quinta-feira, 22 de agosto de 2024

PT de Campos dos Goytacazes, o partido que virou suco - Douglas Barreto da Mata

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PT de Campos dos Goytacazes, o partido que virou suco

Douglas Barreto da Mata** 

Um breve histórico sobre o Partido dos Trabalhadores, que nasce como uma junção de setores de movimentos políticos que resistiram à ditadura cívico-militar com outros setores mais recentes, no fim da década de 70, início dos anos 80.

 Uma base eclesial, que tinha como orientação a Teoria da Libertação, egressos da resistência armada e exilados que retornavam, integrantes do movimento estudantil, que ressurgia, intelectuais, artistas, e claro, o movimento operário do ABC de São Paulo, que era quase hegemônico no partido (e de certa forma, ainda é, senão como movimento operário, mas pelo domínio paulista).

 Essa mistura pariu várias tendências, que davam um aspecto de cacofonia partidária, que não raro era considerado um ambiente impossível de se fazer política, dada a tradição do caciquismo político nacional.

 Não foi esse o problema do PT, nem no Brasil, nem em Campos dos Goytacazes.

 Na planície goytacá, o partido nasce da iniciativa de servidores públicos (como em boa parte das capitais, exceto SP, ABC paulista e outras regiões industriais), setores da Igreja Católica (como resposta ao enclave ultra tradicionalista local), e algumas lideranças rurais, já que a dinâmica econômica campista não permitia a existência de um movimento operário forte.

 A atividade industrial por aqui sempre foi ligada à agroindústria, no ramo de fabricação e manutenção de insumos para as plantas das usinas, ou para a manutenção de bens de capital, usados na lavoura (material rodante, caminhões, etc).

 Foi assim que o PT de Campos surge, bem no meio do início da transição econômica da economia agroindustrial para o extrativismo de hidrocarbonetos.

 Em 1980, 1981 ainda não se falava de petróleo ou de royalties, mas já eram ouvidos os primeiros ruídos da fratura das oligarquias rurais.

 Data desta época a estranha simbiose entre o PT  comum fenômeno da comunicação de massas local, que usava o rádio, então a plataforma que atingia os mais pobres da cidade e, principalmente, os alcançava onde a TV não ia, no interior.

 Anthony Garotinho é um dos fundadores do PT, e olhando hoje a situação do partido na cidade, isso explica muita coisa.

 Desde então, a vida partidária do PT local se resume a amar odiar ou a odiar amar o ex-deputado estadual, ex-deputado federal, ex-prefeito e ex-governador, e duas vezes secretário estadual, uma vez de agricultura, com Brizola, e depois, de segurança, com sua esposa como governadora.

 Mas por que o PT ama odiar a família Garotinho?

 Em 1988, o PT racha, sendo que uma parte sai para a campanha do então candidato a prefeito, Garotinho, que concorria contra o cambaleante Zezé Barbosa (avô de Rafael Diniz), e a outra parte defende e leva adiante um candidato, Luiz Antônio Magalhães.

 Daquele momento até hoje, reduzindo um pouco as coisas, é possível afirmar que o PT se uniu e se separou do clã Garotinho quase sempre sem conquistar nada, nem na entrada, nem na saída.

 Isso se estende aos aliados da família que se transformaram em opositores do clã.

 Ou seja, ainda que buscando alternativa, esse deslocamento sempre se deu com pouco acúmulo, ou como resultado de arranjos “vindos de cima”, em sua maioria, para submeter o interior e a capital do Rio de Janeiro às demandas de Lula e do PT/SP.

 O PT esteve no governo Arnaldo Vianna, esteve junto com Garotinho no seu primeiro governo estadual, até o rompimento, esteve com Carlos Alberto Campista (dissidente do grupo dos Garotinhos), esteve com o desastre Alexandre Mocaiber, e por último, com a catástrofe Rafael Diniz.

 Sempre a reboque, sempre na hora errada, pelos motivos errados, ou pior, sem qualquer motivo que valesse à pena.

 Há episódios de bons resultados eleitorais, como os irmãos Rangel (Antônio Carlos e Zé Maria), e Makhoul Moussalem.

 Mais uma vez, estes projetos pessoais nunca repercutiram na vida do partido, ou se repercutiram, apenas para dar mais dimensão aos personagens, que se encolheram em seus projetos personalíssimos.

 O partido que vira suco.

 Toda essa trajetória e nosso vínculo afetivo com o partido nos levaram ao exercício de tecer algumas análises, todas, sem exceção, publicadas no Blog do Pedlowski.

 Em junho de 2024 fizemos uma análise mais ampla:

https://blogdopedlowski.com/2024/06/20/o-pt-e-sua-singularidade/

 Depois passamos ao escrutínio na cena campista.

 O processo de amadurecimento da campanha eleitoral petista, desse ano de 2024, nos chamou a atenção, já que a conjuntura nos mostrava pouco espaço de manobra para o partido, soterrado por um avanço do conservadorismo, que se não é inédito por essas plagas, assumiu contornos mais agudos desde 2018.

 Talvez a cidade esteja no mesmo nível de ânimo conservador de sempre, mas o ruído produzido por setores mais extremados dão a impressão de um aumento da direita.

 Esta é a primeira noção que passa despercebida ao PT de Campos dos Goytacazes, talvez seduzido, mais uma vez, por acenos e atalhos patrocinados por forças políticas antagônicas aos Garotinhos.

 Encaixotado na disputa entre os Bacellar e os Garotinhos (como já aconteceu com cada um dos clãs que antagonizam os Garotinhos), o PT foi levado a promover um suicídio político-eleitoral, e aguardou uma candidata deputada estadual, que estava impedida, e que agia por ordem do clã Bacellar.

