Os toques da morte
Carlos Abraão Moura Valpassos
A morte nos toca de diferentes maneiras. Há tempos atrás, um amigo médico, clínico geral, disse que lidava diariamente com a morte, que fazia o que podia pra adiá-la para seus pacientes, mas que as derrotas eram frequentes e inevitáveis. Ele estava, portanto, acostumado a lidar com a morte.
Passei dias ruminando essa história e me indagando se eu seria demasiado sensível e se de fato poderia ser possível naturalizar a morte. Agora, faltando pouco menos de uma semana para o aniversário - contradição - de morte de minha mãe, volto a pensar nisso com frequência.
Minha mãe entrou no hospital já sem chances, com uma respiração que me soava estranha, mas que para os médicos era um sinal claro de que aqueles eram os últimos momentos. "Gasping", explicou o médico. Ele foi além. "É difícil, eu sei o que você está passando, perdi meu pai há seis meses". Olhando pra trás, percebo que tive sorte: ele me tratou com a paciência e o cuidado de quem sabia o que eu estava passando, mesmo que nem eu soubesse naquele momento, se é que sei agora, um ano depois.
Os últimos dias de minha mãe me perseguem até hoje. A vontade que ela tinha de viver era impressionante, apesar de todo o sofrimento trazido pela doença. As minhas noites ainda são interrompidas por memórias e pela imagem dela deitada no caixão, em uma foto que nunca tirei, mas que queimou minha retina.
Nos primeiros meses, as pessoas tentavam me explicar a dureza do luto. Talvez o conselho mais válido tenha sido: "isso não vai passar, vai ser pra sempre, só vai diminuir a frequência".
Quando contei para meu ex-orientador, ele colocou em termos antropológicos aquilo que eu sentia: "é a perda radical". Sim, era a ruptura de um laço fundamental.
Remoendo memórias e dúvidas sobre as diferentes experiências de morte que temos em vida, recuperei a lembrança de um médico palestino. Em meio ao genocídio imposto pelos israelenses, ele estava imerso em experiências de morte. Certamente tinha experiências incontáveis e tudo pra lidar naturalmente com esse tipo de evento. Ele, todavia, enquanto trabalhava, descobriu que um dos corpos que transportava era o de sua mãe. Ali as coisas mudaram. A calma necessária ao profissional da medicina foi substituída pela dor e o desespero do filho que perdera sua mãe. A humanidade que nos une, a todos, se apresentou expressa na dor da perda radical.
Norbert Elias, em "A solidão dos moribundos", argumentou que a morte era um problema dos vivos. Estava certo quanto a isso, mas tenho minhas dúvidas sobre a parte da "solidão dos moribundos", uma vez que eles costumam tocar seus familiares e, mesmo que estejam encerrando individualmente suas jornadas, estão deixando marcas e projetando a ideia de finitude para que seja refletida, ou ignorada, pelos que ficam. Os moribundos, nesse sentido, nos lembram de nós mesmos, do nosso futuro, das dores que sentimos pelos nossos e que, talvez, alguém sentirá por nós.
E depois disso tudo, acredito que a questão não é simplesmente a morte. Embora qualquer morte seja capaz de converter-se em experiência, a morte das pessoas próximas, obviamente, assume um tom diferente, com potencialidades próprias. Toda morte, nesse sentido, possui o potencial de ser marcante, mas nem toda ela será. Do mesmo modo, algumas mortes não poderão ser naturalizadas, por mais intimidade que se tenha com esse tipo de evento.
- Carlos Abraão Moura Valpassos
Professor de Teoria Antropológica da Universidade Federal Fluminense
Coordenador do Atelier de Etnografias e Narrativas Antropolíticas
Pesquisador do Inct-InEAC
* Os 108 Toris do Caminho da Purificação, Morro da Vargem, Ibiraçu-ES - Acervo pessoal de George Gomes Coutinho
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