Feminicídio: até quando seguiremos assistindo essa violência?*
* Publicado originalmente em Brasil de Fato.
Luciane Silva** & Michely Lazarini**
No mesmo dia de junho de 2021, duas mulheres foram atingidas na cidade de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro, por homens com uso de armas brancas. Uma delas, foi atingida e assassinada em uma praça de alimentação de um shopping em seu horário de almoço. Jovem como seu assassino, buscava em um curso de enfermagem o mesmo que outras milhares de mulheres: qualificação.
Ao
longo dos últimos anos temos produzido matérias, lives, textos,
manifestos sobre o feminicídio. E ao revisar este material, era obrigatório
pensar qual contribuição pode ser dada em um novo texto. Já falamos de
socialização de meninas (e como se aprende o que é azul e o que é rosa), já
falamos da violação de mulheres, da rede de pedofilia em Guarus, do levante
feito por mulheres com o "Ele Não!" em 2018.
E
de lá para cá todos os dossiês, institutos de pesquisas, dados de delegacia e
manchetes de jornais, mostram o aumento de casos de morte de mulheres -
tipificado como feminicídio desde 2015, sob a lei 13.104/2015 que altera o
Código Penal.
Servir-se
da ciência em tempos de negacionismo é ir além do que já foi pontuado sobre o
comportamento masculino. E mais, contrariar aquilo que muitas vezes é
apresentado como explicação científica mas em nada coopera para compreender o
fenômeno do aumento e da banalização da morte de mulheres.
Ao
fazermos uma busca pelo termo “facada” na tentativa de compreender sua
ocorrência, encontramos mais de 300 casos recentes espalhados pelo país. Novo
Hamburgo, Belo Horizonte, Ribeirão Preto, Taguatinga, Campos dos Goytacazes, em
pequenas, médias e grandes cidades do Brasil. O discurso de ódio se
intensificou desde 2018 e precisamos ler o pesquisador alemão
Theodor Adorno e sua produção sobre a personalidade fascista para entender
as relações entre capitalismo, psicanálise e frustração.
Vamos
apresentar esta discussão a partir de pontos que podem ser avaliadas pelos
leitores:
-
O uso de armas brancas e outros instrumentos domésticos é feito com
emprego de crueldade contra a vítima. Desfigurar, mutilar após a morte
arrancando pedaços do corpo, violar sexualmente, todos estes atos são parte do
assassinato. Em um caso recente, ocorrido no Distrito Federal, o ex-namorado
confessou à polícia ter permanecido no apartamento “vendo a vítima agonizar,
gemer e gesticular”;
-
É comum a alegação de que “nunca pensamos que isto irá ocorrer conosco”.
Mas em uma pesquisa nas redes sociais de vítimas e analisando reportagens
recentes, é possível encontrar casos que se entrelaçam, mulheres pesquisando ou
militando pelo direito à vida que acabam assassinadas por motivos fúteis em via
pública;
-
Não são raros os casos em que um assalto se transforma em estupro e
feminicídio. Em um caso recente, a servidora pública de 49 anos, Luciana de
Mello, termina seu relacionamento ao saber da morte de Letícia Curado de 26
anos (ela passa a refletir sobre a natureza abusiva de seu relacionamento). O
assassino de Letícia, confessa ter assassinado também Genir Pereira de Souza,
no mesmo ano, na mesma cidade;
-
A presença de filhos pequenos é uma variável importante a ser observada pois
agrava a pena. Em um dos casos, a vítima foi jogada em um poço na frente do
filho de oito anos de idade. Em outro caso, em Ribeirão Preto, ocorreu um
feminicídio triplo. Não só a morte de uma mulher de 41 anos mas de suas duas
filhas;
-
As acusações variam de traição até reclamações na volta de um bar. Recentemente
uma mulher de 40 anos foi morta por discussão no Final da Copa Libertadores.
Ele era corintiano e ela palmeirense. O casal tinha filhos gêmeos.
Em
primeiro lugar, a idade dos envolvidos em casos recentes de feminicídio. Se
estamos discutindo gênero e alguns alegam que estes são comportamentos de outra
geração, o que vimos no caso do shopping de Niterói foi um jovem de 21 anos
assassinar sua colega por recusar uma oferta de paixão. Esse caso aciona um
sinal vermelho para as formas de socialização não apenas nas escolas mas em
família, trabalho e círculo de amigos.
Em
segundo lugar, toda a construção midiática das mulheres segue transformando seu
corpo em objeto de consumo e erotização. Em sites adultos, esta erotização vem
acompanhada de violência e frequentemente de submissão. A centralidade da
propriedade sobre o corpo feminino segue sendo a principal forma de construção
da masculinidade?
Precisamos
discutir a forma de acesso destes adolescentes à pornografia e como eles
imaginam que deva ser uma relação com outra mulher. Tão cedo já vemos um
comportamento padrão: esperar meninas de 15 anos na frente da escola,
afastá-las dos amigos e família, tudo isto, embora conhecido, continua sendo
aceito e justificado.
Os
“surtos” de violência seguidos de pedidos de desculpa que instauram um ciclo
cujo desfecho tem se tornado muito frequente. Bater com a cabeça da namorada
contra a parede, impedir sua saída, trancar portas, forçar relações sexuais,
produzir hematomas, deixar alguma marca permanente como lembrança e ameaça.
Atos presentes em relacionamentos abusivos.
Em
terceiro lugar, temos lido sobre transtornos, bipolaridade, esquizofrenia e
comportamento na área de psicologia. É possível ir além: é um erro
patologizar o assassino como um homem com problemas psíquicos. Não só porque
esta forma de matar mulheres é um fato social (e é objeto da sociologia a
considerar a alteração recente do número de mortes) mas também porque banaliza
a psicologia e o tipo de sofrimento que esta ciência trata em seus conteúdos.
Não
estamos falando de nenhuma doença ou anomalia em 70% dos casos. Estamos falando
de uma relação entre indivíduo e sociedade e não de um desvio biológico ou algo
semelhante às teorias lombrosianas do século XIX.
Para
concluir, até que possamos enfrentar com seriedade o assédio cotidiano nas
escolas, universidades, bancos, casas de família, delegacias, quartéis,
igrejas, bares, enfim. Até que façamos algo que coloque limites as formas de
assédio, não teremos qualquer avanço no combate ao feminicídio.
São
dois fenômenos intensamente conectados. Precisamos de políticas públicas, redes
de assistência, alteração da forma midiática de tratar o feminicídio. O que não
precisamos é da insensibilidade e do ódio que culpam a vítima pela violência
sofrida.
**
Pesquisadoras do Núcleo Cidade, Cultura e Conflito da Universidade Estadual
do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).
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