 A ideia era usar o partido como ponta de lança contra os Garotinhos, neste caso personificados no Wladimir Garotinho, para facilitar o caminho da extremista de direita, a delegada Madeleine.

 Falamos disso por aqui:


https://blogdopedlowski.com/2024/07/16/por-onde-anda-wally/

 Sem a candidata deputada, sem os votos dela, sem sequer sua presença, Jefferson Manhães, ex-reitor do IFF, neto do José Alves de Azevedo (que foi prefeito do PTB, e perdeu o cargo para um golpe de Zezé Barbosa, aliado dos militares), o PT de Campos ficou pendurado na brocha.

 Porém, como se tudo isso não fosse suficiente, o PT local insiste nesse papel secundário, de rabo de elefante, no lugar de ser cabeça de mosquito, como sempre falo.

 O caso do IDEB foi um clássico, onde Jefferson se aliou à extrema-direita para passar um vexame digno de Kim Kataguiri, ou de Carla Zambeli.

 Tratamos disso aqui:

 

https://blogdopedlowski.com/2024/08/18/o-ideb-separa-a-california-da-louisiana-mas-aproxima-o-pt-da-extrema-direita-em-campos/

  

Bem como antes falamos das possibilidades do PT em Campos:

 

https://blogdopedlowski.com/2024/08/12/o-pt-de-campos-e-suas-possibilidades-em-2024/

 Como se pode ver, há uma anacronismo tal nas ações do partido, que nem precisamos dar um aspecto cronológico nos textos.

 É como se fosse uma burrice atemporal, quase anti histórica mesmo, que nos leva de volta à questão:

 Por que o PT de Campos ama odiar os Garotinhos, e orienta toda sua trajetória a partir dele como referência, ao contrário do que deveria fazer, já que o PT de Campos diz ser a alternativa a esse modelo dos Garotinhos?

 Historicamente incapaz de adentrar no campo popular campista, segregado no eleitorado de classe média, cujo caráter tem sido mais sensível, ultimamente, às falas da extrema-direita, o PT de Campos ficou sem lugar, como resultado de um processo que não é recente.

 Em verdade, a nível nacional instalou-se certa esquizofrenia no PT quando a pauta “moralista” anticorrupção foi subtraída do partido (que a usava com maestria no fim dos anos 80 até o início dos anos 2000).

 Como teve que governar e fazer alianças, o partido afastou as bases sindicais, movimentos populares do campo e da cidade, e optou por dar ênfase ao institucionalismo e aos reclames da governabilidade, que como um círculo vicioso, ou um saco sem fundo, exigiu cada vez mais concessões, que por sua vez enfraquecia a base popular de mobilização, e cada vez mais fraco, o PT precisa ceder mais, e  por aí foi.

 Uma prova:

 Dilma foi golpeada, Lula preso, sem resistência.

 Nada.

 Em Campos dos Goytacazes esse problema se deu nos moldes das especificidades locais.

 Durante um tempo, os apelos moralistas do PT mantiveram uma parte do eleitorado classe média conservador e anti garotista.

 Com o advento da devassa do lawfare recente, que foi iniciado em 2006 (mensalão), a legenda desidratou.

 Porém, ao invés de optar por demarcar um campo político que afastasse a extrema-direita e seu discurso predileto (moralista), o PT escolheu disputar esse campo com os extremistas, o que parece-nos que vai levar o partido a ser reduzido ainda mais.

 Assim, ao invés de ter a coragem de falar o que tem que ser dito, como rico é que deve pagar imposto, desenvolvimento econômico desigual não nos serve, reforma agrária é urgente, etc, o PT de Campos tenta seguir o caminho da suavização envergonhada, pálida, brigando com IDEB, acendendo a mais horrorosa demonização e criminalização da pobreza e de populações de rua, fazendo coro às histerias da classe média.

 Bem, como não há espaço vazio em política, o PT corre o risco de contribuir para o isolamento do prefeito atual, ou pior, na sua reaproximação com setores mais radicais de direita.

 Não devemos cair na palermice de imaginar que a presença de Flávio Bolsonaro seja um sinal de que Wladimir Garotinho pendeu para aquele espectro da política.

 Só os tolos e os petistas, do tipo “Sou PT, mas voto Feijó”  defendem uma asneira dessas.

 Observar com honestidade o cenário estadual mostra que Wladimir atraiu Flávio, e interditou uma aliança com as facções mais exaltadas aqui no interior, e de certa forma, esse movimento se reflete no afastamento de uma parte dos Bolsonaros de Cláudio Castro e Cia, inclusive porque Carlos Bolsonaro vai disputar vaga para o senado, em detrimento do governador, ou de quem ele indicar.

 A percepção desse racha, com a presença do senador filho do ex-presidente, dão uma demonstração do faro fino do prefeito campista em aproveitar brechas e costurar alianças de todos os lados, fazendo interlocução simultânea com todas as matizes ideológicas.

 Sem um programa, e pior, sem interesse em fazer a diferença entre a extrema-direita representada na delegada e seus aliados do Governo do Estado e o atual prefeito, que ele mesmo reivindica um “centro” político que, se não existe, ao menos o torna mais ameno ao debate, o PT, mais uma vez, renuncia àqueles que seriam bons motivos para conversar com um “centro” (o que, aliás, é o que Lula faz todo o tempo), e embarca na canoa da extrema-direita, reproduzindo conceitos caros à ela, como eco.

 Por fim, o PT de Campos abre mão de renovar seu discurso de esquerda, com o qual poderia sentar à mesa e disputar espaço onde é possível disputar.

 Espremido pelas contingências e por sua própria inabilidade, deixando que a coordenação de campanha afunde o porvir partidário, eis que o PT de Campos virou suco.

* Disponível em: https://brasiliarios.com/images/estreladoPT1.jpg, acesso em 22 de agosto de 2024.

