segunda-feira, 6 de maio de 2024

Precisamos de um cordão sanitário contra o bolsonarismo – uma resposta a Joel Pinheiro da Fonseca

 

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Precisamos de um cordão sanitário contra o bolsonarismo – uma resposta a Joel Pinheiro da Fonseca

George Gomes Coutinho**

No último 29 de abril a Folha de São Paulo publicou o artigo de opinião de Joel Pinheiro da Fonseca intitulado “Precisamos do bolsonarismo moderado”[1]. O texto causou rebuliço pelo oxímoro escandalosamente defendido, onde as palavras “bolsonarismo” e “moderado” se atracaram em constrangedora conjunção. Diversas reações ocorreram desde então. Impropérios, ridicularização, demonstrações de estupor, ataques ad hominem... Porém me proponho a levar a sério o texto de Joel e, acredito, o conteúdo do seu texto pode nos levar a considerações sobre a atual conjuntura política brasileira em geral e sobre a direita nativa em particular. Vamos por pontos.

Primeiramente, a publicação do texto de Joel é sintoma e não a doença. Joel tem em sua biografia polêmicas como o debate sobre a venda de órgãos, onde já se posicionou favoravelmente e agora se demonstra arrependido[2]. Talvez Joel tenha se sentido moralmente autorizado a discutir o tema em uma sociedade das mais desiguais do planeta Terra. Poderia ser, quem sabe e na melhor das hipóteses, um excelente negócio. A despeito de suas motivações, por vezes que demonstram ser a de um adicto por click bait, a trajetória de Joel tem sido marcada por posicionamentos por vezes moralmente repugnantes e apresentados em uma embalagem cool. Tratam-se, em muitas ocasiões, de demonstrações de uma suposta “ousadia” intelectual de uma direita “sem tabus” e com ares de ser “descolada”. A questão é que seus argumentos, quase sempre, não resistem a um exame crítico minimamente detido. Nos cabe perguntar: qual a razão de sua presença cativa em um dos maiores jornais do país? Joel, em minha perspectiva, é sintoma do “doisladismo”.

Há anos, em decorrência das mudanças ocorridas no ecossistema de comunicação, as diferentes expressões da mídia tradicional, sejam jornais, revistas semanais ou canais de TV, foram arrastadas pelos novos influxos comunicativos e, de alguma maneira, acharam que era uma boa ideia emular e reverberar as redes sociais. Na atual tribalização de nossa sociedade, importa é “representatividade” dos grupos em disputa de narrativas. Ok, sociedades democráticas são complexas e plurais. É importante que a mídia represente esta diversidade. O problema é que na filosofia do “doisladismo” importa é dar espaço aos supostos representantes dos “dois lados” da contenda, a despeito da qualidade dos argumentos que apresentem. Rinhas televisivas constrangedoras fizeram grande sucesso utilizando essa fórmula. E é assim que nos deparamos com textos como os de Joel, que muitas vezes poderiam estar muito bem recepcionados no jornalzinho da chapa conservadora da faculdade que ganhou as eleições para o Centro Acadêmico.

 O problema não é ser liberal e de direita. O problema é falar asneiras e não contribuir efetivamente com uma opinião pública de qualidade onde os problemas de um país no capitalismo periférico precisam ser discutidos com a seriedade que merecem. E, para além disso, a única coisa que o doisladismo produziu é a naturalização e propagação de argumentos e posicionamentos onde o termo “duvidoso” é apenas um eufemismo. Mais um demérito, de uma listagem de centenas, da Folha de São Paulo. O problema é que a Folha não está sozinha nesta mistificação do que seja um debate de interesse público.

Dando seguimento, essa aproximação submissa de Joel com o bolsonarismo segue longa tradição dos liberais de direita[3] do século XX em flerte com os autoritários em geral. Vejamos o que Grégoire Chamayou nos diz sobre a sabujice de um dos maiores representantes desta vertente política:

Salazar toma o poder em Portugal. Hayek envia-lhe seu projeto de constituição com palavras gentis. Os generais dominam a Argentina, ele vai até lá dar uma sondada. Pinochet derrama sangue no Chile, lá vai ele de novo. Um boicote se lança contra a África do Sul, Hayek pega a pena para defender o regime, e assim por diante. Toda vez (ou quase sempre) que ele se acha numa situação histórica em que, precisamente, ‘por reação contra as tendências socialistas’, um regime ditatorial se impõe, ele se apressa em oferecer seus conselhos.” (Chamayou, 2020: 347-348)

