quinta-feira, 11 de outubro de 2018

A agenda econômica de Jair Bolsonaro: um salto no escuro



A agenda econômica de Jair Bolsonaro: um salto no escuro

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Definidos os candidatos ao cargo de Presidente da República: Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT).

Segundo turno a pleno vapor.

A esta altura, muitos devem estar exaustos com uma disputa eleitoral cujas solicitações são alucinantes nas redes sociais. Outros tantos, mais do que exaustos, estão enfadados com uma eleição que mais parece um “terceiro turno” ampliado. O que está posto? A ruptura institucional de 2016 como limite que as classes dominantes (sim, uso o termo) impuseram à ampliação da democracia social e da soberania nacional (marco regulatório original do Pré-Sal e realinhamento geopolítico com a formação dos BRICS) perseguida pelos governos do PT com os seus acertos e erros. Em seu lugar, observou-se desde então uma luta nua e crua entre os interesses corporativos da alta burocracia do Estado (Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal, Forças Armadas entre outros) e experimentos inviáveis no médio e longo prazos como a Reforma Trabalhista e a Emenda Constitucional nº 95.

Passados mais de dois anos daquele ano que não terminou, ninguém anteciparia com exatidão um cenário tão aterrador como a onda de violência política dos seguidores de Bolsonaro[1] que desfigura o espaço público a ponto de intimidar até mesmo quem investiu no antipetismo como linha demarcatória de um projeto de poder. Concordo com Luís Felipe Miguel que a direita derrotada nas quatro últimas eleições nem liberal o é, uma vez que seus melhores quadros se mostraram dúbios diante do manejo das pautas morais como balizador da luta política que sufoca as liberdades individuais. Tais pautas são o mote preferencial da produção de conteúdo a ser difundido no ambiente virtual, mobilizando afetos primários – “eu odeio porque odeio!” - que nivelam por baixo o debate programático.

Contudo, os programas de governo são efetivos, ainda que o eleitor médio não tenha por hábito avaliá-los. Os seguidores de Bolsonaro talvez parassem na página 2 se lhes fossem dado ler mais do que correntes anônimas no WhatsApp. Em respeito aos mesmos, dei-me ao trabalho de olhar de perto o programa do candidato da extrema-direita[2], que se inicia com uma frase de teor aparentemente ufanista - “Brasil acima de tudo” -, mas que, em verdade, é uma apropriação do slogan “Alemanha acima de tudo” (Deutschland über alles) adotado por Adolf Hitler no regime totalitário que comandou na Segunda Guerra Mundial.

O que esse programa de inspiração nazista revela sobre uma das principais controvérsias de sua corrida presidencial (ou louca cavalgada, diriam alguns), a saber, economia? Na seção dedicada ao tema “Liberalismo econômico”, Bolsonaro expõe uma visão de Brasil bem ao gosto dos editorialistas de nossa imprensa tradicional:

Corruptos e populistas nos legaram um déficit primário elevado, uma situação fiscal explosiva, com baixo crescimento e elevado desemprego. Precisamos atingir um superávit primário já em 2020.

Na Câmara dos Deputados, Bolsonaro votou a favor da Emenda Constitucional nº 95[3], que limita os gastos primários do governo federal por 20 anos. Por gastos primários, compreende-se o investimento público orientado para necessidades sociais (educação, saúde, cultura, segurança pública, entre outras) que, numa sociedade complexa como a brasileira, são um universo em constante expansão. A EC 95, porém, deixa de lado os chamados gastos financeiros - pagamento do principal da dívida pública, juros da dívida e debentures –, equivalentes a mais da metade do orçamento anual.

Ora, como fazer crer que o déficit público possa diminuir sem intervir no principal fator de endividamento? Manutenção de taxas de juros elevadas para conter a inflação (como meio usual de garantir a ferro e fogo o superávit primário) pode perfeitamente conviver com uma curva crescente de gastos financeiros, castrando, assim, as chances de um ciclo econômico sustentável. Mas Bolsonaro não se abala. Para o “capitão”, o liberalismo com “L” maiúsculo seria uma vara de condão a resolver todos os males:

As economias de mercado são historicamente o maior instrumento de geração de renda, emprego, prosperidade e inclusão social. Graças ao Liberalismo, bilhões de pessoas estão sendo salvas da miséria em todo o mundo.

A crença no mercado livre e autorregulado é simplesmente um ato de fé. Ora, se é plausível admitir que o indivíduo moderno conheceu oportunidades de realização pessoal inauditas no capitalismo em comparação com o modo de produção feudal e o mercantilismo, também é forçoso reconhecer que esse sistema econômico nunca gerou solidariedade social suficiente para distribuir de forma justa a riqueza nele produzida. Nesse sistema, que esculpiu o mundo à sua imagem e semelhança com sucessivas crises de acumulação capitalista, desenvolveu-se um mercado financeiro cuja dinâmica destronou a ideologia do lasseiz-faire, tornando-se o expediente da concentração de capital mediante cartéis e monopólios.