** Douglas Barreto da Mata, inspetor de polícia desde junho de 2003, com passagens por delegacias de São Gonçalo, Maricá, Rio das Ostras, Macaé e Campos dos Goytacazes. Formado em eletrotécnica pela então Escola Técnica Federal de Campos, atual IFF. Autodidata, marxista convicto e fã de Led Zeppelin, Chico Science, Nação Zumbi, e Mundo Livre S/A. Militante do PT desde 1986, onde integrou o diretório municipal de Campos dos Goytacazes e o diretório regional do RJ. Participou dos governos Arnaldo Vianna, na aliança PT/Garotinho em 1999/2000, na Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima e do governo Benedita da Silva, como chefe de gabinete da FENORTE, em 2001/2002. Editor do blog Planície Lamacenta.

domingo, 11 de agosto de 2024

"Lançamento do livro “Re-trabalhando as classes no diálogo Norte-Sul"


Lançamento do livro “Re-trabalhando as classes no diálogo Norte-Sul: trabalho e desigualdades no capitalismo pós-covid”, organizado por Elísio Estanque, Agnaldo de  Sousa Barbosa e Fabrício Maciel (Editora Unesp).

Exposição de Fabrício Maciel (COC/UFF/PPGSP/UENF)

Mediação de George Coutinho (COC/UFF)

Local: Auditório da UFF-Campos, R. José do Patrocínio 71. Bloco C, Auditório.

Data: 13/08/2024, 18 horas.


 

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

A eleição venezuelana de 2024 - Luis Felipe Miguel

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A eleição venezuelana de 2024**

Luis Felipe Miguel***

Somente os muito crédulos aceitam que as eleições na Venezuela foram limpas. A questão não é a discrepância com uma apuração privada paralela, um argumento obviamente sem pé nem cabeça e que aparece nas narrativas dos defensores de Maduro como maneira de desqualificar a crítica.

Vamos olhar para os percentuais quase redondos dos candidatos, implausíveis. Ou para o presidente venezuelano anunciando precocemente sua vitória, com percentuais exatos, faltando ainda um quinto das urnas a serem totalizadas. Ou para a ausência de apresentação das atas. Ou para o veto a observadores externos, quando seria fundamental para o regime garantir uma aparência de total lisura no processo.

Sem falar nas sucessivas investidas contra a oposição e no alinhamento quase ostensivo da justiça eleitoral ao governo.

Breno Altman, na Folha de ontem, disse que “o sistema eleitoral da Venezuela já foi elogiado por Jimmy Carter como um dos mais sólidos do mundo”. Esqueceu de dizer que a declaração foi feita em 2012. E que o Centro Carter, criado pelo ex-presidente estadunidense e especializado em acompanhamento de eleições, afirmou que a eleição de agora “não se adequou a parâmetros e padrões internacionais de integridade eleitoral e não pode ser considerada democrática”.

O fato de que a oposição as Maduro é hegemonizada por títeres do imperialismo estadunidense não muda essa realidade: até onde vista alcança, é muito mais provável que o pleito tenha sido fraudado.

Nada disso justifica, é claro, que uma potência estrangeira – os Estados Unidos – proclame que outro candidato foi o vencedor.

Não há como “reconhecer” uma vitória que não foi proclamada por nenhuma instituição oficial. O que os Estados Unidos e seus aliados tentam fazer, ao proclamar Edmundo González como vitorioso, é invalidar a soberania venezuelana e abrir caminho para um golpe.

É uma reedição da palhaçada com Juan Guaidó, proclamado “presidente” da Venezuela em 2019 por Donald Trump.

A posição oficial do Brasil está correta. Trata-se de exigir do governo venezuelano que apresente as atas e estabelecer um caminho de negociação para encontrar saídas para a crise – e para a construção de uma Venezuela soberana e democrática.

Não é o que querem os Estados Unidos. Nem, de fato, os defensores incondicionais de Maduro.

Vale a pena ler a entrevista do embaixador Benoni Belli, representante do Brasil na OEA, à Folha de S. Paulo.

Com o tato necessário, ele põe o dedo na ferida, explicando porque a OEA não foi capaz de aprovar uma resolução sobre a Venezuela (o texto apresentado pelos Estados Unidos foi rejeitado):

“Houve quem tentou criar uma falsa dicotomia entre defensores e detratores da democracia. Esse tipo de narrativa pode servir aos propósitos de ganhar pontos na política doméstica de alguns países, mas não se coaduna com a diplomacia multilateral, que exige negociação e busca de caminhos comuns”.

É preciso simultaneamente pressionar e respeitar o governo venezuelano.

A direção do PT lançou uma nota equivocada e Lula errou na declaração sobre a “normalidade” da situação. Mas a posição oficial do Brasil, expressa pelo Itamarati, pela representação na OEA e pelo comunicado conjunto com Colômbia e México, é correta.

A mesma imprensa que condena o governo por qualquer declaração mais enfática contra Israel quer hostilidade aberta contra a Venezuela – como se uma suspeita de fraude eleitoral fosse mais grave que um genocídio e como se não tivéssemos que ser cautelosos nas relações com um país vizinho. Mas é só vontade de ficar a serviço do imperialismo.

* Disponível em: https://chappatte.com/en/images/a-very-close-venezuelan-election, acesso em 05 de agosto de 2024.

** Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor em 05 de agosto de 2024: https://www.facebook.com/luisfelipemiguel.unb  

*** Professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). Está lançando este ano, pela editora Boitempo, o seu "Marxismo e política: modos de usar".

terça-feira, 30 de julho de 2024

Eleições 2024 e o “efeito Witzel” - George Coutinho

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 Eleições 2024 e o “efeito Witzel” **

 George Gomes Coutinho ***

 

Ando acompanhando com muita atenção as entrevistas de candidatos/pré-candidatos a prefeito(a) de Campos para estas eleições. Eis uma das melhores maneiras de conhecer justamente o que a classe política local anda pensando, sobre eles mesmos e sobre a cidade.

