terça-feira, 6 de outubro de 2020

Sobre punks em SP e circulação/recepção de ideias

 
Sobre punks em SP e circulação/recepção de ideias


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George Gomes Coutinho


Recomendo muito esse papo[1] entre João Gordo e Henry Bugalho. É extremamente interessante. Aborda inúmeras questões da conjuntura. Mas, eu vou me centrar especialmente em um dos tópicos da conversa: um pouco da história do movimento punk paulistano/paulista em seus primeiros passos narrada por João, um dos protagonistas da cena.


Por isso o vídeo pode interessar também para quem busca observar empiricamente as particularidades da produção, circulação e recepção de elementos simbólicos, movimentos culturais, doutrinas, teorias, ideais, expressões artísticas e escolas filosóficas longe de seus contextos originais de criação. Na minha perspectiva o relato de João fornece elementos até mesmo para um estudo de caso.

O movimento punk nasce no contexto anglo-saxão e recruta seus membros majoritariamente entre os jovens do lumpen e da classe trabalhadora e, em menor medida, entre classes médias e alta.  O movimento, até mesmo por sua composição social, tem um potencial contestatório por dar voz a grupos que não estavam necessariamente inseridos integralmente na sociedade de consumo. O punk por esta razão nasce precariamente anti-establishment tanto no momento proto punk (pré-1976) quanto no seu momento de consolidação (de 1976 até os primeiros anos da década de 1980).


O revival dos anos 1990 até o presente misturou bastante as coisas e indicou até mesmo a sua instrumentalização pelo establishment por razões que se explicam também na origem do movimento. O movimento é plástico por sua natureza.

Sendo movimento originalmente juvenil não houve exatamente um discurso/conteúdo programático que unificasse e conferisse sentido ou visão-de-mundo para todos os punks. Não há um manifesto do partido punk internacionalista e tampouco um jargão do tipo “punks de todo mundo uni-vos”.


 O punk é um movimento dotado de caráter estético, urbano, artístico permeado por uma atitude minimalista combinado com intervenção direta (o famoso  lema “do it yourself”). Até mesmo a precariedade de acesso material aos bens culturais e equipamentos dos filhos da classe trabalhadora e do lumpen explica essa vocação do faça você mesmo. Especialmente os músicos em questão não tinham acesso a estúdios caros, instrumentos premium, não frequentavam escolas de arte[2], etc..


Falo, reitero, de um movimento juvenil que combina atitude e expressividade . Disto temos uma enorme plasticidade do movimento. Há punks que gravitam da extrema direita até a extrema esquerda. Há punks existencialistas... Há influências do punk nas artes plásticas, literatura, movimentos da sociedade civil....técnicas de gravação, compreensão de mercado fonográfico, organizações não governamentais... Straight edges, skins, SHARPS, anarcopunks.... São derivações e subderivações.


Se temos também intelectuais reconhecidamente oriundos ou influenciados pelo movimento, estes não conseguiram estruturar valorativamente ou normativamente a íntegra de sua tribo. Daí encontrarmos sob a mesma rubrica a invasão dos punks na pós-graduação dos países anglo-saxões[3] e, ao mesmo tempo, punks que são parte do hooliganismo. Há as derivações White Power nacionalistas ultra-conservadoras. Mas, como descreve de maneira magistral Steven Blush em seu “American Hardcore”[4], a despeito dos supremacistas brancos, os punks das duas costas norte-americanas foram talvez o único grupo coletivo persistente contra o neoliberalismo da era Reagan. Pulverizado e persistente.


Voltando ao Brasil, o papo de João Gordo com Henry Bugalho confirma essa diversidade interpretativa fática sobre o movimento:  os filhos do lumpen e da classe trabalhadora paulistana (João é filho de metalúrgico),  construíram sua própria leitura do que era o movimento. Embora determinados agentes fossem informados culturalmente do contexto original (ele cita desde o produtor Antônio Bivar até Redson, vocalista da banda Cólera), o movimento paulistano importou a estética e criou uma cultura que transitava entre a ação das gangues e a delinquência.


