quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Quem pragueja contra o comunismo sabe o que é liberalismo? (parte 2)


Quem pragueja contra o comunismo sabe o que é liberalismo? (parte 2)

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Traçados os pressupostos para a questão educacional (ver parte 1), definamos os pontos de referência na tradição liberal que facilitarão uma abordagem comparativa dos programas de governo de Fernando Haddad e Jair Bolsonaro. Para interligá-los, é fortuito indagarmos como uma visão de mundo igualitária pode ou não se concretizar em uma sociedade nacional.

Segundo Álvaro de Vita[1], ninguém melhor do que John Ralws sistematizou teoricamente a defesa do igual valor dignitário dos indivíduos sem, contudo, abrir mão das premissas liberais da ideia de autonomia que a modernidade nos legou. Seguindo os passos da “justiça rawlsiana”, Vita elenca três tipos de bens que devem ser considerados no tocante à gestão dos conflitos distributivos:

- Renda, riqueza, acesso a oportunidades educacionais e ocupacionais, provisão de serviços (bens passíveis de distribuição);

- Conhecimento e auto-respeito (bens não passíveis de serem distribuídos diretamente, mas que são afetados pelo modo como os primeiros são distribuídos);

- Capacidades físicas e mentais de uma pessoa (bens cuja distribuição em dada população não são condicionados pela distribuição de outros bens).

O primeiro e segundo tipos constituem os "bens primários", que, embora vinculem a todos pelo valor intrínseco que possuem, são afetados por contingências naturais e sociais que impedem ou, ao menos, dificultam os indivíduos retirarem deles um benefício mútuo. Sendo assim, como assegurar a cooperação social entre os mais e menos dotados de recursos escassos de todo tipo? Para Vita, o enfoque liberal-igualitário de Ralws vislumbra três princípios distintos para a distribuição de benefícios sociais e econômicos.

O primeiro deles seria a liberdade natural, do qual se extrai a visão política mais aproximada do liberalismo econômico, uma vez que esse princípio sugere a combinação de ordem social competitiva com igualdade formal de oportunidades como condição suficiente para garantir a todos os mesmos direitos de acesso às melhores posições sociais. Nesta versão do liberalismo, tão decantada no senso comum pela ideologia da mérito, não se ofereceria, na prática, uma solução a contento para as desigualdades raciais, de gênero e étnicas que as relações de mercado acomodam em contrariedade àquilo que prometem: a inexistência de barreiras legais para o exercício dos próprios talentos e capacidades sob o veredicto escolar.

A tentativa de superar um padrão de desigualdade atribuível a fatores naturais e sociais que estão fora do alcance da escolha individual e que, portanto, tende a se perpetuar de modo arbitrário, redundou no segundo princípio, a igualdade liberal de oportunidades. Nesta forma de igualação, tenta-se viabilizar um ponto de partida em que não haja constrangimentos externos à vontade dos indivíduos que tenham destrezas semelhantes, bem como motivação para realizá-las conforme suas predileções. Para tanto, todo um complexo institucional haveria de ser erguido em torno da efetiva igualdade de status de cidadania, liberando assim os indivíduos de contingências (lugar de origem, caracteres raciais adscritos, entre outras) que limitassem suas perspectivas de realização pessoal. Aqui, importa reconhecer que a estratificação social não deveria ser a medida de todas coisas para o senso de pertencimento dos indivíduos a uma civilização que seria em si mesma um bem comum.

Não obstante, um ponto de partida desigual será assumido in totum se aceitarmos que o horizonte histórico não transcenderá, até prova em contrário, a sociedade de classes capitalista. No primeiro princípio (liberdade natural), não se daria margem alguma a ponderações desse tipo. Já no segundo (igualdade liberal de oportunidades), esse condicionante estrutural apareceria de maneira subliminar como um problema. A desigualdade de classe se mantem na medida em que recursos intangíveis (background familiar, capital cultural) são transmissíveis de geração a geração sob um verniz meritocrático que ocultaria a falta de contrapartida aos desprovidos de vantagens sociais herdadas, condenando-os, pois, à condição de (sub)cidadãos.

Frente ao caráter inconcluso daquele problema, vem à tona um terceiro princípio, a igualdade democrática. Aqui encontramos uma espécie de especulação sobre a motivação moral de um indivíduo para que um novo padrão distributivo tenha eficácia. Ora, testar o seu próprio desempenho para fins de classificação em carreiras profissionais privilegiadas e, sobretudo, instrumentalizar-se para tal são disposições de agir específicas, isto é, implicam uma socialização de certas atitudes de classe que, digamos, faça com que as (auto)profecias se realizem. Se não escolho livremente os dotes genéticos nem a circunstância social que me facultam desenvolver talentos naturais suscetíveis de serem mais valorizados do que outros em um dado arranjo socioeconômico, por que seria legítimo supor que poucos devam obter a maior parte dos frutos da cooperação social? Vita lembra que essa arguição na obra de Ralws é controversa, já que lançaria um ataque frontal à “cidadela última para onde políticos e economistas conservadores recuam quando querem justificar as desigualdades sociais existentes”. O igual valor dignitário dos indivíduos não encontraria rival à altura se a fraternidade fosse, de fato, o ponto médio de um pêndulo que oscilasse entre as aspirações à liberdade e à igualdade:

O princípio de igualdade democrática requer que os mais privilegiados abram mão de tirar proveito das circunstâncias sociais e naturais que os beneficiam, a não ser quando fazê-lo beneficia também os que têm o menor quinhão de bens primários (VITA, 1999, p.48).

Revistas essas concepções normativas de justiça social em seu sentido amplo, passaremos à leitura dos programas de governo na terceira e última parte desse texto (a publicar). Inicialmente, cogitei avaliá-los já nesta segunda parte, porém creio não ser construtivo fatigá-los com um texto demasiado extenso. Adianto apenas que o recorte que farei das agendas educacionais propostas por Haddad e Bolsonaro privilegiará as ações voltadas ao ensino pré-escolar e fundamental, por entender que esse período da aprendizagem é crucial para ampliar as possibilidades de superação das desigualdades frente à cultura.



[1] Vita, Álvaro de. Uma concepção liberal-igualitária de justiça distributivaRevista Brasileira de Ciências Sociais, Fev. 1999, vol. 14, nº 39, p.41-59. ISSN 0102-6909

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