Neste trabalho de audição atenta e respeitosa, um ponto tem se repetido, especialmente entre os nomes mais à direita: a esperança no que estou chamando de “efeito Witzel”. Me explico.

Nas eleições de 2018 tivemos o crescimento espantoso das intenções de voto de Wilson Witzel, ex-governador impichado do RJ e também meu colega no PPGCP/UFF em Niterói. Antes de prosseguir advirto ao leitor que não tenho nenhuma responsabilidade nos dois pontos biográficos que citei. Fiz até mesmo declaração pública de voto em Eduardo Paes para o Governo do Estado naquela ocasião.

De todo modo Witzel, até então um ilustre desconhecido e muitas vezes apelidado de Pretzel entre seus detratores, disparou na reta final nas intenções de voto e ganhou o pleito para governador do RJ no segundo turno. Com consistentes quase 60% dos votos válidos.

Esta disparada na intenção de votos não foi detectada no decorrer de 2018 e causou até perplexidade. Eis o “efeito Witzel”.

Em Campos, até o presente momento, as pesquisas de intenção de voto e de humor do eleitor com a atual administração indicam que Wladimir Garotinho pode, sim, liquidar a fatura já no primeiro turno. A questão é que nas entrevistas os opositores de Wladimir apostam na possibilidade de ocorrer o “efeito Witzel”. Ou, em outros termos, há a esperança declarada de que um ou mais nomes na concorrência eleitoral possam surpreender a todos nós e produzir uma reversão de expectativas na concorrência para a Prefeitura.

O maior problema deste raciocínio é desconsiderar o contexto das eleições de 2018 e até mesmo o pleito de 2016.

A conjuntura foi uma tempestade perfeita. Lavajatismo, antipolítica, prisão de Lula (que liderava as intenções de voto para presidente em 2018), diversos nomes se apresentando com um discurso antissistema e se vendendo como vacina “contra tudo o que está aí”. Foi isso que levou diferentes agentes com discurso, verídico ou não, de outsiders ao poder. Vide Dória em Sampa com seu papo “não sou político, sou empresário”, Kalil em BH e até mesmo Rafael Diniz em 2016, o primeiro eleito para a Prefeitura campista que não era egresso do grupo Garotinho.

Bolsonaro, Witzel, igualmente, ambos em 2018, surfaram uma onda muito específica que os alçou ao poder.

Dois mil e dezesseis e 2018 não foram anos de “eleições normais”. A conjuntura produziu diversos resultados surpreendentes.

Bem, e agora? A conjuntura não é a mesma. Diferentes análises indicam que as eleições de 2022 se movimentaram para alguma normalidade, tendo menos espaço para outsiders nos executivos locais, estaduais e nacional. Ou seja, longe de quebras bruscas e reversões radicais de expectativas, estamos voltando para um comportamento “normal” do eleitor onde este avalia simplesmente seu bem-estar, se o trabalho de policy making (elaboração de políticas) lhe é satisfatório ou não.

Penso que a tendência do processo de alguma desradicalização em curso, iniciado em 2022 e presente nos discursos de diferentes candidatos aos executivos estaduais, pode seguir neste 2024.

Dois mil e vinte e quatro tá com um “jeitão” de eleição normal. O humor (mood) do eleitor, que produziu o “efeito Witzel”, parece não estar presente.

Então, tudo mais constante, parece que a vantagem do incumbente campista segue até termos fatos novos que produzam a reversão de expectativas.

* Disponível em: https://pbs.twimg.com/media/EGmcUONWkAIPOO6.jpg, acesso em 30 de julho de 2024.

** Uma primeira versão desta reflexão foi publicada no perfil de facebook do autor em 22 de julho de 2024 (disponível em: https://www.facebook.com/george.coutinho.35/). A segunda versão foi publicada na página 04 do jornal campista Folha da Manhã em 27 de julho de 2024.

*** Cientista político, sociólogo e professor no Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos.

terça-feira, 25 de junho de 2024

Os Bacellar, o Executivo local e 2024 - George Coutinho

 

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Os Bacellar, o Executivo local e 2024**

George Gomes Coutinho***

 

No cenário institucional da divisão dos Poderes temos duas situações quando falamos sobre a mobilidade dos agentes: a) a permanência no Poder de origem; b) o trânsito de um Poder para outro. A história política tem incontáveis exemplos das duas situações para todos os gostos. Temos carreiras solidamente estruturadas e longevas em que há uma vida inteira dedicada a um só Poder. E há aqueles que transitam demonstrando, por vezes com brilhantismo, a versatilidade daquele mesmo agente político individual. Mas, o que explica a decisão, seja por mobilidade, seja por permanecer onde está? Minha resposta envolve cálculo e paixão.

Agentes políticos não fazem menos cálculos racionais que os agentes situados analogamente na economia. Custos, recursos, viabilidade e expectativas. Tudo isso importa, seja para o mercado econômico ou para o mercado político. O problema é que não somos só cálculo frio. Nem nós e nem a classe política. Há algo de paixão que dá sabor à aventura humana. A luta pelo poder e a manutenção da conquista são empreendimentos custosos. Em troca do quê? Seja em Nicolau Maquiavel (1469-1527), seja em Thomas Hobbes (1588-1679), as respostas que explicam essa busca existencial dos agentes políticos transitam entre honra e glória. Quiçá deixar um legado com potencial de transcender uma vida humana em sua limitada duração. Portanto, longe de certo cinismo costumeiro da opinião pública, fazer política em seu sentido profundo vai além do vil metal (embora a atividade seja também meio de mobilidade social e enriquecimento). A paixão por um projeto, pessoal ou coletivo, pode despertar o desejo de mudança do agente político de um poder para outro.