A citação do filme Warriors (no Brasil a tradução do título é “Selvagens da Noite”) ilustra de maneira exemplar o contexto cognitivo que estes jovens punks se inseriram para construir a sua versão particular do movimento. Para além da imitação estética do movimento compartilhada com outros punks de nacionalidades diferentes, justamente eles compreendiam que o comportamento punk envolveria a disputa violenta por território urbano. Isso por um filme, ora vejam, que nos chega pelas mãos da TV Globo e era reprisado exaustivamente nos momentos de exibição cinematográfica da emissora.


Este que vos escreve se recorda de ter assistido ao tal filme citado por João um sem número de vezes durante a infância. Contudo, não deixa de ser irônico que um movimento que se auto-interpreta enquanto anti-establishment tenha se informado justamente por uma TV que é em tudo representante do establishment no imaginário político e social brasileiro.


Prosseguindo, João reconhece que só mudou sua concepção sobre o que era ser punk na segunda metade da década de 1980 no meio das turnês internacionais do Ratos de Porão em algum tipo de intercâmbio onde as informações que lhe chegam quase por acidente. Antes João era um punk que assimilou, junto a outros jovens paulistanos, que ser punk que não seria muito diferente de ser um “fascistinha” como ele mesmo classifica, tendo seus arroubos homofóbicos e redundando até mesmo em um tapa na cara de Cazuza. 


Cabe notar ainda que nas recepções de um movimento plástico como o punk podemos ter derivações em um mesmo país. No caso brasileiro ainda parte dos jovens punks de Brasília eram recrutados entre os filhos de alto escalão das carreiras de Estado. Alguns destes eram filhos de servidores da carreira diplomática que tinham acesso aos lançamentos da produção fonográfica estrangeira quase que simultaneamente ao que os punks consumiam na Inglaterra ou nos EUA.


Para os punks de Brasília talvez mesmo a ditadura civil-militar em vigência não fosse exatamente um problema que os impedisse de consumirem determinados produtos da indústria cultural. Muito provavelmente estes, onde muitos ainda tinham conhecimento da língua inglesa, conseguiam ir além da “filosofia”, digamos assim, das gangues paulistanas. O que não os impediu de terem problemas especialmente com a polícia em seu papel costumeiro de agentes  da repressão moral e uniformização moral/estética da sociedade[5]


Tudo isso para retomar um ponto que assinalei lá acima: é preciso conhecer concretamente os processos de recepção de elementos simbólicos, movimentos culturais, doutrinas, teorias, ideais, expressões artísticas e escolas filosóficas longe dos seus contextos originais de criação. Isso vale para o punk e para outras tribos urbanas. Mas, vale igualmente para movimentos mais complexos do campo doutrinário politico. A reprodução canônica só decorre onde é possível a assimilação em caráter sistemático. De outro modo vemos sim, na realidade social, misturas diferentes de “filhotes de cruz credo” com “Deus me livre”. E estes existem e são explicáveis se refizermos inversamente o caminho que os gerou. Talvez este seja um dos maiores trabalhos que precisaremos fazer em prol da busca por uma opinião pública menos insalubre, menos contaminada por tanto lixo semiótico.

* Disponível em: https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/7312-punk-nos-anos-80, acesso em 06 out. 2020. 



[1] O vídeo intitulado “Por que os reaças saíram do armário” pode ser também acessado aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Q1lg8HWcPX0


[2] Em contraposição algo socialmente e esteticamente diferente não era infrequente em outra vertente  mais ou menos contemporânea do rock: o rock progressivo.


[3] Exemplos notáveis destes indivíduos icônicos são Dexter Holland, vocalista do Offspring, Greg Graffin, mentor do Bad Religion e professor/pesquisador e Milo Aukerman, professor adjunto na Universidade de Delaware e fundador do Descendents.

[4] BLUSH, Steven. American hardcore: a tribal history. Los Angeles; New York: Feral House, 2001.


[5] A canção “Veraneio Vascaína” dos brasilienses da banda Capital Inicial ilustra esta relação de tensão e estranhamento entre as forças da segurança pública e os jovens punks daquele momento.

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