Precisamos de um cordão sanitário contra o bolsonarismo – uma
resposta a Joel Pinheiro da Fonseca
George Gomes Coutinho**
No último 29 de abril a Folha de São Paulo publicou
o artigo de opinião de Joel Pinheiro da Fonseca intitulado “Precisamos do
bolsonarismo moderado”[1].
O texto causou rebuliço pelo oxímoro escandalosamente defendido, onde as
palavras “bolsonarismo” e “moderado” se atracaram em constrangedora conjunção.
Diversas reações ocorreram desde então. Impropérios, ridicularização,
demonstrações de estupor, ataques ad hominem... Porém me proponho a levar a
sério o texto de Joel e, acredito, o conteúdo do seu texto pode nos levar a considerações
sobre a atual conjuntura política brasileira em geral e sobre a direita nativa
em particular. Vamos por pontos.
Primeiramente, a publicação do texto de Joel é
sintoma e não a doença. Joel tem em sua biografia polêmicas como o debate sobre
a venda de órgãos, onde já se posicionou favoravelmente e agora se demonstra
arrependido[2].
Talvez Joel tenha se sentido moralmente autorizado a discutir o tema em uma
sociedade das mais desiguais do planeta Terra. Poderia ser, quem sabe e na
melhor das hipóteses, um excelente negócio. A despeito de suas motivações, por
vezes que demonstram ser a de um adicto por click bait, a trajetória de
Joel tem sido marcada por posicionamentos por vezes moralmente repugnantes e
apresentados em uma embalagem cool. Tratam-se, em muitas ocasiões, de demonstrações
de uma suposta “ousadia” intelectual de uma direita “sem tabus” e com ares de
ser “descolada”. A questão é que seus argumentos, quase sempre, não resistem a
um exame crítico minimamente detido. Nos cabe perguntar: qual a razão de sua
presença cativa em um dos maiores jornais do país? Joel, em minha perspectiva,
é sintoma do “doisladismo”.
Há anos, em decorrência das mudanças ocorridas no
ecossistema de comunicação, as diferentes expressões da mídia tradicional, sejam
jornais, revistas semanais ou canais de TV, foram arrastadas pelos novos
influxos comunicativos e, de alguma maneira, acharam que era uma boa ideia
emular e reverberar as redes sociais. Na atual tribalização de nossa sociedade,
importa é “representatividade” dos grupos em disputa de narrativas. Ok,
sociedades democráticas são complexas e plurais. É importante que a mídia
represente esta diversidade. O problema é que na filosofia do “doisladismo”
importa é dar espaço aos supostos representantes dos “dois lados” da contenda,
a despeito da qualidade dos argumentos que apresentem. Rinhas televisivas
constrangedoras fizeram grande sucesso utilizando essa fórmula. E é assim que
nos deparamos com textos como os de Joel, que muitas vezes poderiam estar muito
bem recepcionados no jornalzinho da chapa conservadora da faculdade que ganhou
as eleições para o Centro Acadêmico.
O problema
não é ser liberal e de direita. O problema é falar asneiras e não contribuir
efetivamente com uma opinião pública de qualidade onde os problemas de um país
no capitalismo periférico precisam ser discutidos com a seriedade que merecem.
E, para além disso, a única coisa que o doisladismo produziu é a naturalização
e propagação de argumentos e posicionamentos onde o termo “duvidoso” é apenas
um eufemismo. Mais um demérito, de uma listagem de centenas, da Folha de São
Paulo. O problema é que a Folha não está sozinha nesta mistificação do que seja
um debate de interesse público.
Dando seguimento, essa aproximação submissa de Joel
com o bolsonarismo segue longa tradição dos liberais de direita[3]
do século XX em flerte com os autoritários em geral. Vejamos o que Grégoire
Chamayou nos diz sobre a sabujice de um dos maiores representantes desta
vertente política:
“Salazar toma o poder em Portugal. Hayek
envia-lhe seu projeto de constituição com palavras gentis. Os generais dominam
a Argentina, ele vai até lá dar uma sondada. Pinochet derrama sangue no Chile,
lá vai ele de novo. Um boicote se lança contra a África do Sul, Hayek pega a
pena para defender o regime, e assim por diante. Toda vez (ou quase sempre) que
ele se acha numa situação histórica em que, precisamente, ‘por reação contra as
tendências socialistas’, um regime ditatorial se impõe, ele se apressa em oferecer
seus conselhos.” (Chamayou, 2020: 347-348)
De alguma maneira o desalentado Joel, por
representar uma direita sem voto na conjuntura onde ele diagnostica termos um governo
de esquerda[4], igualmente
se apressou em ofertar conselhos ao bolsonarismo. De olho no capital eleitoral
que não tem, sugeriu um caminho maroto de “moderação”. Oras, quem sabe não
teremos aí um racismo de baixos teores? Tal como Bolsonaro já achou conveniente
pesar quilombolas em arrobas, que tal utilizarmos outra unidade mais adequada?