Querer migrar de Poder é lícito e faz parte das regras do jogo. Entra na construção da biografia do político profissional e pode ter motivação tanto no cumprimento de imperativos do momento, por exemplo a missão partidária, ou a busca por glória. Já a possibilidade concreta da migração, os meios dados pela conjuntura, tudo isto é de natureza factual. Há ou não há a viabilidade.

É este o espírito da discussão sobre os Bacellar e a disputa eleitoral em Campos neste ano de 2024.

Os Bacellar são, na atual quadra histórica, um dos clãs políticos mais bem-sucedidos da região Norte Fluminense. Sr. Marcos Bacellar, nascido em 1950, o patriarca, e seus filhos Rodrigo, de 1980, e Marquinho, de 1984, somam sete mandatos legislativos, contando os que estão ainda em vigência. Cinco na Câmara de Vereadores de Campos dos Goytacazes e dois na Alerj. Este capital político acumulado em expansão, que inicia na trajetória sindical do pai do clã, não encontra par facilmente nas carreiras políticas locais. Com tudo isso, Marquinho ocupa no momento a presidência da Câmara de Vereadores. Rodrigo preside a Alerj. Não são figurantes ou amadores. Presidir Casas Legislativas só é feito alcançável mediante trabalho duro, leitura dos interesses em jogo, acordos e estômago. E ali permanecer? Razão estratégica, contemplar demandas e, por vezes, força bruta.

A ambição política do grupo de alguma maneira encontra síntese bem acabada na trajetória de Rodrigo. Em perfil elogioso feito pelo jornal Folha de São Paulo em 27 de abril deste ano, o capital político conquistado por ele é destacado, o que o coloca como um dos homens fortes da política fluminense. Não por acaso a campanha de Eduardo Paes, favorito nas pesquisas na disputa carioca deste ano, corteja explicitamente o deputado campista.

E Campos nessas eleições municipais? Como eu já disse no programa Folha no Ar em março último, o clã Bacellar optou por participar terceirizando sua representação na disputa pela prefeitura. Não virão em nome próprio e não migrarão, em pessoa, do Legislativo para o Executivo. Marquinho, ao que parece, seguirá disponibilizando seu nome para a vereança e, assim sendo, conquistará seu terceiro mandato sem dificuldade.

Verdade seja dita, nenhum Bacellar assumiu compromisso público indicando que disputaria a Prefeitura neste 2024. Contudo, dado o indisfarçável investimento em fase de pré-candidaturas, é impossível que neguem seu interesse no Poder Executivo campista. Pelo contrário. Os Bacellar já têm sua presença na disputa para o Executivo emprestando seu capital político, presença e máquina.

A paixão também é indiscutível e transborda nos duros embates públicos com os Garotinho, outro clã inegavelmente relevante. Por vezes as brigas são de corar os mais sensíveis e já se tornaram caso de polícia. A disputa dos pais dos clãs por vezes se replica, em baixos teores, nas estocadas verbais trocadas entre Wladimir e Marquinho.

Há paixão, portanto. O desejo também é detectado, mesmo que reprimido na terceirização da presença do clã na disputa para a Prefeitura e explicitado nos investimentos decorrentes. E há a frieza do cálculo. Os números, a preço de hoje, indicam que 2024 parece ser o ano da reeleição de Wladimir Garotinho. Tudo o mais constante é melhor proteger o capital político angariado pelos Bacellar do desgaste da derrota diante de um adversário relevante. Afinal, Rodrigo e Marquinho são jovens, demonstram fôlego e ambição. E 2028, uma nova rodada de disputa, chegará antes do que se pensa. Talvez lá o cálculo frio vislumbrará uma janela que permita a migração dos Bacellar para o Executivo caso estes concretamente desejem.

* Foto publicada no perfil de instagram do vereador Marquinho Bacellar. Disponível em: https://www.instagram.com/marquinhobacellaroficial/, acesso em 25 de junho de 2024.

** A primeira versão deste texto foi publicada em 22 de junho de 2024 tanto na página 4 do jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ, quanto no blog Opiniões do jornalista Aluysio Abreu Barbosa, disponível em: https://opinioes.folha1.com.br/2024/06/22/george-coutinho-os-bacellar-o-executivo-local-e-2024/ , acesso em 25 de junho de 2024.

*** Cientista político, sociólogo e professor no Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos

sábado, 22 de junho de 2024

SOBRE PRESTES, BRIZOLA E LULA - Breno Altman

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SOBRE PRESTES, BRIZOLA E LULA** 


Breno Altman***


A esquerda brasileira, em mais de cem anos, desde a greve geral de 1917, produziu somente três grandes lideranças nacionais, capazes de ter suficiente apoio para assumir protagonismo e comandar o país.

A primeira delas, a mais heroica, foi Luiz Carlos Prestes, principal figura dos levantes tenentistas. Seu período de real influência foi dos anos 20 até os 60. Chefiou a coluna que levaria seu nome, conduziu a insurreição de 1935, passou quase dez anos preso e, apesar da clandestinidade e do clima anticomunista da guerra fria, além dos graves erros cometidos por seu partido e por si mesmo, desempenhou papel de relevo até o golpe de 1964. Não é à toa que encabeçava a primeira lista de cassação da ditadura.

