segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Deforma administrativa



Deforma administrativa

Paulo Sérgio Ribeiro

Desde fins do ano passado, de cima a baixo nos escalões do Poder Executivo Federal e nas entidades a ele vinculadas, ventila-se a reforma administrativa. Já passamos da fase do burburinho nos corredores para conversações mais detidas sobre as possíveis consequências para o serviço público de mais uma reforma cujo anúncio é feito por um banqueiro dublê de Ministro de Estado, Paulo Guedes, posto à frente da Economia.

Admito que este texto é atravessado por alguns ardis, considerando a linha tênue que separa o interesse público dos conflituosos interesses corporativos que permeiam a burocracia estatal. Tal ressalva deve-se, pois, ao fato de os colaboradores deste blog serem servidores públicos federais e, não por acaso, membros de universidades públicas. Eu, despenhando sua atividade-meio (recursos humanos), e os demais cumprindo sua atividade-fim (docência, pesquisa e extensão).

Contudo, não há porque “amarelar” diante do tema, pois a lealdade institucional que devemos à Universidade que nos pariu para a vida pública vai ao encontro de um pressuposto de sua legitimidade social: a autonomia política dos seus quadros técnico-científicos perante os mandatários do dia. Se para alguns, isso nada mais é do que um lembrete inócuo, aqui, pelo menos, estimula avaliarmos a dimensão ético-política de um Estado social e as condições de sua viabilidade face à disputa de narrativa sobre o modelo de administração pública adequado à realidade brasileira.

Teorias do Estado muitas há e não caberia aqui dissecá-las, haja vista sua extensão que, seguramente, demandaria um blog mais especializado. Mas, é como se diz, “clássico é clássico!”, e, assim sendo, começo a análise recorrendo a “Política como vocação”, uma palestra pronunciada por Max Weber no início do século passado que tornar-se-ia um texto basilar para as ciências sociais.

Ao diferenciar o “viver para a política” do “viver da política” como forma de pensar a profissionalização do exercício do poder sob uma ordem econômica capitalista, Weber dá pistas de que tal distinção analítica, ainda que necessária, deve ser relativizada no que toca ao sentido da ação atribuído a uma relação de dominação. Em tese, as condições objetivas do agir político implicariam disponibilidade econômica, isto é, a possibilidade de comprometer-se com uma “causa” sem maiores preocupações com as eventuais vantagens que a atividade política possa proporcionar.

Ao contrário do que dita o senso comum, o homem político não raro investe seu tempo na luta pelo poder motivado por algo além do mero gozo da posse do poder. Tratar-se-ia de uma necessidade subjetiva de intervir no mundo mediante atos e obras que deem significação à sua vida. Todavia, lembra o Weber que tão bem apontou as falhas metodológicas do materialismo histórico sem dele abdicar por completo em seu diagnóstico da Modernidade, em um regime político que tenha em seu cerne a propriedade privada, uma desigual distribuição da riqueza converterá a segurança econômica em um móvel quase exclusivo da ação dos homens de Estado e de todos os demais que a eles se subordinem.

De um lado, mesmo aqueles que (milagrosamente) disponham previamente de patrimônio privado independente do acesso privilegiado aos fundos públicos podem “viver da política” ao orientá-la para seus interesses econômicos imediatos se dotados de uma posição de comando no Estado; de outro, a estruturação do Estado em diferentes formações nacionais acarretou a manutenção da ordem através da distribuição de empregos e demais recompensas segundo a lealdade manifestada na luta política por aqueles desprovidos de tempo livre, sejam estes o empresário capitalista que assim se constitui ao dedicar imersão total à sua atividade, sejam o trabalhador subalternizado pela luta diária por um ganha-pão ou o pequeno burguês carente de prestígio pessoal.

A beleza do pensamento weberiano está nas variantes sutis que é capaz de exibir na abordagem de um problema tão vasto como a instituição do Estado-moderno. Este, malgrado o molde plutocrático do recrutamento dos seus dirigentes e os diversos arranjos clientelísticos que dão forma e relevo à sua estrutura organizacional é, também, uma resposta a imperativos de ordem técnica da gestão de recursos escassos em uma sociedade complexa.  

Tais imperativos corporificam o que Weber denominaria de “honra corporativa” e que, a nosso ver, traduzir-se-ia por ética do serviço público. Ora, o grosso do pessoal que integra a administração pública é composto de trabalhadores intelectuais altamente qualificados, mesmo para as funções que exigem escolaridade média, os quais, no Brasil pós-1988, dedicaram esforços ingentes para ingressar em uma carreira de Estado e que, ao assumi-la, encaram suas tarefas animados sobremaneira por um “sentimento de integridade”[1]. Nas palavras de Weber:


Se esse espírito de honra não existisse entre os funcionários, estaríamos ameaçados por uma corrupção assustadora e não escaparíamos ao domínio dos filisteus. Simultaneamente, estaria em grande perigo o simples rendimento técnico do aparelhamento estatal, cuja importância econômica se destaca crescentemente e não deixará de crescer, principalmente se consideradas as tendências atuais no sentido da socialização[2].


