Foto: José Fernando Ogura/AEN |
* Leonardo Sacramento
Por que a Secretaria
Estadual de Educação de São Paulo está usando vídeos do Brasil Paralelo e MBL?[i] Por que fundações de
bancos e bilionários, como Fundação Lemann, Instituto Itaú Social e Instituto Ayrton
Sena, se instalaram no Ministério da Educação? Qual é a relação do Brasil
Paralelo e MBL com a Fundação Lemann, Instituto Itaú Social e Instituto Ayrton
Sena? Qual é a relação entre revisionismo reacionário e neoliberalismo? Qual é a
articulação de institutos da burguesia e “movimentos” da extrema-direita com as
propostas de Educação Integral, Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e Novo
Ensino Médio?
A esquerda defende uma formação
ampla e humanista vinculada ontologicamente ao trabalho, às artes, à filosofia
e à compreensão da realidade, ou seja, uma educação cujo princípio esteja no
trabalho enquanto elemento que nos faz humanos. A classe dominante, em
contrapartida, sempre impôs uma educação para o emprego, ou melhor, à adaptação
ao emprego. Formar, à luz do taylorismo, do fordismo e do toytismo, o
trabalhador produtivo. Contudo, estamos sob o neoliberalismo. A nova proposta
educacional do capital é formar para o “não emprego”, pois não existem mais. Dessa
forma, o neoliberalismo transforma educação integral em educação de tempo
integral procurando preencher o tempo do jovem sem emprego com uma matriz
distinta da formação parcializada sob a acumulação fordista/taylorista e/ou
toyotista. A parcialidade não é mais suficiente.
A conjuntura neoliberal é complexa. A
expectativa da geração mais nova de ultrapassar a renda dos pais, reproduzindo
ao menos os seus empregos, em conformidade com o sonho da classe média dos
Estados de Bem-Estar Social nos países centrais no pós-guerra, não existe mais.
Há duas gerações, no mínimo, a renda cai em relação aos pais. Se antes setores específicos
da classe trabalhadora tinham acesso à casa própria, emprego razoavelmente
estável e um salário com bom poder aquisitivo, hoje se amontoam gerações de
jovens sem qualquer expectativa de reprodução positiva de classe, resultando na
ascensão de ideologias fascistas da extrema-direita sobre jovens homens e brancos,
como o neonazismo.
Explicações simplistas trabalhadas
nas redes sociais e deep web, como as que responsabilizam a imigração
nos países centrais e as políticas afirmativas no Brasil, são propagadas
abertamente como um falso paradoxo à esfinge do bom liberal que se utiliza do
fascismo para aprovar reformas ultraneoliberais. Os banqueiros também disputam
os jovens e, não paradoxalmente, na prática se aliam a movimentos de
extrema-direita vinculados à essência de qualquer grupo neonazista, como o MBL
e o Brasil Paralelo. O negacionismo é um método político. Somente é possível negar
a exploração capitalista sob a hegemonia da acumulação rentista por meio da
negação da História (materialismo histórico), transformando o indivíduo em
senhor de si, ou como dizia Hayek, no indivíduo soberano, inclusive (por que
não?) em oposição à soberania do Estado-Nação.
Para as
fundações de banqueiros e bilionários, faltariam aos “pobres” estudo e educação
para gerarem renda, ressuscitando preceitos apologéticos da Teoria do Capital Humano,
agora insuflados pela Teologia da Prosperidade. Essa nova proposta dialoga com
a defesa de uma escola bifurcada, uma para a classe trabalhadora e outra para a
classe média tradicional e a burguesia, ao mesmo tempo que se aproxima de
problemas urgentes da classe trabalhadora, como o afastamento do filho da
violência. Logo, é eficiente politicamente.
A educação em
tempo integral, a BNCC e o Novo Ensino Médio se fundamentam em teorias e
propostas utilitaristas, solipsistas e fragmentadas, com a apresentação de
proposituras anticientíficas que mitificam a realidade, como o
empreendedorismo. Para tanto, fundamentam-se em uma lógica oficineira, na qual
tudo pode ser conhecimento escolar por meio de uma transposição mecânica da
ideologia empresarial para a classe trabalhadora (“pequeno patrão”).
Os professores
não devem mais ter formação, pois devem ser polivalentes, práticos e com
formação “fluída”, derivando uma enorme fragmentação da realidade que aliena
ainda mais o aluno por tornar a miséria produto de suas escolhas.
Ciência não
existe mais. É um ensino negacionista. É o que explica a utilização de vídeos
do Brasil Paralelo e MBL, uma vez que agora os conhecimentos não científicos são
o parâmetro pedagógico ideal para a adaptação da classe à exploração neoliberal
(precarização, somatização de doenças e ausência de perspectiva). Ocorre que
não são apenas os vídeos. O golpe já foi dado.