A segunda foi Leonel Brizola. Por seu papel na crise de 1961, quando era governador do Rio Grande do Sul e comandou a resistência que derrotaria o golpe militar em andamento contra a posse de João Goulart, vice do renunciante Jânio Quadros, transformou-se em referência central do trabalhismo, a partir de uma perspectiva nacional-revolucionária que levaria amplas frações dessa corrente, fundada por Getúlio Vargas, ao campo de esquerda. Era a grande alternativa eleitoral das forças populares para o pleito de 1965: em boa medida, a reação militar-fascista se deu para barrar sua caminhada. Desde o retorno do exílio, em 1979, foi perdendo protagonismo, particularmente após 1989, quando não teve votos para passar ao segundo turno das primeiras eleições presidenciais desde o golpe de 1964.

A terceira é Luiz Inácio Lula da Silva. Ao contrário de seus antecessores, chegou à Presidência da República. Filho do movimento operário e popular que emergiu nos anos 70, seu líder incontestável, logrou forjar base social e eleitoral para, pela primeira vez na história brasileira, levar a esquerda e um partido orgânico da classe trabalhadora à direção do Estado.

Antes que alguém reclame, a nominata não inclui Getúlio Vargas porque o mentor do trabalhismo não era nem nunca se reivindicou de esquerda. Sua trajetória é a de um chefe do nacionalismo burguês que, em seu segundo mandato presidencial, rompeu com os setores hegemônicos da classe à qual pertencia e deu curso a uma inconclusa transição para o campo anti-imperialista.

Tampouco inclui Jango, pelas mesmas razões.

Também Dilma Rousseff está fora dessa tríade. Mesmo eleita e reeleita presidente, sua ascensão, em que pese biografia de bravura e dedicação, é essencialmente expressão do projeto construído por Lula e o PT.

Retomando o fio da meada: apenas três protagonistas de esquerda em cem anos.  Não seria motivo suficiente para, apesar de críticas e discordâncias eventualmente procedentes, o conjunto das forças progressistas tratar esses personagens com a prudência devida aos nossos maiores patrimônios?

Mesmo que os listados tenham distintos alinhamentos ideológicos, é inegável seu papel comum, cada qual em um ciclo determinado, de simbolizar a esperança e a unidade do povo contra a oligarquia. Mais que isso, a possibilidade real de derrotá-la.

Dos três, apenas Lula segue vivo e em função.

Como os demais, é nossa dor e nossa delicia. Sofremos com possíveis vacilações e erros, lamentando e até nos revoltando contra certas decisões que parecem desastrosas, além de apoiarmos e aplaudirmos tudo o que fez de positivo. Mas, como cada um de seus antecessores, representa o que de melhor o povo brasileiro conseguiu produzir em sua longa luta emancipatória.

Por essas e outras, defender Lula contra os inimigos de classe é tão importante. A burguesia o ataca com tamanha intensidade exatamente pela esperança que representa junto à classe trabalhadora. Porque ele continua a expressar o caminho mais visível para os pobres da cidade e do campo se imporem sobre os interesses oligárquicos.

Quem não consegue entender isso, e se julga de esquerda, deixa-se paralisar pelo sectarismo, vira as costas para a história e, infelizmente, joga o jogo que a direita joga.

* Imagem disponível em: https://teoriaedebate.org.br/2023/04/14/a-esquerda-brasileira-e-a-questao-democratica-parte-2/, acesso em 22 de junho de 2024.

** Publicado no perfil do "X" pelo autor em 22 de junho de 2024: https://x.com/brealt/status/1804353404581327188. Republicado aqui no blog com autorização do próprio Breno Altman

*** Breno Altman é jornalista profissional. Fundou em 2008 o portal Opera Mundi. Neste ano de 2024 está lançando o livro "Contra o Sionismo" pela Alameda Editorial.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Silêncio dos “inocentes”: contorcionismo de “especialistas” para ocultar a base ideológica do aprofundamento dos problemas educacionais

 

Fonte: Depositphotos

* Jefferson Nascimento


Problemas das prescrições de sistemas de avaliação aplicados em larga escala


O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), assim como os sistemas de avaliação em larga escala, devem ser discutidos seriamente antes da adoção acrítica de suas recomendações, de comemorações ou lamentos acerca dos resultados. 

Marialuisa Villani, pesquisadora do International Network of Research on Reestructuring of Educational Professions (WERA/INRREP), e Dalila Oliveira, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), alertam que a estratégia brasileira de balizar políticas e investimentos educacionais em avaliações estandardizadas “[...] pode estar produzindo novos desequilíbrios e encobrindo problemas e dificuldades inerentes aos contextos locais que necessitariam atenção”. A situação se agrava pela retroalimentação das duas principais orientações: o PISA e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). O resultado é “[...] um processo de estandardização que influencia não somente as ações e escolhas de políticas educativas em nível federal, mas também nos estados e municípios” (Vilani e Oliveira, 2018, p. 1357).

O Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) é um conjunto de avaliações externa de larga escala composto pelas: Avaliação da Educação Infantil, Avaliação do 2º ano do Ensino Fundamental, Avaliação de Ciências Humanas e Ciências da Natureza para o 5º ano do EF e Avaliação de Ciências Humanas e Ciências da Natureza para o 9º ano do EF. Além das avaliações sobre os estudantes, fazem parte: o questionário eletrônico para Secretário Municipal de Educação, os questionários eletrônicos para Diretores de Escola, o questionário dos Professores da Educação Infantil e os questionários eletrônicos para Professores de Ensino Fundamental e Médio das áreas avaliadas.

O Saeb e as taxas de aprovação, reprovação e abandono, apuradas no Censo Escolar, compõem o Ideb. Porém, isso não quer dizer que a educação básica brasileira seja avaliada por duas perspectivas distintas. O Ideb foi concebido a partir da compatibilização das proficiências observadas no PISA, de modo que a nota 6,0 no Ideb corresponde à média dos países membros no exame da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Portanto, na prática, os dois sistemas padronizados de avaliação são concebidos a partir de fundamentos definidos pela OCDE. Eles se retroalimentam e orientam as políticas educacionais brasileiras desde os mesmos fundamentos teóricos, políticos e ideológicos.