De alguma maneira o desalentado Joel, por representar uma direita sem voto na conjuntura onde ele diagnostica termos um governo de esquerda[4], igualmente se apressou em ofertar conselhos ao bolsonarismo. De olho no capital eleitoral que não tem, sugeriu um caminho maroto de “moderação”. Oras, quem sabe não teremos aí um racismo de baixos teores? Tal como Bolsonaro já achou conveniente pesar quilombolas em arrobas, que tal utilizarmos outra unidade mais adequada? Que tal quilos? É moderação suficiente? E o conteúdo misógino indisfarçável inerente ao bolsonarimo onde até mesmo Michele Bolsonaro é ofuscada? O quanto de misoginia podemos moderar, sem perder a essência do movimento? Talvez um bolsonarismo com pink ou green washing, tudo para que a população LGBT ou ambientalistas possam se sentir mais à vontade quando forem tratados como párias por parte do público bolsonarista.

Com tudo isso, ainda Joel clama pelo que já existe. O NOVO está aí com seu discurso prafrentex identitário presente na boca de suas elites, seguindo com a sua base tão ogra como o rasteiro bolsonarismo fora do partido[5], e foram verdadeira correia de transmissão do governo Bolsonaro (2019-2022) na Câmara dos Deputados. Tal como Tarcísio, aquele que conseguiu uma alta produtividade em letalidade policial, os impressionantes 138% de aumento de indivíduos mortos por sua polícia[6], e se tornou muso inspirador dos jornalões como presidenciável dos sonhos para 2026. O que há de moderação? Um verniz nos bons modos, seja em Tarcísio ou o NOVO, e todos aliados de uma agenda de livre mercado dentro do que as elites econômicas locais, sejam no Agro ou na Faria Lima, assim o consideram: um projeto de acumulação sem constrangimentos como direitos, tributação, etc.. Um velho oeste distópico em que liberdade boa é a exploração sem limites e a formação de paraísos fiscais exclusivos para ricos. É barbárie? É, tanto quanto no bolsonarismo raiz! Só que sem camisa falsificada do Palmeiras e pão fatiado com leite condensado.

Com tudo isso, não enxergando o “bolsonarismo moderado realmente existente”, Joel sofre ainda da falta da decência dos que tiveram peito e bancaram a lógica do cordão sanitário.

Alemães, diante do crescimento eleitoral da AfD, o partido com tonalidades xenófobas e parentesco com o neonazismo, portugueses ante o desprezível Chega, e até mesmo diversos setores concorrentes na Espanha diante do VOX, decidiram adotar por princípio não se amalgamarem com essas forças extremistas a despeito de sua capacidade eleitoral. É o cordão sanitário. Com fascistas e assemelhados, não confraternizamos. Combatemos e isolamos. Com todos os senões, foi o que João Dória, do slogan “Bolsodória” de triste memória, optou por fazer individualmente. Deu combate quando viu que a coisa estava fora do controle. Igualmente na direita democrática que Joel não se vê representado, nomes como Alckmin, Simone Tebet, ao invés de tentarem “moderar” o bolsonarismo, embarcaram no governo federal de Frente Ampla de Lula 3.

Não foi uma saída pelo oportunismo eleitoral caroneiro do bolsonarismo replicado em todo território nacional, algo visível até mesmo nestas eleições de 2024. Oportunismo este reforçado pelos argumentos sem vergonha de clamor de moderação apresentados por Joel. Mas, não, não é possível moderar o que se constituiu enquanto discurso de ódio amplificado pela arquitetura das redes sociais. Enfim. O jovem Joel já envelheceu mal.

Referências:

CHAMAYOU, Grégoire. A sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário.  São Paulo: Ubu, 2020.

* Disponível em: https://vermelho.org.br/coluna/terrorismo-como-tatica-politica-de-bolsonaro/, acesso em 06 de maio de 2024.

** Professor Associado da área de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais na UFF-Campos.



[3] Pode causar estranhamento ao leitor menos familiarizado com a história das ideias políticas. Mas, não custa lembrar que há um liberalismo progressista que congrega de Hobhouse a John Dewey. Sim, há uma esquerda liberal.

[4] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joel-pinheiro-da-fonseca/2024/04/como-e-que-o-brasil-e-de-direita-e-lula-esta-no-poder.shtml, acesso em 06 de maio de 2024. Penso que seria de bom alvitre Joel ouvir o experiente Zé Dirceu que considera Lula 3 um governo mais para a centro direita. Para detalhes desta perspectiva, ver aqui: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/04/22/jose-dirceu-governo-lula-centro-direita.htm, acesso em 06 de maio de 2024. Particularmente, entre Joel e Zé, fico com o último.

[5] Vale dizer que a turma do LIVRES também vive esses constrangimentos. Por vezes seus dirigentes tentam emplacar um discurso mais aberto na pauta de costumes e são esculhambados por suas próprias bases.

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