Ora, se nunca existiu uma economia de mercado realmente livre, a defesa da ausência de regulamentação do Estado seria, no mínimo, uma inconsequência em face dos desafios que envolvem a busca de equilíbrio entre as relações de mercado e a garantia de direitos sociais previstos constitucionalmente. Voltando à famigerada EC 95, à qual Bolsonaro deu o seu voto de aprovação na Câmara, o que nos é oferecido? Poderíamos resumir na forma de um “modelinho” de causa e efeito: o governo paga uma taxa de juros alta (1); o mercado financeiro acomoda-se à taxa básica de juros aumentando as suas taxas para o crédito ao consumidor e às empresas (2); o crédito caro reduz a demanda das pessoas e as empresas reagem reduzindo o investimento (3); demanda menor implica, tendencialmente, queda da inflação (4); esta é alcançada assumindo-se, todavia, a queda do crescimento econômico e o aumento da taxa de desemprego sob o estresse da manutenção do pagamento do principal e dos juros da dívida (5). Daí, fecha-se um círculo vicioso no debate econômico, reduzindo este ao discurso de austeridade fiscal (“não cabem todos no orçamento”) que oculta a submissão do interesse nacional ao rentismo financeiro (“o país honra os seus contratos”).

Bolsonaro seria exceção à regra? Apoiando-se na retórica do “Estado mínimo”, o presidenciável retoma o ideário das “privatizações e concessões” enquanto instrumentos de gestão que “deverão ser obrigatoriamente utilizados para o pagamento da dívida pública”. Uma vez mais, verifica-se a postulação de um mercado livre que, entregue a si mesmo, consumaria à perfeição o sonho liberal:

[...] devemos ressaltar que a linha mestra de nosso processo de privatizações terá como norte o aumento na competição entre empresas. Afinal, com mais empresas concorrendo no mercado a situação do consumidor melhora e ele passa a ter acesso a mais opções, de melhor qualidade e a um preço mais barato.

Quais seriam os critérios para delimitar interesses estratégicos nessa proposta (ameaça?) de uma política agressiva de alienação dos ativos nacionais? O programa de Bolsonaro talvez ofereça alguma pista ao tropegar pelo tema do comércio internacional. Aqui, no entanto, topamos com premissas temerárias. Inicia-se com um pretenso diagnóstico: seríamos um dos países menos abertos ao comércio internacional e, portanto, estaríamos menos aptos a competir em mercados de alta tecnologia. O remédio? Lançarmo-nos de peito aberto à competição internacional com a redução de alíquotas de importação e de barreiras não-tarifárias e, não menos, com a instituição de novos acordos bilaterais. Para o “capitão”, o comércio internacional lograria um “choque tecnológico positivo”, caracterizando a senha para os ganhos de produtividade e o crescimento econômico. Nos termos propostos, a fusão (em andamento) da Embraer com a Boeing seria um salto qualitativo para nossa aviação comercial...

O que ignora por completo Bolsonaro et caterva? Na atual divisão internacional do trabalho, os verdadeiros saltos se dão pela acumulação técnico-científica feita em casa, na medida em que o progresso técnico se irradia através de produtos protegidos por patentes. Estas, por óbvio, tendem a cristalizar a diferença qualitativa no intercâmbio comercial de países industrialmente avançados com outros que, tais como o Brasil, não priorizam C&T, lembrando que enfrentamos um severo processo de desindustrialização, cenário no qual o aceno para o livre-cambismo feito por Bolsonaro pode intensificar a crise da receita pública.

Por fim, tive um trabalho adicional neste castigo que foi passar a limpo o programa do “capitão”: contar as ocorrências das palavras “privatizar”, “privatização” ou “privatizações”. Estas foram mencionadas nove vezes. Em contrapartida, a palavra “soberania” foi citada uma só vez.

Sob a enxurrada de notícias falsas e “memes”, uma agenda ultraliberal se impõe com demonstrações raivosas de adesão ao pretendente a führer tropical.

Ah!, sim, a bandeira deles é verde-amarela...




[1] http://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/brasil/53635/apoiadores-de-bolsonaro-realizaram-pelo-menos-50-ataques-em-todo-o-pais
[2] http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2018/propostas-de-candidatos
[3] https://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/10/os-366-deputados-que-aprovaram-pec-241-proposta-que-congela-investimentos.html

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