A proeminência da OCDE retira do Estado brasileiro a soberania na formulação de políticas educacionais. Se, por um lado, a “caneta” continua com as autoridades políticas do Brasil; por outro, os pressupostos teóricos do quê e para quê se avalia, os indicadores decorrentes das avaliações e prescrições sobre possíveis “correções de rota” advém da organização, que é um ator transnacional. Essa perda de soberania nacional sobre a formulação de políticas educativas aumentou desde 2013, quando chegou ao Brasil o PISA Governing Board (PGB). A partir daí o Brasil participa da tomada de decisões sobre o PISA, mesmo não sendo membro da OCDE (Vilani e Oliveira, 2018).

Notem que o PISA não é apenas um instrumento de coleta de informações sobre a educação básica para subsidiar a decisão das autoridades brasileiras para políticas educacionais contextualizadas às questões nacionais. É um programa com background político e ideológico que orienta o desenho de políticas educacionais. A submissão do país a esse programa foi uma escolha política tomada nos anos 1990 e aprofundada, sobretudo, a partir de 2013. Escolha encabeçada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia vinculada ao Ministério da Educação e aceita acriticamente pelos níveis superiores dos governos brasileiros. A questão, portanto, não é a contrariedade intransigente à aplicação do exame e do debate sobre resultados; mas o necessário olhar crítico para a submissão ao programa que resulta na aceitação dos resultados como balizadores de políticas públicas educacionais que desconsideram as realidades locais de um país tão diverso.

Além disso, os fundamentos ideológicos que estimulam à adesão ao PISA são tão arraigados que levam à tomada de decisões empacotadas descontextualizadas dos diagnósticos da realidade social, econômica, cultural e geográfica dos estudantes afetados. 


E quais fundamentos ideológicos me refiro?

          Implicitamente, os debates na opinião pública querem fazer crer que essa avaliações constituem técnicas neutras de aferição de aprendizagem. Porém, o PISA nasce com uma clara orientação "do quê" e "para quê" avaliar. "É o paradigma do aprender a aprender que orienta e estrutura o conteúdo do PISA" (Rodrigues, 2018, p. 70). Ou seja, o exame incorpora o relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) de 1996, liderado por Jacques Delors, preconizando os chamados "Quatro Pilares da Educação".   

A leitura feita a partir dos relatórios emitidos pela autoridade responsável, a OCDE, indicam que os fundamentos e categorias ideológico/filosóficas do PISA nada mais são do que uma ramificação epifenomênica do escolanovismo – uma nova roupagem composta por um conjunto de pedagogias que formam o ideário chamado learning to learn, ancorando-se na ideologia da empregabilidade para enraizar a Teoria do Capital Humano nas reformas estatais da educação nos países da periferia do capital. Além disso, os elementos teóricos e ideológicos do learning to learn fundamentam os relatórios, mostrando a articulação e a relação dos critérios de mensuração do PISA para com as orientações das atuais políticas de formação docente para a educação mundial (Rodrigues, 2018, p. 77).

      Mais do que isso: ao demandar certas políticas educacionais existem objetivos políticos e ideológicos, não se trata de uma melhoria em abstrato, mas uma orientação politicamente consciente:

Os Estados da periferia do capital são orientados, portanto, a envolver suas reformas sob parcerias com o setor privado e com organizações não governamentais no intuito de prover não somente o conhecimento e o pessoal necessário ao processo produtivo em expansão, mas todo o quadro de valores que legitimam a atual sociabilidade e que mascaram a alternativa de mudança radical de um sistema cujo objetivo é formar indivíduos devidamente educados e condicionados a reproduzir um ambiente de dominação estrutural que é encarado como natural e imutável (Rodrigues, 2018, p. 76).

       Nada mais estratégico que ocultar os objetivos político-ideológicos para induzir a aceitação acrítica. É, portanto, necessário analisar o PISA questionando essa suposta tecnicalidade isenta de ideologia. Afinal, tais referenciais (Teoria do Capital Humano, pedagogias do aprender a aprender/learning to learn) estão vinculadas "[...] ao pensamento pós-moderno, contribuindo de forma nefasta para o processo de esvaziamento e vulgarização da profissão de professor" (Rodrigues, 2018, p. 78). Daí a aceitação do "notório saber" e da titulação por áreas de conhecimento sem considerar os apectos científicos das fronteiras disciplinares para a formação docente.

         O olhar sobre o PISA deve se basear na "desnaturalização" e no "estranhamento" daquilo que se apresenta como neutro. É o olhar que Charles Wright Mills nomeou de "imaginação sociológica", que é um dos objetivos da Sociologia na Educação Básica, negligenciada pelas políticas educacionais e reformas recentes.


O PISA e o “novo” Ensino Médio


O PISA foi uma das principais justificativas para a Reforma do Ensino Médio, que concebeu o chamado Novo Ensino Médio. Nele, o modelo de itinerários formativos promove um esvaziamento da concepção científica dos currículos, o aligeiramento da formação, a aceitação de docentes sem formação disciplinar específica e de professores supostamente dotados de “notório saber” nos componentes curriculares profissionalizantes. Como se não bastasse, a incorporação da educação profissional não se dá a partir de sólidos fundamentos científicos e do estímulo do senso crítico, se baseia na lógica do treinamento e do adestramento para a realização de funções no mercado de trabalho. 

