontade que ela tinha de viver era impressionante, apesar de todo o sofrimento trazido pela doença. As minhas noites ainda são interrompidas por memórias e pela imagem dela deitada no caixão, em uma foto que nunca tirei, mas que queimou minha retina.


Nos primeiros meses, as pessoas tentavam me explicar a dureza do luto. Talvez o conselho mais válido tenha sido: "isso não vai passar, vai ser pra sempre, só vai diminuir a frequência".


Quando contei para meu ex-orientador, ele colocou em termos antropológicos aquilo que eu sentia: "é a perda radical". Sim, era a ruptura de um laço fundamental.


Remoendo memórias e dúvidas sobre as diferentes experiências de morte que temos em vida, recuperei a lembrança de um médico palestino. Em meio ao genocídio imposto pelos israelenses, ele estava imerso em experiências de morte. Certamente tinha experiências incontáveis e tudo pra lidar naturalmente com esse tipo de evento. Ele, todavia, enquanto trabalhava, descobriu que um dos corpos que transportava era o de sua mãe. Ali as coisas mudaram. A calma necessária ao profissional da medicina foi substituída pela dor e o desespero do filho que perdera sua mãe. A humanidade que nos une, a todos, se apresentou expressa na dor da perda radical.


Norbert Elias, em "A solidão dos moribundos", argumentou que a morte era um problema dos vivos. Estava certo quanto a isso, mas tenho minhas dúvidas sobre a parte da "solidão dos moribundos", uma vez que eles costumam tocar seus familiares e, mesmo que estejam encerrando individualmente suas jornadas, estão deixando marcas e projetando a ideia de finitude para que seja refletida, ou ignorada, pelos que ficam. Os moribundos, nesse sentido, nos lembram de nós mesmos, do nosso futuro, das dores que sentimos pelos nossos e que, talvez, alguém sentirá por nós. 


E depois disso tudo, acredito que a questão não é simplesmente a morte. Embora qualquer morte seja capaz de converter-se em experiência, a morte das pessoas próximas, obviamente, assume um tom diferente, com potencialidades próprias. Toda morte, nesse sentido, possui o potencial de ser marcante, mas nem toda ela será. Do mesmo modo, algumas mortes não poderão ser naturalizadas, por mais intimidade que se tenha com esse tipo de evento.


- Carlos Abraão Moura Valpassos

Professor de Teoria Antropológica da Universidade Federal Fluminense

Coordenador do Atelier de Etnografias e Narrativas Antropolíticas

Pesquisador do Inct-InEAC


* Os 108 Toris do Caminho da Purificação, Morro da Vargem, Ibiraçu-ES - Acervo pessoal de George Gomes Coutinho