A implosão das
bases cientificas do trabalho pedagógico é legalizada e legitimada na BNCC e no
Novo Ensino Médio. Essas duas medidas relativizam o conhecimento científico,
tornando-o em saberes e competências a serem apreendidos pelo jovem em um mundo
que seria informatizado e tecnológico. Se o Brasil passa por um processo de
desindustrialização e desnacionalização de sua economia pouco importa, pois a
tecnologia pensada e trabalhada é a do senso comum, é a das plataformas
precarizantes como Uber e Ifood e de aplicativos de celular. Em outras
palavras, é a radicalização de uma abordagem fetichista da tecnologia submetida
à perspectiva do consumidor e do trabalhador precarizado formados pela
ideologia do pequeno patrão.
O negacionismo
historiográfico, histórico e sociológico é fundamental para os segmentos
sociais dominantes porque naturaliza a posição que possuem, transmitindo a
ideia liberal-escolanovista de que conseguiram o status em uma disputa aberta e
justa sobre um sistema meritocrático que formou uma sociedade alicerçada na
“hierarquia das capacidades”.[ii]
O autoritarismo da escolha da profissão, por exemplo, se daria apenas se o
Estado interviesse, jamais como produto das relações econômicas, sociais e
políticas.
Assim,
assiste-se à glorificação pelo ideário liberal das figuras do herdeiro
escravista oitocentista e do bilionário salvador enquanto o mesmo ideário
justifica a oposição à legislação trabalhista, às cotas e ao Bolsa-Família,
refutando qualquer intervenção do Estado (autoritarismo), inclusive para
salvamento de vidas em eventos ambientais e climáticos, como ocorre no Rio
Grande do Sul.
É aqui que
entram o MBL e o Brasil Paralelo na jogada. Negação do papel do escravismo, do
embranquecimento, da segregação e da desigualdade para a concentração de
capitais e da propriedade privada reforça a ideologia da classe dominante que
não pode mais disfarçar as mazelas do neoliberalismo, ao mesmo tempo que
precisa naturalizar ideologicamente os seus capitais ocultando as suas origens
e seus “pecados”. No limite, há a defesa da negação da exploração do capital
sobre o trabalho, cuja defesa das mazelas do capitalismo em sua fase rentista fetichiza
o indivíduo “selecionado e forte” (darwinismo social), transformando-as em
currículo positivo ao jovem com uma educação adaptativa para o não emprego.
Chamemos de fetichismo da meritocracia.
Antes do
negacionismo biológico e físico, que negam a vacina e o formato do planeta, o
negacionismo histórico, historiográfico e sociológico foi, por anos, arma de
luta da classe dominante usada por grupos que se popularizaram com forte
financiamento do capital e auxílio dos algoritmos das plataformas privadas de
bilionários estrangeiros. Legitimado, o negacionismo entrou no currículo
articulado no Ministério da Educação por fundações de direito privado ligados a
bilionários objetivando naturalizar a acumulação rentista.
A atuação
desses grandes bancos não pode ser entendida como normalmente se apresenta, na
qual estaria circunscrita em ganhar recursos de secretarias e ministério e
isentá-los no imposto de renda. São aspectos absolutamente marginais do trabalho
das fundações de bilionários. Muitas vezes, a atuação desses institutos não
possui qualquer transferência de recursos públicos.[iii]
Não faz sentido pensar com essa variável mecanicista, pois nenhum setor acumula
mais do que bancos e rentistas por meio da isenção de lucros e dividendos e das
exorbitantes taxas bancárias e de juros. O interesse está na formação do
trabalhador neoliberal.
É que se
percebe nas propostas do governo do Estado de São Paulo, possuidor da rede que
mais avançou em tais políticas em virtude de sua aplicação ininterrupta por 30
anos. Reproduzimos no presente texto uma proposta da aula de “liderança” da
rede estadual para alunos do ensino médio. As três primeiras fotos são da aula
de “liderança”, tratando um conceito não científico, a resiliência. Aqui o
aluno é preparado para suportar o não emprego e convencido a entender a
realidade a partir de sua vida e “escolhas”.