Esse “novo” Ensino Médio retoma concepções pedagógicas utilitaristas, baseadas na Teoria do Capital Humano, atualizadas para a nova realidade: o fim da “sociedade salarial”. Desse modo, compatibiliza o desenvolvimento dos requisitos de empregabilidade com estímulo ao “empreendedorismo”. Os elementos socioeconômicos estruturais estão ausentes: não há mais comunidade, Estado, ação e lutas coletivas. Há o “indivíduo contra o sistema”, ainda que este não esteja claramente definido. Logo, ele conduz a uma orientação individualista que, além de adestrar para o mercado, glamouriza a responsabilização individual na luta pela sobrevivência. 

Apesar de compartilhar o fundamento ideológico pró-mercado das organizações transnacionais, como a OCDE e a UNESCO, as decisões políticas sobre a educação brasileira radicalizaram a lógica utilitarista e o esvaziamento do senso crítico a partir de 2016. Na prática, mergulharam mais fundo na implementação de políticas neoliberais/ultraliberais que os programas educacionais estavam propondo. O “novo” Ensino Médio, por exemplo, abandona a formação crítica de um modo exacerbado e nada indica uma mudança de orientação no curto-prazo: as fundações empresariais de educação conseguiram lugar de destaque no Ministério da Educação contando com a adesão da ex-Secretária-Executiva, Izolda Cela, e com a simpatia do Ministro Camilo Santana.



Plantando joio e esperando trigo ou “Silêncio! Deixe tudo como está”


A reação de jornalistas das grandes empresas de comunicação sobre o último resultado do PISA estão entre o cinismo (intencional) e o autoengano pela profunda incapacidade de reflexão. Dessa vez, se fazem de surpresos com o fato do Brasil ficar em 44° entre 57 países na avaliação sobre criatividade e, como se não bastasse, desassociam o resultado do rumo geral das políticas educacionais brasileiras, transferindo exclusivamente a aspectos individuais, familiares e, genericamente, ao excesso de uso das redes sociais.

Ora, os resultados educacionais se constroem a partir de causas múltiplas. Portanto, não é que esses fatores mencionados não tenham contribuído, mas é curioso que não apareça no debate o esvaziamento crítico do currículo oficial (por exemplo, a redução da carga horária de Arte, Filosofia, Ciências Humanas, etc.) e o efeito do espaço dado a grupos e debates que negligenciam a formação dos estudantes criando um currículo oculto acrítico, dogmático e instrumental (por exemplo, iniciativas como Escola Sem Partido). Isto é, a defesa do “novo” Ensino Médio e a conivência com ataques ao caráter científico e laico da educação pública agravam o cenário, apesar do silêncio dos “inocentes”. Agindo desse modo, não deveria causar espanto que o Brasil esteja empatado com Peru, Arábia Saudita, Panamá e El Salvador.

Vamos aos fatos: o conceito de criatividade avaliado no PISA é "a competência para se envolver produtivamente na geração, avaliação e melhoria de ideias que possam resultar em soluções originais e eficazes, avanços no conhecimento e expressões impactantes da imaginação". A prova envolve: a escrita, a expressão visual, a resolução de problemas sociais e a resolução de problemas científicos. [1] 

Considerando a redução de carga horária e o ataque à legitimidade da Arte, da Filosofia e das Ciências Humanas, é irreal esperar que seja regra (e não exceção) a proposição lógica de solução para problemas sociais e a capacidade de escrever textos coerentes e profundos a partir da apreciação e interpretação de imagens. Ademais, a conivência com o negacionismo científico (antivacinas, negacionistas climáticos, etc), a promoção do “palpite” e da “opinião”, o destaque a todo e qualquer influencer não parece compatível com a expectativa de solução a problemas científicos.

Logo, ocultar as consequências das escolhas exageradamente pró-mercado na formulação de políticas educacionais e no debate sobre educação cria apenas espantalhos. Como, por exemplo, as redes sociais e a Internet. Devo ponderar o óbvio: as redes sociais influenciam, sim, na formação e na socialização dos jovens, mas elas não são exclusivamente um problema brasileiro ou dos países com mau desempenho, bem como outros países passam por modificações nas relações familiares.

Não é trivial que a maioria das empresas de comunicação oculte que o relatório do PISA alertou também para insegurança alimentar, instabilidade emocional como fatores que atrapalham o desenvolvimento do pensamento criativo[2]. Há, portanto, problemas sociais, econômicos e emocionais agravados pelas crises de 2014-16 e pela pandemia. No entanto, tais problemas foram brutalmente intensificados pelos cortes de recursos para políticas e serviços sociais, como educação, saúde e seguridade social. Isso sem contar a necessidade de debater o custo por aluno da Educação Brasileira (não o montante total para a área ou percentual em relação ao PIB). Em grande medida, a decisão para retirar dinheiro das áreas sociais e proteger os recursos destinados ao sistema financeiro é reflexo da mesma ideologia excessivamente pró-mercado que orienta as políticas educacionais.

Romper esse silêncio sobre importantes elementos da avaliação implicaria admitir que a classe dominante e a elite política brasileiras foram longe demais até para os defensores mais racionais da lógica pró-mercado. O horizonte das políticas educacionais implementadas, sobretudo, após 2016 aponta para uma distopia do capital, para uma realidade que nenhum país minimamente civilizado deseja para si.


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* Jefferson Nascimento é doutor em Ciência Política, professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP) - campus Sertãozinho, membro no Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA) e autor do livro “Ellen Wood: a luta pela democracia e o resgate da classe” (Editora Appris). 


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Fontes:

Rodrigues, B. A.. O pisa e o problema da negação do conhecimento: uma crítica marxista ao discurso da educação para a cidadania global. 2018. 109f. - Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-graduação em Educação, Fortaleza (CE), 2018.

Villani, M., & Oliveira, D. A.. (2018). Avaliação Nacional e Internacional no Brasil: os vínculos entre o PISA e o IDEB. Educação & Realidade, 43(4), 1343–1362. https://doi.org/10.1590/2175-623684893