Que tal quilos? É moderação suficiente? E o conteúdo misógino indisfarçável
inerente ao bolsonarimo onde até mesmo Michele Bolsonaro é ofuscada? O quanto
de misoginia podemos moderar, sem perder a essência do movimento? Talvez um
bolsonarismo com pink ou green washing, tudo para que a população LGBT ou
ambientalistas possam se sentir mais à vontade quando forem tratados como
párias por parte do público bolsonarista.
Com tudo isso, ainda Joel clama pelo que já existe.
O NOVO está aí com seu discurso prafrentex identitário presente na boca de suas
elites, seguindo com a sua base tão ogra como o rasteiro bolsonarismo fora do
partido[5],
e foram verdadeira correia de transmissão do governo Bolsonaro (2019-2022) na
Câmara dos Deputados. Tal como Tarcísio, aquele que conseguiu uma alta
produtividade em letalidade policial, os impressionantes 138% de aumento de
indivíduos mortos por sua polícia[6],
e se tornou muso inspirador dos jornalões como presidenciável dos sonhos para
2026. O que há de moderação? Um verniz nos bons modos, seja em Tarcísio ou o
NOVO, e todos aliados de uma agenda de livre mercado dentro do que as elites
econômicas locais, sejam no Agro ou na Faria Lima, assim o consideram: um projeto de
acumulação sem constrangimentos como direitos, tributação, etc.. Um velho oeste
distópico em que liberdade boa é a exploração sem limites e a formação de paraísos
fiscais exclusivos para ricos. É barbárie? É, tanto quanto no bolsonarismo raiz! Só que sem camisa falsificada do
Palmeiras e pão fatiado com leite condensado.
Com tudo isso, não enxergando o “bolsonarismo moderado realmente existente”, Joel sofre ainda da falta da
decência dos que tiveram peito e bancaram a lógica do cordão sanitário.
Alemães, diante do crescimento eleitoral da AfD, o
partido com tonalidades xenófobas e parentesco com o neonazismo, portugueses
ante o desprezível Chega, e até mesmo diversos setores concorrentes na Espanha
diante do VOX, decidiram adotar por princípio não se amalgamarem com essas
forças extremistas a despeito de sua capacidade eleitoral. É o cordão
sanitário. Com fascistas e assemelhados, não confraternizamos. Combatemos e
isolamos. Com todos os senões, foi o que João Dória, do slogan “Bolsodória” de
triste memória, optou por fazer individualmente. Deu combate quando viu que a
coisa estava fora do controle. Igualmente na direita democrática que Joel não
se vê representado, nomes como Alckmin, Simone Tebet, ao invés de tentarem
“moderar” o bolsonarismo, embarcaram no governo federal de Frente Ampla de Lula
3.
Não foi uma saída pelo oportunismo eleitoral caroneiro do bolsonarismo replicado em todo território nacional, algo visível até mesmo nestas eleições
de 2024. Oportunismo este reforçado pelos argumentos sem vergonha de clamor de
moderação apresentados por Joel. Mas, não, não é possível moderar o que se
constituiu enquanto discurso de ódio amplificado pela arquitetura das redes
sociais. Enfim. O jovem Joel já envelheceu mal.
Referências:
CHAMAYOU, Grégoire. A sociedade ingovernável: uma
genealogia do liberalismo autoritário. São Paulo: Ubu, 2020.
* Disponível em: https://vermelho.org.br/coluna/terrorismo-como-tatica-politica-de-bolsonaro/, acesso em 06 de maio de 2024.
** Professor Associado da área de Ciência Política no
Departamento de Ciências Sociais na UFF-Campos.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joel-pinheiro-da-fonseca/2024/04/precisamos-do-bolsonarismo-moderado.shtml,
acesso em 03 de maio de 2024.
[2] https://jovempan.com.br/programas/morning-show/entrevista-joel-pinheiro.html,
acesso em 03 de maio de 2024.
[3]
Pode causar estranhamento ao leitor menos familiarizado com a história das
ideias políticas. Mas, não custa lembrar que há um liberalismo progressista que
congrega de Hobhouse a John Dewey. Sim, há uma esquerda liberal.
[4] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joel-pinheiro-da-fonseca/2024/04/como-e-que-o-brasil-e-de-direita-e-lula-esta-no-poder.shtml,
acesso em 06 de maio de 2024. Penso que seria de bom alvitre Joel ouvir o experiente
Zé Dirceu que considera Lula 3 um governo mais para a centro direita. Para detalhes
desta perspectiva, ver aqui: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/04/22/jose-dirceu-governo-lula-centro-direita.htm,
acesso em 06 de maio de 2024. Particularmente, entre Joel e Zé, fico com o
último.
[5]
Vale dizer que a turma do LIVRES também vive esses constrangimentos. Por
vezes seus dirigentes tentam emplacar um discurso mais aberto na pauta de
costumes e são esculhambados por suas próprias bases.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/04/sob-tarcisio-numero-de-pessoas-mortas-por-pms-em-sp-cresce-138-em-um-ano.shtml
, acesso em 06 de maio de 2024.
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