Palavras ditas há mais de um século que se mostram atuais para desmitificar os estereótipos sobre os servidores públicos que encobrem proposições de eficácia discutível e encorajam declarações acintosas[3] de Guedes et caterva.

Quais proposições?

Sua fonte ideológica, por assim dizer, atende pelo nome de “PEC Emergencial”[4], Projeto de Emenda à Constituição nº 186/2019 apresentado por Paulo Guedes ao Senado Federal em 05 de novembro de 2019, a qual se junta a “PEC do Pacto Federativo” e a “PEC dos Fundos Públicos” para compor o “Plano Mais Brasil”. Na PEC Emergencial, estão previstos: a não promoção de servidores públicos – com exceção dos que integram determinadas carreiras típicas cujo poder de pressão é demasiado forte para se interpor; o congelamento das remunerações; a não criação de novos cargos e de indenizações ao servidor; a suspensão de concursos públicos; a redução de até 25% da jornada de trabalho com redução proporcional da remuneração. 

O argumento oficial: ante a crise fiscal do Estado, um novo ponto de equilíbrio nas finanças públicas dever ser alcançado por meio do “Teto de Gastos” e da obediência estrita à “Regra de Ouro”. O primeiro, esculpido pela Emenda Constitucional nº 95/2016, consiste em um limite de despesas anuais com vistas ao controle da dívida pública. Tal limite tem por referência os gastos do ano anterior corrigidos pela inflação. Noutros termos, se a demanda por investimento público crescer (e sempre crescerá, pois as políticas públicas são um universo em expansão), ela continuará simplesmente reprimida. A segunda, por sua vez, calcada no inciso III, Art. 167, da Constituição Federal, prevê a proibição de realizar “operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital”[5].

Descendo à terra: os empréstimos que o Governo contrai com os bancos (operação de crédito) para, por exemplo, reformar ou construir uma escola pública (despesa de capital que incorpora um bem ao patrimônio coletivo), em regra, não deverão ultrapassar o limite já estabelecido para despesas dessa natureza. Se, por força do texto constitucional, o governo não pode endividar-se para cobrir “despesas obrigatórias” tais como as despesas de capital, o mesmo não se aplica às “despesas correntes”, de caráter discricionário, tais como reajustes na remuneração, promoções por tempo de serviço, gastos com novos concursos públicos e processos seletivos simplificados, ou seja, a carne e o osso do que se entende por ingresso e desenvolvimento em uma carreira de Estado.  

Uma objeção factual: a economia estimada com a redução salarial que, por ventura, seja imposta aos técnicos administrativos em educação, bem como às demais categorias profissionais do serviço público federal que nele trabalham a um baixo custo para a economia nacional, mediante o expediente da redução da jornada de trabalho, será inútil. Essa pretensa terapia que nada mais faz do que matar de inanição o paciente é esmiuçada em números pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco):


O Governo estima economizar R$ 10 bilhões com a redução salarial no primeiro ano. Trata-se de um valor irrisório perto dos problemas estruturais que levaram o governo a estimar para 2020 a necessidade de créditos extras de mais de 300 bilhões de reais. Por que razão o Governo Federal abriria uma frente de batalha de tal envergadura com os servidores públicos? Por que sucatear a já combalida prestação de serviços públicos em troca de economia tão singela?[6]


Uma objeção teórica: submeter à proletarização a quase totalidade dos membros das carreiras de Estado que asseguram dia a dia a execução das políticas públicas é, no médio e longo prazos, um tiro de misericórdia em nossa já combalida soberania nacional. Esta não se confunde com a sobreposição de uma política econômica às demais competências do Estado como mera correia de transmissão dos ditames do capital financeiro, pois, a coesão social minimamente necessária para a vigência de um território nacional requer um sentimento de identidade cidadã. Este, por sua vez, somente se concretiza no cotidiano das populações que recebam do Estado algo mais do que as habituais intervenções repressivas nas periferias conjugadas à ausência de uma rede de proteção social e de medidas de mitigação/reversão do desemprego em massa.

Rompendo-se de vez com os direitos coletivos, resta-nos nada mais do que o individualismo negativo de que nos falava Robert Castel[7]: sermos convertidos em “super-indivíduos” na justa medida em que todos os encargos sociais inerentes à regulação das relações de trabalho e ao seguro social sejam transferidos àqueles capazes de “gerir” a si mesmos em nome do pagamento de juros e serviços de uma dívida pública que nunca foi auditada... 

Estrangular o serviço público não é uma contingência e sim uma exigência lógica de um agenda ultraliberal que impõe um modelo de administração pública que, ao fim e ao cabo, esvai a noção mesma de res publica.


[1] Cf. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002, p.72.
[2] Ibid. ibidem.
[5] Constituição Federal de 1988, Art. 167, III. Fonte: Presidência da República.
[7] Cf. CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Uma crônica do salário. Petrópolis-RJ: Vozes, 1998.

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