Foto 1
Foto 3
A autora
utilizada (foto 2), Diane L. Couti, é uma coaching (jornalista) que escreveu um
artigo denominado How
Resilience Works
na Havard Business Review. Não há qualquer citação de dado científico no
pequeno artigo, o qual é jornalístico e panfletário. As referências da jornalista são
frases de CEOs de grandes empresas em que é destacado um pensamento do
CEO Dean Becker: “Mais do que educação, mais do que experiência,
mais do que formação, o nível de resiliência de uma pessoa determinará quem
terá sucesso e quem fracassará. Isso é verdade no adoecimento de câncer, é
verdade nas Olimpíadas e é verdade na sala de reuniões”. Qual é o parâmetro científico dessa besteira
normalmente proferida por coachings?
A conclusão da
aula (foto 3) exige que os alunos passem a aplicar o que aprenderam, a
“resiliência”, encarando “a realidade” e buscando “sentido” para “improvisar”.
A realidade, produto das relações de produção, da exploração e da desigualdade,
é mistificada porque deve ser apreendida para ser encarada, ou melhor, aceita
como ela é para ser suportada. Não existe mais a aprendizagem, a compreensão e
a análise. A improvisação, por sua vez, é uma figura de linguagem malfeita para
que o aluno “se vire”.
As três fotos
seguintes mostram o que seria a aula de sociologia.
Foto 4
Foto 5
Foto 6
Concatenada
com a aula de “liderança”, os alunos são convencidos na aula de sociologia a
acreditar que “ansiedade” e “depressão” são frutos do “consumismo” porque viveriam
em uma “sociedade de consumidores”. Aqui se tem literalmente a ideia apregoada
por qualquer think tank neoliberal que não existiriam classes sociais, mas
apenas indivíduos consumidores, na qual a sociedade não possuiria qualquer
dimensão coletiva por estar submetida aos gostos dos consumidores e à
precificação das mercadorias em relação de oferta e demanda cuja variável
determinante seria o consumo. Logo, quem tem poder é o consumidor em detrimento
da cidadania emanada da Constituição de 1988 (políticas sociais), do
trabalhador e do movimento político.
Nega-se a
existência de classes, racismo, especulação imobiliária, concentração de terra,
acumulação de capitais, exploração etc. Mesmo conceitos mais amenos, como gentrificação,
são expelidos do material didático. A aula de sociologia dialoga com a aula de
“liderança” na medida que exige ao aluno praticar um novo comportamento
adaptativo e adaptável à “realidade”, com “condutas éticas frente aos desafios
da sociedade de consumidores”. Se há alguma luta, é como consumidor, escolhendo
não consumir produtos de empresas “que prejudicam seus empregados, a
sociedade ou o meio ambiente”. O pronome possessivo “seus” dando direito de
propriedade à empresa não foi um erro.
Se o aluno
enquanto indivíduo conseguir superar o “consumismo” por meio do poder da mente
(charlatanismo), ou seja, não querer consumir o que é convencido (sugestionado)
por meio de propagandas de grandes complexos industriais-financeiros desde que
nasceu, não terá “depressão” e “ansiedade”. A lógica implícita é a de uma aula
de autoajuda, não ornando com os dados mais básicos: o grupo social que mais
comete suicídio é o de trabalhadoras negras, aquelas que, comprovadamente,
possuem menor renda, piores trabalhos, menor consumo e, por conseguinte, o que
o material chama de “consumismo”. O material irresponsavelmente estabelece uma
relação criminosa de causa e efeito entre consumo e depressão, na qual a
depressão poderia ser evitada com um consumo “responsável” (sic!).
A entrada do Brasil Paralelo e do MBL é uma consequência coerente do negacionismo neoliberal. Na prática, tais movimentos de extrema-direita já estão na educação brasileira há alguns anos, especialmente no Ministério da Educação, representados oficialmente por Fundação Lemann, Instituto Itaú Social e Instituto Airton Sena. É uma proposta de educação para o não emprego amparada exclusivamente pelo negacionismo científico como método didático-pedagógico e matriz curricular nacional. É a expressão da vitória do neoliberalismo.
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[i] Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/noticia/2024/05/06/depois-de-aula-com-material-do-mbl-rede-estadual-de-sp-usa-brasil-paralelo-como-material-pedagogico.ghtml.
[ii] O termo é presente no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932.
[iii] “A Fundação Lemann defendeu o acordo
de cooperação entre o MEC (Ministério da Educação) e a ONG MegaEdu, financiada
pelo grupo ligado a Jorge Paulo Lemann. Em nota publicada na 2ª feira (25. set.
2023), a fundação diz que a parceria ‘não envolve nenhum tipo de transferência
de recursos’”. Disponível em https://www.poder360.com.br/educacao/fundacao-lemann-defende-parceria-de-ong-com-o-governo/#:~:text=A%20Funda%C3%A7%C3%A3o%20Lemann%20defendeu%20o,tipo%20de%20transfer%C3%AAncia%20de%20recursos%E2%80%9D.
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